COM VOCÊ, SOMOS TODOS SENHORES.

O vocábulo ‘você’ nasceu em berço nobre como vocativo cerimonioso nos rituais diante de entes superiores. Entes, mesmo. Entidades, seres superiores criados e sustentados pela assimetria nas relações de poder; entidades que existem… enquanto acreditarmos.

Os senhores feudais, as autoridades eclesiásticas, os reis e os imperadores viviam em palácios, protegidos por guardas e cercados de cortesões embusteiros, irônicos e pretenciosos. O povo, vivendo na maior penúria e sob ameaças constantes, trabalhava para sustentar as cortes esbanjadoras.

Escravos, agregados, esposas e filhos não deveriam se dirigir diretamente aos seus ‘superiores’. Diante das ‘autoridades autoritárias’, os párias cumpriam rituais transcendentais: falavam com as divinas personalidades encarnadas por maridos, pais, sacerdotes e latifundiários. Os não-nobres simulavam respeitos por esses semideuses prepotentes. Por graça desses ‘senhores’, por suas mercês, poderiam, eventualmente, receber ‘os favores’ que teriam direitos em uma sociedade igualitária.

Porém, ao longo do milênio, os desníveis sociais entre senhorios e subalternos se desgastaram, reduzindo a oração ‘vossa senhoria me permite a graça de lhe falar?’ a uma palavra ou, até, a uma única sílaba. A súplica servil pronunciada de cabeça baixa no linguajar popular contraiu-se, gradativamente, para ‘vossa graça’, ‘vossa mercê’, vosmecê, você e, ultimamente, na intimidade com o interlocutor, reduziu-se a ‘cê’. “Cê vai comigo?”

A sintetização da oração ‘vossa senhoria me permite a graça de lhe falar?’ revela a conversão do sistema de castas do Tempo do Império em novas dissimulações brasileiras: “aqui, não há preconceitos”, “somos todos iguais” e “fomos [no passado] colônia política, econômica e linguística”.

O ‘você’ passou a conviver com o ‘tu’ com tanta liberdade que chegou a suplantar o uso da segunda pessoa; atualmente, estamos todos com muita ‘graça’, todos somos ‘você’; senhorias que concedem graças (liberalidades) a quem tem ideias a comunicar, mesmo que sejam inferiores. Nos discursos, ‘você’, pronome de tratamento denotativo de submissão, substituiu o ‘tu’, pronome pessoal reto dito diretamente a quem falo. Todavia, as falsas justiças persistem nos fingimentos de que tudo mudou nesses ‘tempos modernos’.

Se o ‘tu’ tivesse abarcado o uso do ‘você’, poderíamos dizer que teria havido um gesto de humildade da nobreza descendo ao porão social e seríamos todos um ‘tu’ coletivo. Com a generalização do uso do pronome de tratamento ‘você’ para nos dirigirmos aos presentes, pode parecer que houve elevação dos ‘plebeus’ a iguais condições dos senhorios. Porém, o povo continua tão submisso que nem merece a ‘nobreza de ser humano’.

A Língua revela a acomodação das estruturas da sociedade em moldes democráticos. Poderia ser indício de evolução da matriz social… a ascensão do povo a um espaço igualitário.

Entretanto, o que o povo está fazendo com a Democracia… Essa é outra história.

TUMOR DE COLÍRIO

Matusalém Vitalino prolongava a vida com os medicamentos guardados nas duas caixas em vieram acondicionados o último par de sapatos e as botinas para os invernos. Complementava o tratamento com a ingestão de uma jarra de água-benta, acompanhada de rezas rotineiras.

Dentre os medicamentos receitados ‘para o resto da vida’, estava um colírio que manteria a saúde dos olhos, ‘desde que não interrompesse o tratamento’. Inicialmente, o diagnóstico foi ‘glaucoma progressivo’. Com o passar dos anos, o oftalmologista acrescentou uma catarata reversível, pois o implante de lentes artificiais renderia bem mais que os dividendos distribuídos pela indústria farmacêutica.

Porém, a chance de o cirurgião ganhar a bolada de dinheiro dilui-se na visão nítida dos ponteiros do relógio marcando os segundos e das baratas e das formigas que o ‘quase cego’ via andarem pelo assoalho da mesma cor que os semoventes. O que gerou ‘a cura natural’ da catarata. Restava a fonte de renda auferida com a indicação de uso do colírio e a possibilidade de tratar os efeitos colaterais da medicação.

Demorou um pouco, mas o colírio, apodrecido durante anos nas covas oculares, começou a aparecer por debaixo da pele das pálpebras. Inicialmente, formou pequenas bolotas, identificadas pelo médico como ‘verrugas’ a serem cauterizadas.

As cauterizações rendiam mais que os percentuais recebidos na participação das vendas de medicamentos e contribuíam substancialmente para a manutenção da clínica e dos clínicos. Bastava administrar as doses e as substituições dos quimioterápicos por similares de outras marcas ainda não beneficiadas com a doença cultivada.

Tudo ia muito bem, não fosse aparecer alguém com disposição para ler as bulas e identificar os efeitos colaterais e as reações adversas que se manifestavam progressivamente ao redor dos olhos do candidato à eternidade.

Esse alguém agiu em silêncio, trocando o conteúdo do frasco do colírio por soro fisiológico, que continuou a ser administrado com a regularidade costumeira. Os resultados logo apareceram. Os edemas diminuíram em número e em tamanho. Em um mês, o ‘câncer’ sumiu, secando as fontes de renda médica.

Então, os louros (e os lucros) migraram para a Igreja, pois “o paciente curou as feridas com muita água-benta e orações” diante da televisão com som em alto volume. Bem-vindos os dízimos de quem sofre!


Muitos médicos e todos os sacerdotes cultivam a fé de seus pacientes fieis com ferramentas de mídia e com adubos espirituais. Formam suas lavouras e searas nas mentes ingênuas dos que alimentam esperanças de vida eterna. Para ‘fazer o bem’, cobram dízimos e honorários (sem honra alguma…) bem mais onerosos que a décima parte dos proventos de aposentadoria. A família complementa a dieta medicamentosa com contribuições financeiras e assistência enfermática.

Nota: Os acontecimentos são reais; troquei o nome do protagonista.