REVISÃO EM VIDA

Desde que eu lembre de ter escrito, mesmo que um bilhete, sempre me senti insatisfeito com o texto. Essa sempre foi a minha exigência. Por isso, antes de enviar ou de publicar, revisei e reescrevi tudo o que deu tempo para revisar e reescrever.

Há alguns anos, li um comentário sobre Graciliano Ramos e me senti identificado com ele na busca incessante de aperfeiçoar os textos. No entanto, com menor rigor que o Mestre Graça, pois, em dado momento, dei à luz textos e livros, consciente de que tinha alcançado o melhor para aquele momento. Ou seja, mesmo sabendo que os textos ainda precisam receber melhorias, eles já conterão minhas ideias de forma mais ou menos inteligível.

Recentemente, voltei à leitura da última entrevista de Jean-Paul Sartre, encontrando evidências ainda mais fortes de que nossas opiniões devem ser datadas e merecem constantes e infinitas revisões. Ou seja: o que eu disse, em cada época, era o que eu acreditava ser a ‘verdade’; verdades contraditórias, constantemente desmentidas. Sartre defendia as opiniões dele com convicção e com extremo vigor, porém, aceitava com resignação o fracasso de suas teorias, diante de provas alheias ou mesmo por ter chegado à conclusão de que suas ideias estavam erradas e/ou ultrapassadas.

Alguns trechos emblemáticos dessa capacidade de aceitar os próprios erros e de reformar os próprios pensamentos filosóficos.

  1. “… acho que a ideia de imortalidade a que me entregava intensamente quando escrevia (e até quando deixei de escrever [porque ficou cego]) era um sonho. Acho que a imortalidade existe, mas não é assim.”
  2. “Veja bem, minhas obras são um malogro. Não disse tudo o que queria dizer, nem da maneira como queria dizer. Algumas vezes em minha vida isso me magoou profundamente. Outras vezes, não percebi meus erros e pensei ter feito o que queria. Nessa altura, não penso mais nem numa coisa nem noutra. Acho que fiz mais ou menos o que pude. Que isso valia o que valia. O futuro desmentirá muitas das minhas afirmações; espero que algumas sejam conservadas, mas, em todo caso, há um movimento lento da História em direção a uma tomada de consciência do homem pelo homem.”
  3. “… em minhas primeiras pesquisas […] procurava a moral numa consciência sem recíproca ou sem outra […] Hoje, acho que tudo …”
  4. “Moral que está aliás em contradição com certas ideias que tive.”

Em 2014, a respeito da importância do livro dele AS VEIAS ABERTAS DA AMÉRICA LATINA, Eduardo Galeano afirmou que, quando escreveu, não tinha o treinamento e o preparo necessários para tratar de economia e de política. Como a dizer: Se eu fosse reescrever o texto, fariam muitas melhorias. Mesmo sendo uma obra que norteou a intelectualidade latino-americana por décadas.

A leitura do que escrevemos ao longo da vida é exercício fundamental para nossa autocrítica. A análise de nossas ideias pretéritas pode informar das revoluções, das involuções e, principalmente, das evoluções que precisamos realizar para que possamos descer dos trapiches da nossa vaidade, com cautela para evitar frustrações e traumas.

Conscientes de que somos outros em cada época e diante de circunstâncias, poderemos admitir também que somos apenas testemunhas das situações vividas e estaremos em condições de empreender novas e mais profícuas reflexões filosofais, muito adiante do histórico ontológico. Importante que essas revisões aconteçam antes que a morte bata o carimbo sobre nossas biografias.

SABEDORIA ESCONDIDA

Até a década de 1960, a Educação no Brasil era privilégio dos filhos da elite social e de uns raros pobres determinados a estudar, que conseguiam superar as enormes dificuldades pessoais e romper as barreiras socialmente impostas.

Porém, a partir da Revolução Militar de 64, o governo brasileiro assinou um convênio com os Estados Unidos, que previa ações estruturantes, dentre elas, a expansão do acesso à escola para todas as crianças e algumas oportunidades de formação técnica-profissional.

Para normatizar a implantação dessas mudanças educacionais, foi promulgada a LDB/1971 que extinguiu os cursos primário, ginasial e científico. Até então, a maioria deles estava sob a tutela de instituições particulares; na quase totalidade, oferecidos em escolas mantidas por congregações religiosas.

