O vocábulo ‘entidade’, designando estruturas sociais criadas por leis ou por estatutos, passou a dominar a linguagem dos meios de comunicação. De certa forma, uma palavra-ônibus que carrega o descompromisso das pessoas que virtualizam as instituições, como se fossem essências descoladas do mundo real: virtuais, etéreas, ideais, intangíveis e inatingíveis. Coisa do outro mundo. Espíritos puros despidos de qualquer vestígio de realidade existencial.
Essa, a primeira repugnância minha ao ouvir que “as entidades estão oferecendo abrigo aos moradores de rua”. Aí, um segundo sintoma de alienação; o de se esconder atrás de ‘termos politicamente corretos’, de fugir de supostos ‘preconceitos’, como usar as palavras pedintes, indigentes ou mendigos. Hipocrisia praticante.
Sim. Mesmo que “Graças aos deuses!!!”, enfim, um gesto humano de solidariedade. Louvável a compaixão para com os absolutamente pobres; para com os enjeitados pela sociedade de consumo. Partilhar o pão e oferecer abrigo. Alimentos que estão sobrando e hospedagem em prédios pouco usados ou, até, abandonados.
As igrejas e os clubes esportivos podem recolher os ‘moradores de rua’ nas noites geladas dos invernos sulinos. Entretanto, ‘ajudar os pobres’ tem um custo burocrático: dispor de banheiros e água potável em volume adequado ao contingente que se quer abrigar, instalar sistemas de proteção contra incêndios, garantir segurança, prevenir surtos de doenças contagiosas, tratar com dignidade os sem-teto e requerer alguns alvarás da prefeitura, dos bombeiros e da vigilância sanitária. As mesmas obrigações legais de outras ‘entidades’. Obrigações legais? Das organizações da sociedade civil? Iguais às dos governos municipais?
Moradores de rua, moradores de debaixo da ponte, moradores de viadutos, moradores de prédios abandonados, moradores de barrancas de rio, moradores de marquises, moradores de rodovias, moradores de parques, … não são responsabilidade do governo? O governo instala sistemas de prevenção a incêndios e garante segurança em ruas, pontes, viadutos, prédios abandonados, matas ciliares, marquises, rodovias e parques? O governo mantém banheiros funcionando e oferece água potável e alimentação para os que residem em locais públicos? Quais as ações de governo para evitar os surtos de fome e a propagação de doenças entre os desajustados? Os moradores em espaços públicos são tratados com dignidade pelo governo?