MONETARIZAÇÃO DO AFETO

O vocábulo ‘humanidade’ pode ser entendido, dentre outros significados, como “conjunto dos seres humanos” ou “sentimento de bondade, benevolência, em relação aos semelhantes, ou de compaixão, piedade, em relação aos desfavorecidos”.

Em suma, espera-se que os humanos demonstrem um mínimo de ternura por filhos, pais, irmãos, avós, netos, amigos, vizinhos, …, conhecidos ou estranhos, nos dois sentidos. Ou seja, espera-se que os humanos pratiquem empatia. Para a Psicanálise, ternura seria “atitude com relação a outrem, na qual, um indivíduo reproduz a relação amorosa que mantinha com a pessoa que dele cuidava e o alimentava, quando criança”.

Nesses tempos internéticos, o zelo pelos familiares virou ‘cafona’, atitude desprezível, fora de moda, fraqueza, vergonha diante de seres evoluídos. Pais, filhos, irmãos, avós, tios, sobrinhos, primos e afins passaram a ser ‘clientes’ ou fornecedores. Cuidar de pessoas virou ‘mercado de trabalho’; profissão do futuro, indício de evolução da Sociedade.

Ainda no estudo do Dicionário Houaiss, encontramos que afeto, cognição e volição são funções mentais. Talvez… apenas dos humanos. Tomara que não.

Tomo a liberdade de considerar que os humanos estejam com excesso de vontades e buscam dominar cada vez mais conhecimentos. São dominados pela volição e querem construir cognição infinita. Para a maioria dos humanos, a falta de vontade, a inércia e a preguiça causam poucos problemas; o problema, para si e para os outros, está na “vontade imperfeita”, que deixa de ser voluntária, para ser fúria que domina muitos dos que defendem o livre-arbítrio, o pseudodireito de agir inconscientemente, com graves prejuízos para si e para seus arbitrados.

Parece que estamos vivendo tempos negros em que a Humanidade se desumaniza, transformando a humanidade em mercadoria à venda por preços adequados a cada interesse e a cada situação. Os afetos passaram a ser objetos de desejo e de lucro. Quem conseguir juntar dinheiro poderá pagar por amores, carinhos, cuidados, ternuras e tranquilidades. Fornecer afetos virou profissão lucrativa. Assim, a pobreza, além de continuar causando fome e privações, pode se consumar em abandono, porque a caridade também está à venda.

O PORVIR E O POR VIR

Vivo uma vida singela, entre árvores e pássaros, ouvindo a música das cachoeiras, cultivando a horta e o jardim, usufruindo uma aposentadoria tranquila, que possibilita passar algumas horas lendo ou escrevendo.

Amanhã …?

Viverei como escritor-sitiante até quando perder o domínio sobre o corpo e sobre a mente; por enquanto, cuido da casa e do corpo e, com a ajuda do Vanderlei, consigo dar conta dos trabalhos de manutenção do Sítio Itaguá. Depois… quem sabe alguém que ame a natureza queira continuar a obra? Acredito que sempre haverá utópicos dispostos a ‘dar a vida pela natureza’.

Morrer…

Se a morte repentina me apagar, minha velhice será breve…. Caso tenha uma morte longa, dependerei de cuidadores que caibam no meu orçamento e de alguém que administre a situação.

Prefiro morrer ‘na luta’, peleando, de pé. Se acaso as pernas fraquejarem, continuarei a caminhar sobre muletas, rodas ou esteiras, pois, enquanto vivo, quero andar.

Pode a mente sofrer períodos de descontinuidade ou ser desligada definitivamente; sei que pode ocorrer. Quando isso acontecer, peço o favor: desliguem o corpo também. Quando perder o ‘eu’ existencial, nada mais terei para pensar, ler ou escrever e a vida corporal será inútil para mim e um estorvo para as pessoas próximas.

Espero que mente e corpo morram simultaneamente; se um tiver que morrer primeiro, que seja o corpo. Quando a mente morrer, o corpo não saberá o que fazer.

MINHA LISTA DE DESCONHECIDOS

Quando jovem, … (Quando mesmo que fui jovem? Quando deixei de ser jovem? Resta alguma jovialidade em mim?) Bem… Quando ainda imaginava ser jovem, eu enfrentava qualquer parada: serviço pesado, serviço difícil, festas, conflitos e campanhas eleitorais. Para muitos, fiz diferença, colaborei; para a maioria, fui paisagem, um rosto anônimo; para alguns, fui estorvo, um incomodador.

