ENCONTRO ANUAL

Dentro do esperado, a maioria dos delegados compareceu para abrilhantar o evento maior da classe e todos conversavam despreocupados, favorecidos pela ausência de pessoas estranhas, pois o que fosse ali tratado só dizia respeito a eles; não deveria cair nos ouvidos do povo.

Os temas rotineiros escorreram pela pauta, sem novidades. Restava o item Outros Assuntos, com garantia de livre uso da palavra, sem a necessidade de inscrição prévia; um espaço ocupado, quase sempre, por homenagens ou para divulgar informações.

De início, causou surpresa a inscrição de Manoel, pessoa opaca, de pouca importância, sem possibilidades de carreira promissora. O anúncio da questão sugerida para debate causou ainda mais estranheza: O que é um delegado?

Murmúrios no plenário. O que o maluco pretendia com tal questionamento? Coisa de louco, literalmente. Enquanto os colegas se organizavam para contestar, o locutor dissecava o significado dos termos delegado, delegação e delegar.

Delegar significava transferir poderes a um ou mais representantes. Delegação, então, significaria transmissão, transferência de poder por mandato expresso; procuração que autoriza e instrumentaliza o cumprimento de uma missão. A delegação conferiria, portanto, alguns dos poderes de quem delega e não todos, nem o direito de o representante tomar decisões por si mesmo, pois careceria de autoridade para tanto.

O burburinho aumentou; as palavras açoitavam os ouvidos mais conservadores. Por certo, o colega era um desses rebeldes incendiários com pretensões de revolucionar as atividades do egrégio corporativo. Donde arrumava coragem para sacudir a verdade estabelecida?

E continuavam as trovoadas do destemido tagarela. Segundo ele, delegado seria o representante que substitui a autoridade com a tarefa de exercer o poder superior a ele concedido. Logo, para exercer a superioridade institucional.

Nesse ponto, o técnico de som desligou o microfone e os presentes acompanharam as frases seguintes por leitura labial. Desligou por orientação da Mesa, que, assim, silenciava a oposição, sem sofrer o desconforto de cortar a palavra, o que poderia agravar ainda mais a confusão já estabelecida. Restava ao ‘prejudicado’ gesticular reivindicações de direitos minoritários.

Em meio à balbúrdia, outro delegado pediu a palavra, que desta vez foi concedida, pois seria exercida por um correligionário. Entretanto, o aparelho só foi ligado, depois que o inscrito conseguiu arrancar o microfone da mão do seu antecessor. Propôs, então, que ‘o estranho fosse retirado do ninho’. Quer dizer: que o abusado fosse posto para fora.

— É pouco! – gritou alguém.

— Vamos expulsar o intruso da corporação – acrescentou outro.

— A corporação só defende os privilégios e o poder – gritou o ‘intruso’.

— Fora – ecoou em uníssono o coro de delegados.

— Cadê a liberdade constitucional de expressão? – vociferou o ‘réu’ contido por dois seguranças que foram chamados para executar as ‘ordens da Mesa’.

E, enquanto era arrastado para fora do plenário, ainda bradou:

— A corporação incorpora a autoridade com autoritarismo.

A reação do Presidente da Mesa foi imediata: “Acabou a tolerância; o cara quer briga.”

HISTÓRIA NOSSA DE CADA DIA

Quem escreve registra, em variadas formas, histórias. Também, quem escreve registra histórias de variadas formas. A primeira afirmação se refere ao estilo e/ou à formatação do texto; a segunda admite possibilidades de versões diferentes para a mesma história. Como ‘uma grande mulher’ tem significado diferente de ‘uma mulher grande’.

Podemos escrever fórmulas, receitas, fatos, acontecimentos, notícias, reportagens (que nos reportam a algo), análises, crônicas, hipóteses, teses, teorias, interpretações, contos, romances, histórias, a História ou ficções científicas, sociais, jurídicas e políticas.

Apesar de parecer que só as últimas da lista sejam invenções literárias, todos os textos registram o que o escritor imagina; mentiras e verdades são frutos da imaginação humana. Mesmo as fórmulas e as teorias. Todo texto escrito tem alguma base ou destino no mundo real e diferentes doses de invencionice para preencher lacunas, chamar a atenção ou convencer o leitor. Realidade, fantasia e intencionalidade são ingredientes usados na produção de textos literários. As doses de cada componente serão determinadas de acordo com o objetivo do autor. Às vezes, de forma inconsciente, os escritores deixam a subjetividade mascarar o objeto para atender aspectos técnicos ou interesseiros.