O governo revolucionário pretendia dominar a formação dos ‘novos brasileiros’, como pessoas e como cidadãos. Por isso, uma das primeiras medidas foi afastar as instituições e os métodos tradicionais; os novos cursos passavam a ser administrados pelos governos estaduais e, décadas depois, por parcerias entre os governos municipais, estaduais e federal.

De um modo geral, todas as orientações foram implantadas e persistiram, com alguns ajustes. No entanto, uma das opções pedagógicas teve duração efêmera, porque se mostrou equivocada e preconceituosa: formar turmas segundo o desempenho escolar e, para os iniciantes, segundo o desempenho escolar dos parentes mais velhos (irmãos, pais ou tios).

Na época, as proles eram abundantes e havia muitos jovens em idade escolar. Por isso, mesmo em pequenos povoados, foram formadas muitas turmas para cada série escolar. E, pelo critério elitista adotado, nas turmas ‘A’, estudavam os melhores alunos da região e/ou os ‘filhos das melhores famílias’, mesmo os que fossem pouco estudiosos. Na sequência decrescente de ‘capacidade intelectual’ e em ordem alfabética crescente, seguiam as demais turmas.

Em uma das escolas em que Maria Alfabetizadora trabalhou, as sextas séries do Ensino Fundamental alcançavam a letra ‘H’; a ‘6ª série H’ era a última e mais ‘fraquinha’, com apenas vinte alunos ‘repetentes’ ou candidatos à repetência. Dentre eles, o José Ignoto, que era considerado, pela equipe docente, ‘o mais fraco de todos’; por isso, recebeu o rótulo de incapaz de aprender e os professores estavam dispensados de tentar ensiná-lo, pois seria apenas desperdício de tempo e de dinheiro.

Porém, aconteceu de a avó do José Ignoto morrer de velhice.

Nas aldeias, os velórios eram eventos obrigatórios para toda a comunidade; o luto era coletivo. Por isso, naquele bairro operário, os colegas de turma do enlutado sempre visitavam o velório, como gesto de solidariedade e de espírito cristão.

Para cumprir a obrigação, a diretora da escola solicitou que Maria Alfabetizadora acompanhasse os alunos da ‘6ª série H’ e que representasse a escola na cerimônia, conduzindo, inclusive, as orações fúnebres. Afinal, a escola era autoridade cultural.

As crianças estavam acostumadas a caminhar até a cidade distante cinco quilômetros, para acompanhar os pais ou para, em excursão escolar, participar dos jogos estudantis, como atletas e/ou torcedores. Por isso, poderiam caminhar três quilômetros, sem maiores problemas. E, depois do compromisso, todos poderiam ir para suas casas, algumas delas até próximas do local.

Assim, a pequena procissão iniciou a caminhada em alegre algazarra: como se fossem fazer um piquenique. Isso até deixar a estrada principal e começar a subir a ladeira estreita. A partir daí, todos deveriam caminhar em silêncio respeitoso. Essa atitude favorecia a audição da cantilena fúnebre: uma voz juvenil conduzia as orações e parecia ser a voz do José Ignoto.

De fato: chegando cada vez mais perto, ia aumentando a certeza de que a autoridade eclesiástica, naquela cerimônia, era o ‘mais fraco dos alunos da turma’. E com que firmeza e com que convicção conduzia o culto!!! Maria Alfabetizadora tomou um choque de realidade. E as crianças também demonstraram surpresa, admiração e respeito.

Tendo participado de um bloco de orações e depois de passar ao lado do caixão persignando-se, a pequena procissão voltou para a estrada e para uma nova realidade: lá na casa dele, o José Ignoto era o mais letrado, lia com desenvoltura e conduzia o culto como um líder legitimado pela família.

Naquele final de tarde primaveril, os mitos e os preconceitos foram rompidos e a realidade mais cristalina inundou as mentes: o José Ignoto desempenhava na escola o papel de ‘pior aluno’, porém, em casa, livre das fôrmas e dos rótulos, era uma pessoa letrada, merecedora da admiração e da esperança da Família Ignoto.

Tessari, Mario. Maria Alfabetizadora. Jaguaruna, Edição do autor, 2014. (pg 42)