Como disse aquele monge ao completar 86 anos, comecei com a ilusão que poderia mudar o mundo e acabei mudando um pouco em mim mesmo.

Tive durante muito tempo a pretensão de elucidar dúvidas, desvendar mistérios, conquistar pessoas por convencimento e de manter relações amigáveis insistindo em explicações. Ah! Ajudar as pessoas no aprendizado do que eu considerava importante e que considerava seria muito importante para elas. Observava a forma como as pessoas dirigiam, criticava os desmatadores e os depravados, orientava os esbanjadores, me preocupava com os telhados dos vizinhos, ria dos ridículos, … Enfim: cuidava da vida alheia.

Aí, durante um desgosto mais amargo, tive a ideia de iniciar minha lista de desconhecidos. Quando uma pessoa de minha rede de relações se mostrava resistente ou incomodada com minhas opiniões, quando os parceiros sabotavam meus esforços, quando uma pessoa me traia, quando alguém me ofendia, … A lista cresceu, mesmo usando doses de benevolência e permitindo, em alguns casos, uma segunda chance.

Nessa minha lista de desconhecidos, coloquei arrogantes, brigões, vingativos, espertos, estúpidos, caloteiros, hipócritas, dissimulados e/ou fingidos. Reduzi contatos, deletei mágoas, evitei aborrecimentos, parei de querer mudar quem não quer mudar, deixei caídos os que me empurraram e economizei desprezos. Deixei de gastar minhas energias e de empatar o meu tempo com ex-conhecidos.

Para os ainda-por-conhecer, dedico parte da minha atenção, com precaução. Porém, quando encontro um desses desconhecidos contabilizados, concentro esforços em neutralidade planejada. Como diz a gíria: “passo reto”.

Há tempo, escrevi o poema “Menos amigos, mais amizade”, que procuro sempre reler, para me manter crítico e prosseguir no meu processo de enxugamento.

OS EXPLORADORES

Muito ativos desde pequenos,

choram por qualquer coisa,

exigem dedicação integral e

conseguem a atenção cobrada.

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Só que começam engatinhar,

exploram o quarto, a casa, o quintal.

Remexem tudo e seguem adiante…

sempre sem limites.

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Da mãe,

exigem alimento,

carinhos, o infinito e a eternidade;

do pai,

cobram trabalho extenuante,

segurança e presentes;

das demais pessoas,

ocupam o centro das atenções.

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Mesmo assim, reclamam de tudo.

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Para ampliar a exploração,

recebem madrinhas e padrinhos,

fontes inesgotáveis

de elogios e de mimos.

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Depois de explorar o pai, a mãe,

a família, os padrinhos, os avós,

os irmãos e os vizinhos, frequentam

creches, escolas e academias, onde

continuam exigindo privilégios:

exploram colegas e professores.

.

Crescem explorando pessoas,

comunidades, clientes, governos

e todos os que deles se aproximam.

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Se apossam da natureza

como predadores insaciáveis,

derrubando árvores, matando animais,

queimando os resíduos orgânicos

e, por último, vendem

as pedras que restam no solo.

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Envenenam as lavouras,

as pastagens, os pátios de casa,

os rios, as lagoas, o mar e o ar.

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Seguem explorando os vizinhos,

as terras dos vizinhos,

as matas dos vizinhos,

as criações dos vizinhos,

os transportes dos vizinhos,

a amizade dos vizinhos,

a boa-fé dos vizinhos e

acabam esgotando

a paciência dos vizinhos.

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Depois de sugar a mãe, o pai,

a família, a comunidade,

a natureza e os mananciais de água,

passam a explorar as verbas públicas

e os espaços sociais…

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Como gafanhotos humanos,

vão desfolhando a vida;

por onde passam,

só restarão esqueletos ao vento.

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Exploradores

são pessoas bem atuantes,

que vivem sem limites,

se apossando de tudo

o que estiver disponível,

devorando o que encontram,

exigindo ‘colaboração’ dos outros,

sem nunca colaborar,

e ‘ficam muito brabos’ quando

os desejos e a voracidade deles

não forem atendidos.

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Exploradores desdenham e combatem

a ordem, os limites, as regras,

os valores morais,

as ações comunitárias,

o trabalho coletivo,

a preservação da natureza,

o ajardinamento de ruas e praças,

os cuidados com a casa,

a lealdade com as pessoas e

o respeito com as diferenças.

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Exploradores não perguntam

‘Eu posso entrar?’,

‘Eu posso pegar uma fruta?’,

‘Eu posso ajudar nesse trabalho?’,

‘Como você se sente?’,

‘O que você espera de mim?’, …

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Quando casam,

os exploradores já são

especialistas em exploração

e dominam completamente

as esposas, os sogros, os cunhados,

os filhos, os parentes, as instituições.