O léxico informa que ficção é “ato ou efeito de fingir; formação, criação, suposição, …” Imagino que seja recriar os fatos, reconstruir a narrativa histórica, “com intenção objetiva, mas que resulta de uma interpretação subjetiva de um acontecimento, fenômeno, fato etc”.*

Os historiadores – do gênero masculino, raramente do feminino – advogavam autoridade histórica, convencidos de que, ao escrever livros de História (com H maiúsculo), prestavam importante contribuição acadêmica à Humanidade. Advogavam, pois, muitos deles já passam a admitir que a História possa ser considerada uma obra de ficção, mesmo que seja de ficção parcial. Meias-verdades, meias-mentiras, baseadas em fontes ausentes e interpretações convencionais. Historiadores opinam sobre fatos históricos. Escrevem e rescrevem a História, interpretando informações alheias; raríssimamente, presenciaram algum dos fatos narrados. Em geral, escrevem, em outro estilo e segundo ideologias atuais, o que autores anteriores registraram como dado histórico.

A Bíblia – o primeiro livro impresso? – é uma antologia que reúne um conjunto de interpretações de fragmentos da oralidade e das escritas ideográficas ou pictográficas. A oralidade agrega subjetividades a cada transmissão; ideogramas e pictogramas são linguagens abertas a interpretações sérias, ingênuas ou tendenciosas.

No Curso de História, no início da Década 1970, tentaram me convencer que Heródoto – o Pai da História – comparecia a todas as batalhas para narrar com fidelidade as guerras gregas. Será? Viajava de helicóptero? Por sorte, jamais saiu ferido… Cabeça de Vaca e Karl May descreveram minúcias de suas viagens imaginárias pelas américas … Escreveram com convicção. Cabeça de Vaca convenceu reis a entregarem dinheiro e Karl May vendeu muitas cópias de suas histórias fantásticas. Cabeça de Vaca e Karl May forneceram fantasias terrenas para os cristãos europeus.

E, no Curso de Psicologia, no início do Século XXI, tentaram me convencer que a anamnese desvenda o passado; que as anamneses são fatográficos dos acontecimentos pessoais; que as anamneses são registros gráficos de fatos concretamente vividos. Anamnese, na filosofia platônica, seria “rememoração gradativa através da qual o filósofo redescobre dentro de si as verdades essenciais latentes que remontam a um tempo anterior ao de sua existência empírica”. Consistiria em “esforço progressivo pelo qual a consciência individual remonta, da experiência sensível, para o mundo das ideias”.*

Remonta: re-monta, junta os cacos, reconstrói a história. Como arqueólogos que reconstroem o corpo ancestral com base na anatomia e nos desgastes de um dente e, em seguida, baseados no espectro que eles mesmos criaram, ‘reconstroem’ toda uma civilização. Generalizam as anatomias e as culturas pré-históricas a partir de um fragmento.

Pura ilusão pensar que, ao ouvir uma regressão, estamos visitando o passado autêntico. No entanto, psicanalistas e ‘pacientes’ acreditam. Ainda bem que os psicanalisados têm paciência…

Meu senso de realidade alerta que dezesseis jornalistas, ao relatarem um acontecimento, escreverão dezesseis reportagens diferentes, colorindo os fatos com seus pontos de vista. Contemplarão as cenas da posição em que estiverem, baseados em crenças pessoais, atendendo convenções sociais e regras de grupos interativos, guiados por convicções políticas, em busca de objetivos imprecisos – o futuro desejado. A maioria deles mencionará o que ouviram dizer, o que as fontes informaram… por critérios outros, quase sempre, subjetivos.

Na meia-idade, passei uma década sem revisitar minha Terra Natal. Quando regressei, “as curvas do rio estavam diferentes, com tamanhos, dimensões e direções que contrariavam minhas propaladas lembranças. Apenas o sentido da correnteza era o mesmo.” Porque, meus sentidos mostravam que o que eu havia sentido, guardado e contado a tantos … era o que eu sentia ao contar o passado, ao descrever o ausente. Ao falar para quem nunca esteve lá, eu descrevia minhas nostalgias e não as situações e os acontecimentos reais vividos no passado.

Minha mente – sem más intenções ou segundas intenções – contava meias-verdades, verdades parciais ou, até mesmo, inventava histórias, interpretava cenários e fatos, procurando dar veracidade e brilho às minhas ingênuas lembranças.

Se até eu mesmo me assusto com as variantes, atalhos, desvios e volteios que crio involuntariamente, vamos imaginar possíveis transigências de um repórter que se reporta a lugar e experiência que nunca esteve/teve… Mesmo que o jornalista esteja presente em todo o transcurso, sempre descreverá as impressões, as intenções pessoais e os mandados do editor/dono do jornal/revista/partido político/comitê científico/ …

Os historiadores registram – oficialmente – as opiniões deles sobre o que aconteceu no passado; alinhavam as informações que coletaram, preenchendo os vazios do quebra-cabeça com suposições de enredo histórico. Como meteorologistas que tentam prever as variações climáticas, sem jamais se reportarem aos anúncios falsos.

