DIVISÃO

Meu dilema…

 

O corpo está em forma, anseia por amar

e o amor se oferece em abundância e vigor.

 

Porém, me amo mais;

meu corpo ama a si mesmo mais do que tudo.

 

Amo o vôo sobre o abismo,

a ousadia de amar.

 

Mas, amo mais o conforto,

o aconchego da casa

e a vida tranqüila.

 

Renuncio à aventura,

em nome da paz.

 

Acima de tudo, se possível,

o sossego de nunca cair.

 

Gosto da claridade, mas

adoro a penumbra da meia luz.

 

Se na primeira eu vibro,

na segunda, repouso.

 

Sei que posso me perder

no consumo da luz …

ou na inércia da solidão.

 

Vivo dividido entre você e eu.

O TEMPO DA VIDA

A vida tem o tamanho dela

e não o tamanho que eu quero:

é aquele tanto… e só.

 

Posso ter alguns amigos,

mas não todos os que gostaria de ter.

 

Muitas pessoas vivem ao meu redor,

mas só consigo conversar com algumas;

não dá tempo de conversar com todas.

 

São tantas as palavras

a serem ditas a tantas pessoas,

mas o tempo da vida

só me permite que diga algumas;

aquelas possíveis.

 

O dia tem esse tanto… e não mais.

Só posso fazer o que cabe no dia…

o resto ficará por fazer.

 

Cabe na vida, a vida que eu levo;

o resto será, para sempre,

sonho e vontade de viver.

 

São poucas as árvores

que consigo plantar em uma vida;

o resto ficará na semente,

esperando por nascer…

 

As palavras escritas são

o tanto que consigo escrever

e não todas as desejadas.

Nem todas as poesias,

nem todas as prosas

que nascem em minha mente

serão escritas… somente serão

as que couberem na vida.

 

Nem todo amor que posso será amado;

só um tantinho assim… não dá tempo…

o resto ficará na esperança de amar.

 

Impossível ler todos os livros,

ver todos os filmes,

viajar todas as viagens…

 

Por mais que eu queira

responsabilizar o tempo,

a escolha será sempre minha:

o quanto eu sonho,

quantos sonhos realizo,

o que desejo viver,

o que de fato vivo…

 

Tudo são escolhas…

dentre infinitas possibilidades.

CISCO NA PLATEIA

Pedro participava das atividades da Associação consciente de que poderia evoluir e contribuir para as melhorias educacionais.

Além das reuniões mensais para estudo de alternativas didáticas a serem testadas nas práticas pedagógicas, uma vez por ano, acontecia o grande evento, para os quais eram convidados palestrantes titulados de renome nacional, com trabalhos publicados sobre novas teorias de ensino-aprendizagem.

Para o IX Seminário de Ideias Inovadoras, foi convidado um professor catedrático da mais afamada universidade do País, pós-doutor em instituição norte-americana e autor de um trabalho científico com o sugestivo título: OS DETALHES PODEM MUDAR A EDUCAÇÃO.

Porém, o preço da palestra abarcava valores acima de qualquer detalhe. Por isso, os associados buscaram patrocínios e desembolsaram parte de suas economias para poder contar com informações que poderiam mudar as perspectivas salariais deles.

Como pessoa importante, o intelectual exigiu tratamento principesco e impôs condições adicionais: o espaço reservado ao público deveria estar completamente tomado e todos deveriam ouvir a exposição erudita no mais completo silêncio.

Depois de lida a extensa lista de títulos e de qualidades do palestrante, ele iniciou a explanação do tema contratado: INFLUÊNCIAS DO PROFESSOR NAS DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM DO ALUNO. Imaginava-se que ele fosse revelar soluções para os desafios escolares daquela época.