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Querem ser servidos,

‘ter tudo à mão’,

sem questionamentos

ou reclamações.

TERRORISMO COMUNITÁRIO

O agressor grita de medo

para quem tem coragem

de ouvir insultos em silêncio.

Os animais gritam de medo;

os animais humanos

usam revólveres para amedrontar,

ameaçar e matar o que temem.

Muitos acreditam que

armas e insultos

possam substituir a coragem.

E que o silêncio das vítimas

possa ser sinal de covardia

que autorize prosseguir

com ações terroristas.

MUDAR NA MUDANÇA

Podemos mudar de apartamento, casa, bairro, cidade, região, país, … Talvez, … de planeta…

Impulsionados por insatisfações, saturamentos, esgotamentos, tragédias, expulsões, aversões ou oportunidades.

Podemos deixar o indesejado, algo do que fomos, apelidos, relações, humilhações, perseguições, limitações espaciais ou emocionais.

Em busca de horizontes amplos, harmonia interna, familiar, social ou comunitária: melhores condições de vida.

Podemos mudar de residência e aproveitar para mudar de vida.

Ou, ingenuamente, carregar conosco idiossincrasias, ilusões, manias, comportamentos, …

Assumindo os mesmos papeis, repetindo hábitos prejudiciais, reconstruindo o desagradável…

Ou podemos aproveitar a mudança para mudar a nós mesmos, abandonando ‘verdades’, replantando esperanças e concretizando sonhos.

MENOS AMIGOS, MAIS AMIZADE

A certeza de que a vida é curta aumenta com a idade.

Até os quatro anos, nem sabemos que pensamos.

Até a adolescência, carecemos de consciência moral.

As primeiras décadas transcorrem sem economia de tempo, pois parece que seremos eternos.

No entanto, a meia-idade vem nos avisar de que a manhã já se foi e que a tarde se esvai: o vigor físico cede lugar à debilidade.

Tomamos consciência de que o aclive chegou ao fim e que a ‘melhor idade’ escorre cachoeira a baixo.

Se na juventude esbanjamos energia e corremos atrás de aventuras, na maturidade, passamos a escolher com cuidado os encontros e as companhias.

E, à medida que a vida avança, os calendários encolhem, indicando a necessidade de escolhas cada vez mais criteriosas.

Quando nos resta a velhice, passamos a ser avarentos dos nossos últimos tempos.

Já não perdemos tempo com ilusões; estamos mais preparados para lidar com as mentiras e com propagandas enganosas.

Preferimos refeições leves e roupas confortáveis, independemos da moda e da mídia.

Na velhice, mantemos menos amigos e contamos com melhor amizade.

CASAMENTO PERCENTUAL

Alice é 100% solteira? Pedro está 100% casado? Cristina pode ser 75% viúva? As separações conjugais podem ultrapassar o 100%? Ex-cônjuges que se odeiam podem estar separados 202%? Alguém pode estar minimamente casado? É horrível ser filho de pais solteiros? Os traidores traem o quê? Um homem apaixonado ama sua esposa? É possível estar completamente apaixonada sem jamais ficar casada?

Em que proporção eu estou casado? Em que proporção você está separada? Em que medida somos felizes? Beatriz pode ser aparentemente feliz? Ou feliz só nas aparências? Ou só para aparecer? Fazemos de conta que estamos casados? Ou nosso casamento é um faz-de-conta? Quais os elementos fundamentais do amor? É possível pesar a intensidade do amor?

Se o casamento for totalidade de sentimentos complementares ou recíprocos, a partir de que percentual sentimental poderemos nos considerar casados? Um casamento pode ser total ou, por mais que nos esforcemos, sempre será uma união parcial? Com mais de 90% ou podemos chegar a 98%? Quanto, infinitamente e decrescentemente, ainda restará para alcançar a totalidade?

Quantas dimensões pode ter um casamento? É possível estabelecer categorias casamentais? Vamos fazer um exercício de categorização? Quais os aspectos sexuais de um casamento? Quais os critérios para indicar as medidas mínimas de carícias, de carinhos e de ternuras? Como medir os dados sexuais de um casamento? Um casal que pode ser feliz sem praticar atividades sexuais? Qual o regime anual de relações sexuais? Prazer a dois? Ou cada um visita o seu motel? Em diferentes continentes?

