Quem escreve registra, em variadas formas, histórias. Também, quem escreve registra histórias de variadas formas. A primeira afirmação se refere ao estilo e/ou à formatação do texto; a segunda admite possibilidades de versões diferentes para a mesma história. Como ‘uma grande mulher’ tem significado diferente de ‘uma mulher grande’.
Podemos escrever fórmulas, receitas, fatos, acontecimentos, notícias, reportagens (que nos reportam a algo), análises, crônicas, hipóteses, teses, teorias, interpretações, contos, romances, histórias, a História ou ficções científicas, sociais, jurídicas e políticas.
Apesar de parecer que só as últimas da lista sejam invenções literárias, todos os textos registram o que o escritor imagina; mentiras e verdades são frutos da imaginação humana. Mesmo as fórmulas e as teorias. Todo texto escrito tem alguma base ou destino no mundo real e diferentes doses de invencionice para preencher lacunas, chamar a atenção ou convencer o leitor. Realidade, fantasia e intencionalidade são ingredientes usados na produção de textos literários. As doses de cada componente serão determinadas de acordo com o objetivo do autor. Às vezes, de forma inconsciente, os escritores deixam a subjetividade mascarar o objeto para atender aspectos técnicos ou interesseiros.
O léxico informa que ficção é “ato ou efeito de fingir; formação, criação, suposição, …” Imagino que seja recriar os fatos, reconstruir a narrativa histórica, “com intenção objetiva, mas que resulta de uma interpretação subjetiva de um acontecimento, fenômeno, fato etc”.*
Os historiadores – do gênero masculino, raramente do feminino – advogavam autoridade histórica, convencidos de que, ao escrever livros de História (com H maiúsculo), prestavam importante contribuição acadêmica à Humanidade. Advogavam, pois, muitos deles já passam a admitir que a História possa ser considerada uma obra de ficção, mesmo que seja de ficção parcial. Meias-verdades, meias-mentiras, baseadas em fontes ausentes e interpretações convencionais. Historiadores opinam sobre fatos históricos. Escrevem e rescrevem a História, interpretando informações alheias; raríssimamente, presenciaram algum dos fatos narrados. Em geral, escrevem, em outro estilo e segundo ideologias atuais, o que autores anteriores registraram como dado histórico.
A Bíblia – o primeiro livro impresso? – é uma antologia que reúne um conjunto de interpretações de fragmentos da oralidade e das escritas ideográficas ou pictográficas. A oralidade agrega subjetividades a cada transmissão; ideogramas e pictogramas são linguagens abertas a interpretações sérias, ingênuas ou tendenciosas.
No Curso de História, no início da Década 1970, tentaram me convencer que Heródoto – o Pai da História – comparecia a todas as batalhas para narrar com fidelidade as guerras gregas. Será? Viajava de helicóptero? Por sorte, jamais saiu ferido… Cabeça de Vaca e Karl May descreveram minúcias de suas viagens imaginárias pelas américas … Escreveram com convicção. Cabeça de Vaca convenceu reis a entregarem dinheiro e Karl May vendeu muitas cópias de suas histórias fantásticas. Cabeça de Vaca e Karl May forneceram fantasias terrenas para os cristãos europeus.
E, no Curso de Psicologia, no início do Século XXI, tentaram me convencer que a anamnese desvenda o passado; que as anamneses são fatográficos dos acontecimentos pessoais; que as anamneses são registros gráficos de fatos concretamente vividos. Anamnese, na filosofia platônica, seria “rememoração gradativa através da qual o filósofo redescobre dentro de si as verdades essenciais latentes que remontam a um tempo anterior ao de sua existência empírica”. Consistiria em “esforço progressivo pelo qual a consciência individual remonta, da experiência sensível, para o mundo das ideias”.*
Remonta: re-monta, junta os cacos, reconstrói a história. Como arqueólogos que reconstroem o corpo ancestral com base na anatomia e nos desgastes de um dente e, em seguida, baseados no espectro que eles mesmos criaram, ‘reconstroem’ toda uma civilização. Generalizam as anatomias e as culturas pré-históricas a partir de um fragmento.
Pura ilusão pensar que, ao ouvir uma regressão, estamos visitando o passado autêntico. No entanto, psicanalistas e ‘pacientes’ acreditam. Ainda bem que os psicanalisados têm paciência…
Meu senso de realidade alerta que dezesseis jornalistas, ao relatarem um acontecimento, escreverão dezesseis reportagens diferentes, colorindo os fatos com seus pontos de vista. Contemplarão as cenas da posição em que estiverem, baseados em crenças pessoais, atendendo convenções sociais e regras de grupos interativos, guiados por convicções políticas, em busca de objetivos imprecisos – o futuro desejado. A maioria deles mencionará o que ouviram dizer, o que as fontes informaram… por critérios outros, quase sempre, subjetivos.
Na meia-idade, passei uma década sem revisitar minha Terra Natal. Quando regressei, “as curvas do rio estavam diferentes, com tamanhos, dimensões e direções que contrariavam minhas propaladas lembranças. Apenas o sentido da correnteza era o mesmo.” Porque, meus sentidos mostravam que o que eu havia sentido, guardado e contado a tantos … era o que eu sentia ao contar o passado, ao descrever o ausente. Ao falar para quem nunca esteve lá, eu descrevia minhas nostalgias e não as situações e os acontecimentos reais vividos no passado.
Minha mente – sem más intenções ou segundas intenções – contava meias-verdades, verdades parciais ou, até mesmo, inventava histórias, interpretava cenários e fatos, procurando dar veracidade e brilho às minhas ingênuas lembranças.
Se até eu mesmo me assusto com as variantes, atalhos, desvios e volteios que crio involuntariamente, vamos imaginar possíveis transigências de um repórter que se reporta a lugar e experiência que nunca esteve/teve… Mesmo que o jornalista esteja presente em todo o transcurso, sempre descreverá as impressões, as intenções pessoais e os mandados do editor/dono do jornal/revista/partido político/comitê científico/ …
Os historiadores registram – oficialmente – as opiniões deles sobre o que aconteceu no passado; alinhavam as informações que coletaram, preenchendo os vazios do quebra-cabeça com suposições de enredo histórico. Como meteorologistas que tentam prever as variações climáticas, sem jamais se reportarem aos anúncios falsos.
Todos os textos escritos contêm doses de ficção; quanto mais convincentes, mais fictícios podem ser. O perigo do convencimento está em encantar o leitor com aparências de realidade. Basta recortar e comparar afirmações de um mesmo livro de História para encontrar discrepâncias e, até, contradições.
Quando leio poesias, contos e romances escritos por pessoas com quem convivi, percebo a distância entre o que eles dizem que viveram (e escrevem em seus livros e autobiografias) e o que fato aconteceu. (Ou eu também estarei divagando?) Se eu fosse louco de tomar como realidade o que escrevem meus colegas escritores, estaria corroborando e colaborando para convencer os leitores de que aquilo foi – de fato – o que aconteceu e que, naquela época, as pessoas viviam daquela forma. Que o mundo teria sido aquele. Sim. Em parte, pode ter sido. Os floreios são fantasias.
Se não devo confiar nem na minha memória do que vivi, como vou confiar no que os outros escrevem do que os nossos ancestrais viveram?
Se minha memória trai a mim mesmo, quanto posso enganar a quem lê o que escrevo?
Que dirá, nas redes sociais…
- Dicionário eletrônico Houaiss