No entanto, o pós-doutor divagou sobre as ideias brilhantes desenvolvidas durante o período em que ‘esteve no exterior fazendo o pós-doutorado’. O monólogo desfaleceu a curiosidade dos silenciosos espectadores, que já lutavam contra os cochilos. Então, minúsculos bilhetes começaram a circular, encaminhados ao mais ousado daquela plateia, sugerindo que ele interrompesse o solilóquio monocórdio com alguma pergunta ácida.

Inicialmente, evitando aceitar o papel de algoz, o instigado conteve-se. Entretanto, o palestrante apenas preenchia o tempo com palavras descompromissadas e o porta-voz eleito por unanimidade também perdeu a paciência, ergueu a mão e solicitou o direito de interromper a cantilena.

Como foi escrito acima, não interromper o palestrante estava entre as condições exigidas por ele. Por isso, exasperou-se; quase se enfureceu. O corajoso psicopedagogo aproveitou o silêncio da autoridade autoritária para perguntar: “Qual o título da sua tese de pós-doutorado?”

A fúria saltou pelos olhos do palestrante. Fúria que encorajou ainda mais o inquiridor: “Qual o título da sua tese de pós-doutorado?”

Talvez temendo maiores terremotos ou na esperança de esmagar o insignificante professor com o peso de seu trabalho científico, o palestrante remexeu os papeis sobre a mesa e, depois de olhar energicamente para o interlocutor, leu o que estava escrito na capa do documento:

FUNÇÃO DA DUZENTÉSIMA VIGÉSIMA SÉTIMA LETRA DA PÁGINA TREZENTOS E DOZE DO QUINTO LIVRO DA ENCICOPLÉDIA UNIVERSAL NO CONTEXTO DAS IDEIAS DESENVOLVIDAS NO CAPÍTULO DEZESSETE DO LIVRO DOIS, QUE TRATA DA SÍNTESE EPISTEMOLÓGICA DAS HIPÓTESES DE UNIVERSALIZAÇÃO DOS CONHECIMENTOS DO SER HUMANO A CERCA DA FORMAÇÃO GEOLÓGICA DO PERÍODO INTERGLACIAL

Dentro das condições contratadas, o restante do público manteve o mais absoluto silêncio. O que favoreceu ao porta-voz para emitir uma segunda pergunta: “O senhor está falando da sua tese de pós-doutorado ou do tema que consta aqui na programação do evento?” (E mostrava o prospecto.)

Aí, já era demais! Um professorzinho insignificante questionar os caminhos usados para se chegar às causas das dificuldades de aprendizagem dos alunos…

O palestrante buscou com os olhos o apoio da Presidenta da Associação para rebater a arrogância do insolente, que continuou a molestar: “Pelas suas próprias palavras, fica evidente a distância entre o que esperávamos ouvir como ferramenta para nossas ações educativas e as profundezas do foco de sua tese de pós-doutorado.”

A situação gerou profundo mal-estar na plateia. Apesar da evidente distância entre o tema contratado e a autopromoção do docente da famosa universidade, a maioria dos psicopedagogos reagiu com indignação. Os mesmos que mandaram bilhetes instigando o desmascaramento do convidado bem-pago sem proveito pedagógico se levantaram contra Pedro, como se fosse ele o único insatisfeito com a nulidade da palestra.

A unanimidade mudou de lado. De repente, a plateia levantou-se em defesa da honra do palestrante e exigiu que o insolente se retirasse, em silêncio. Antes de tudo o respeito à hierarquia dos títulos acadêmicos; logo em seguida, a benevolência para com o convidado.

Pedro pôs-se em pé, passou pela mesa oficial do evento e, com olhar cínico, varreu os colegas psicopedagogos. Carregando sua pasta recebida na inscrição para o IX Seminário de Ideias Inovadoras, caminhou resoluto para a porta, chegou ao estacionamento, embarcou no automóvel e foi para casa.

No dia seguinte, recebeu o comunicado de que fora banido da Associação.