Cada um tem seu lazer? Quais as diversões e os entretenimentos que vocês partilham? Cada um tem sua praia, seus passeios e suas viagens? Nadam juntos? Ou na mesma piscina, na mesma lagoa, no mesmo rio? Viajam juntos? Riem juntos e choram em comunhão?

Nós mantemos contabilidades individuais? Ou nada contabilizamos? Temos um orçamento participativo? Dividimos as despesas? Ou só acumulamos prejuízos? E os lucros? Será fácil tabular os dados financeiros das participações societárias conjugais?

Documentos garantem casamentos? Quais? Qualquer um? É possível se sentir casado sem ‘documento passado’? Ou estar casados só no papel? Ser casada pressupõe gerar filhos? É permitida a geração independente? O que garante um casamento é a existência contínua de filhos por criar? Os filhos unem ou separam os pais? Quem sabe netos, bisnetos e tataranetos?

Casais que residem no mesmo endereço estão casados 100%? Ou cada um tem seu chuveiro, seu fogão e seu quarto? Ou, no mesmo quarto, em camas separadas? Preparam as refeições em conjunto ou cada um se vira como pode? Ou cada qual vai a seu restaurante?

Banho a dois? Ou privacidade total? Cada qual com sua banheira? A toalha de rosto é usada pelo casal? Ou cada um seca o rosto e as mãos com pano próprio? Cada um tem o seu tubo de creme dental? Mesmo que seja da mesma marca?

E a roupa? Cada qual lava a sua? Ou cada qual tem sua lavanderia e sua máquina de lavar roupas? Se o cônjuge estiver no trabalho e a chuva ameaçar, o outro recolhe as vestes secas que estão estendidas nos varais? Ou os dois fingem não ver, nem a roupa nem a chuva?

Vocês usam o mesmo aparelho de telefone? O mesmo celular? O mesmo endereço na Internet? O mesmo Watsapp? Cada um tem o seu aparelho de TV, com senha encriptada?

Cada um tem seu automóvel? Cada qual tem dois ou três? Em garagens separadas? Pedalam na mesma bicicleta? Ou os dois andam a pé e utilizam o transporte coletivo?

Cada um tem sua religião e respeita a opção do outro? Ou os dois rezam na mesma fé? Ou os dois se atacam religiosamente? Quantos deuses cada um criou? Para quantos deles cada um reza? Ao divino Sexo? Ao divino Sucesso? Ao divino Poder? Ao divino Dinheiro? Ao divino Capital? Ou praticam egolatria?

O espectro casamental abrange que categorias? Sexual, sentimental, financeira, residencial, religiosa, profissional, …? Qual a participação de cada uma dessas categorias no mapa casamental?

Qual o percentual de envolvimento de cada um de nós?

ONDE PROCURAR QUEM?

Todos nós desejamos a companhia de alguém
que compartilhe nossas atividades diárias ou eventuais;
companheiras e companheiros leais, sinceros, compreensivos
que nos acompanhem nos sonhos, nas labutas e nos prazeres.

Acompanhar quem? Surgem muitas dúvidas.
Curiosidades sobre os objetivos pessoais.

Dificuldades para entender as surpresas que acontecem.

Se valorizamos o silêncio, a meditação, a paz  …
talvez, na quietude de um templo, na floresta, a beira-mar ou no nosso lar,
poderemos encontrar pessoas que entendam nossos sentimentos mais íntimos.

Se privilegiamos a aprendizagem, o desenvolvimento intelectual, …
existem livros, escolas, cursos, … e
outros aprendizes dispostos a partilhar conhecimentos.

Se somos apaixonados por arte …
devemos procurar artistas e participar de shows e de promoções culturais.

Se sonhamos com riqueza, sucesso, fama, …
os meios de comunicação e os empreendedores poderão nos ajudar bastante.
Noivos ricos, famosos e importantes também oferecem boas alternativas.

Se quisermos trabalhar em equipe, alcançar estabilidade, segurança social, …
basta participar das dinâmicas laborais normais e realizaremos nossas aspirações.

Se procuramos agitação, destaque social, energia vibrante, prazeres, saciedade, …
possivelmente, eles serão encontrados na internet, no trânsito urbano, nas boates,
nos shoppings, nos bares, nos restaurantes, nas festas e nos bailes.

Se buscamos companhia noturna,
para desfrutar de especiarias em restaurante chique,
até a madrugada e de carona em carrão vistoso, … encontraremos na noite.

Encontraremos as pessoas que procuramos nos ambientes em que elas estão.

Qual a companhia desejada?
Que companheiros procuramos?
Ou somos oferenda para quem anda caçando companhia?