PEDOFILIA HUMANA

À medida que sobrevivo por sete décadas, percebo que meu olhar alcança outros níveis, outros horizontes ou que eu consigo visualizar o que estava perto (porém, em segundo plano) e permanecia ‘invisível’. Talvez, minha mente envelhecida, com melhores configurações, consiga ultrapassar o imediato e penetrar através das frestas do senso comum.

Durante a gestação, os meus olhos e a minha mente em construção devem ter visto, inicialmente, escuridões e, gradualmente, penumbras. Na primeira infância, reconheceram rostos familiares, objetos coloridos e fontes de alimentos, como mamas e mingaus? Até os três anos, dispensado de análises éticas e/ou filosóficas, devo ter visto o mundo apenas como paisagem dinâmica.

A ‘idade da razão’ surgiu aos sete anos? Talvez, por aí. Quais as análises que eu fazia aos dez anos? E aos quinze? O que o Mario neo-adulto passou a pensar? Quais os critérios éticos do Mario quarentão? Em que fase radicalizei minhas visões de mundo? (aprofundei raízes…)

Justificadas as minhas idiossincrasias (predisposição do organismo que leva o indivíduo a reagir de maneira peculiar à influência de agentes exteriores/Houaiss), vamos ao tema proposto.

Até envelhecer, lutei para acomodar a ideia de pedofilia como vício de “perversão que leva o indivíduo adulto a se sentir sexualmente atraído por crianças”. Apenas de seres humanos?

Esparramei minha atenção para o reino vegetal e procurei por eventos em que uma planta adulta teria tentado atos reprodutivos com uma planta recém-nascida, com brotos tenros ou com plantas sexualmente imaturas. Nada. Nenhum indício… Concluo que faltam evidências de pedofilia vegetal.

Haveria pedofilia entre os seres microscópicos? Está lançado o desafio…

Entre humanos existe. Humanos são animais. E os outros animais? Vasculhei as prateleiras mais antigas de minha memória, catalogando imagens registradas durante a infância, quando adolescente, durante a juventude e depois de adulto.

Galos, galinhas, pintos; cachaços, porcas, leitões; baguais, éguas e potrinhos; cães, cadelas e filhotes; gatos, gatas, gatinhos; patos, patas, patinhos; marrecos, marrecas e marrequinhos; perus, peruas, peruzinhos; … Nunca vi machos adultos dessas linhagens assediando os recém-nascidos, os desmamados ou os jovens. Pelas minhas interpretações, as danças sensuais animalescas iniciavam depois da maturidade dos animais domésticos.

Os pássaros machos assediam os filhotes nos ninhos? Os passarinhos em treinamento de voo são perseguidos por machos tarados? Quem já presenciou alguma cena comprometedora? Existe pedofilia entre tatus, capivaras, cotias, gambás, lebres, veados, quatis, onças, leões, girafas, elefantes, cobras, baleias, avestruzes, hienas, chipanzés, gorilas ou micos?

Os animais selvagens seriam mais éticos que os humanos? Mas, a ética e a moral não são preceitos humanos? Pedofilia seria um ‘efeito colateral’ da ‘inteligência superior’ do Homo Sapiens? Os seres humanos seriam mais animalescos e selvagens que os ‘animais inferiores’?

VÍTIMA DA HOSPITALIDADE

Quando menino, minha mãe me mandou levar alguma coisa para a casa de uma família de descendentes de alemães. Como minha mãe ganhava dinheiro costurando, deve ter sido para entregar algum vestido, camisa ou calça encomendada. Fui um pouco antes do meio-dia.

Eu conhecia ‘de longe’ a família de tons meio dourados, na pele e nos cabelos. As sardas – ilhas de pigmento mais adensado que, agora, o dicionário me conta que são ‘efélides’ ou lentigos’ – cobriam parte dos rostos, com maior concentração nas áreas mais expostas à luz solar, e cabelos entre louros e ruivos cobriam as cabeças. Os sotaques pronunciadamente germânicos completavam as nossas disparidades.

Ah! E eles costumavam almoçar cedo. E estavam almoçando. E minha timidez não encontrou palavras para me livrar do convite quase autoritário.

Mais uma diferença cultural. Os meninos De Negri se serviam do que escolhessem à mesa e nas quantidades desejadas; a mamãe loura serviu o prato de cada menino. Inclusive, o meu.

A bondosa mulher colocou diante de mim um pouco de arroz e diversas bolas de sangue brilhante, que ia tingindo o prato, o garfo e o arroz. Me senti encurralado. Meus pais nos disciplinaram a sermos muito corteses, afáveis, até. Entretanto, aquele sangue vermelho vivo trancava de náuseas a minha garganta.

Depois de um longo exercício mental – que eles tomaram como tempo em que eu rezava em silêncio… – garfei a primeira bola rubra, me concentrei, fechei os olhos e enchi a boca… com um gosto desconhecido, mais desconhecido ainda que o sabor que eu imaginava ser o de sangue cru. Ainda bem que era macia e meio adocicada… Mastiguei com os olhos fixos num retrato de família pendurado na parede em minha frente.

Não doeu. Mais uma, mais uma, mais uma, … Ufa!!! Sobrou o arroz com as beiradas ‘ensanguentadas’. Porém, nem deu tempo de avançar nos grãos; a mulher, contente ‘por eu ter gostado tanto das beterrabas’, depositou no meu prato mais uma farta remessa…