Todos os textos escritos contêm doses de ficção; quanto mais convincentes, mais fictícios podem ser. O perigo do convencimento está em encantar o leitor com aparências de realidade. Basta recortar e comparar afirmações de um mesmo livro de História para encontrar discrepâncias e, até, contradições.

Quando leio poesias, contos e romances escritos por pessoas com quem convivi, percebo a distância entre o que eles dizem que viveram (e escrevem em seus livros e autobiografias) e o que fato aconteceu. (Ou eu também estarei divagando?) Se eu fosse louco de tomar como realidade o que escrevem meus colegas escritores, estaria corroborando e colaborando para convencer os leitores de que aquilo foi – de fato – o que aconteceu e que, naquela época, as pessoas viviam daquela forma. Que o mundo teria sido aquele. Sim. Em parte, pode ter sido. Os floreios são fantasias.

Se não devo confiar nem na minha memória do que vivi, como vou confiar no que os outros escrevem do que os nossos ancestrais viveram?

Se minha memória trai a mim mesmo, quanto posso enganar a quem lê o que escrevo?

Que dirá, nas redes sociais…

  • Dicionário eletrônico Houaiss

PEDRAS E PESSOAS

Construímos hospitais com altas tecnologias / descuidamos da saúde;

Construímos escolas e empregamos doutores / reproduzimos velhas teorias;

Construímos teorias científicas / praticamos achismos;

Construímos leis e regras / transgredimos sem escrúpulos;

Construímos monumentos imponentes / veneramos ídolos patifes;

Construímos templos e santuários / comercializamos a espiritualidade;

Construímos amplas rodovias / dirigimos com imprudência;

Construímos estradas / não percorremos caminhos.

Os bustos são maiores que as obras.

ENTRE O SONHO E A REALIDADE

Somos compostos de matéria e espírito.

 

Nem sempre os dois caminham juntos:

às vezes, o corpo quer o que a mente nega;

outras, a mente quer o que o corpo não pode.

 

Vivemos assim entre o sonho e a realidade.

A realidade nos parecendo sempre limitada,

com urgente necessidade de ampliação;

o sonho se colocando tão além,

longe do alcance das nossas mãos.

 

Queremos

o abraço, o carinho, o afeto…

Sem abrir mão de nossas regras,

de nossas vontades,

de nossos desejos.

 

Queremos

o conforto e a segurança de uma família,

mas, também, a liberdade e a privacidade

negadas pelos familiares.

 

Queremos

a autonomia, a independência, o poder…

Porém, com eles, perdemos a convivência,

a  ajuda, o mimo, o aconchego, a proteção.

 

Queremos

silêncio ou música,

jejum ou extravagância,

abstinência ou luxuria,

distância ou abraços,

sol ou chuva, …

conforme nossa mente ou

conforme nosso corpo

alternam nossos desejos.

 

Estamos eternamente insatisfeitos,

somos completamente incompletos.

ASAS OU MÃOS?

Ao contemplar o voo dos pássaros,

podemos admirar as acrobacias ou

invejar a possibilidade de voar.

 

As asas que utilizam o ar como suporte

também cobrem o corpo quando chove,

servindo de telhado e de abrigo.

 

Ah! Se pudéssemos voar,

viajar por sobre as cabeças humanas,

e pousar nos ramos das árvores…

 

Porém, nossos corpos são tão pesados

quanto os problemas que criamos

em nossas mentes ‘inteligentes’…

 

admiramos o que não temos e

esquecemos do privilégio

de ter braços, mãos e dedos.

 

Esquecemos da preciosa ferramenta

que máquina alguma substitui

em sensibilidade e em habilidade.

 

Com braços, mãos e dedos,

acariciamos, colhemos alimentos

e construímos nossas casas.

 

Sem braços, mãos e dedos,

o pássaro depende do bico

para tecer, construir ou se defender.

 

Um só bico e não duas mãos.

Sem polegar opositor e com

um olho em cada lado da cabeça.

 

Com o mesmo bico que canta,

o pássaro esgravata o chão,

caça, come e constrói o ninho.

 

O bico que alimenta os filhotes

é o mesmo que retira as fezes

para manter a casa limpa…

 

Com o bico, os pássaros

limpam a pele e o ninho,

únicos abrigos e hospedaria.

 

Usam as asas para voar,

cobrir o corpo na chuva ou

se proteger contra o frio.

 

Abrigam apenas a si mesmos,

sem chances de hospedar

companheiros ou namorados.

 

Pássaros e humanos,

com corpos tão diferentes,

pensam as mesmas coisas?