NOITE DE ESTRELAS

Chegamos

aos pés do cruzeiro que abençoa o Araguaia,

na hora escura que dá início à noite,

como dois peregrinos perseguindo um sonho.

 

No começo,

o rio era apenas um vulto deslizando;

a lua brilhava no céu máximo

e a estrela vespertina se deitava nas águas.

 

Aos poucos,

uma luz – não sei se dos meus olhos –

foi dando contorno ao rio que não dorme.

Passou um barco, quebrando o silêncio.

 

De repente,

a brisa sul soprou e trouxe para mim

o perfume de um banho – cheiro de mulher –

nascido de uma flor delicada e resistente.

 

Quando

a mão procurou a mão para doar o carinho

que tanto ansiava, a porta se fechou

por estranha força que deseja e não quer.

 

Durante

o tempo de espera, a contemplação lenta

da noite brilhante, da beleza feminina;

e a fala sincera contando de sonhos.

 

Depois

o vagar incerto pelas ruas descalças,

procurando desculpas para fugir do abraço;

com medo da entrega, do carinho e do amor.

SAUDÁVEL POLIGAMIA

É dia dos namorados…

como deve ser todo dia.

 

Não temos em comum

apenas filhos…

 

Juntos vivemos primaveras,

vencemos crises…

 

E não foi uma vida só,

um lugar só,

de um jeito só.

 

Foram tantas fases,

tantas vezes você morreu

e tantas renasceu,

que acabei vivendo

com várias mulheres…

 

Mesmo tendo saudades

das anteriores,

fico com a última.

PROPAGANDA

A propaganda nada faz; ela é feita.

 

Ela é feita para difundir o que alguns seres humanos

julgam ser importante para os outros;

para que os outros pensem e ajam de acordo com o propalado.

Muitas vezes, que os outros façam aquilo que eles mesmos não fazem.

 

Podem ser propagadas ideias, teorias, práticas, comportamentos, exemplos, …

No entanto, mais importante do que identificar o que é propagado

é saber a intenção de quem propaga.

 

Ideias podem ser verdades, mentiras, meias-verdades ou meias-mentiras.

As mentiras absolutas são vulneráveis ao discernimento.

Mas, como identificar a parte que é verdade e a parte que é mentira?

 

Infelizmente, a propaganda tem sido instrumento de enganação,

de impor meias-verdades com o objetivo de tirar proveito

da ingenuidade popular, da boa-fé das pessoas.

Tirar vantagens sociais, econômicas ou políticas.

E, tem pressa, pois precisa chegar antes que o espírito desperte

e analise com criticidade as falsas bondades.

 

A propagação de princípios éticos

independe de urgência e foge de absolutismos;

ela se fortalece na diversidade de pensamentos.

 

Nos meios de comunicação, em geral,

a propaganda tem a função de enganar,

de criar necessidades inúteis,

de explorar os incautos.

 

A propaganda ‘profissionalizada’ se alimenta de mentes ingênuas;

porém, enfrenta resistências nas mentes críticas.

Por isso, os profissionais das agências de propaganda,

principalmente da propaganda política,

precisam manter o povo na ignorância,

precisam garantir um rebanho de ingênuos.

Simultaneamente, campo para semear ilusões

e vetor para propagação de ‘epidemias ideológicas’.

 

Assim, os falsos líderes e os ídolos ocos

são plantados e cultivados em massas acéfalas.

A população domesticada passa a executar,

fielmente, as ideias desses charlatões.

Executa inconscientemente, hipnotizada,

incapaz de pensar criticamente,

de tomar decisões, de fazer escolhas.

 

Como as pessoas não pensam por si mesmas,

são pensadas pelos outros.

 

20:06h – 09.03.2011

EXTEMPORÂNEO

Num repente,

iniciou o tropel

batido pelos oito cascos

sobre a rua preta.

 

Eram duas;

quase iguais por fora,

bem diferentes por dentro.

Vinham em fila tão reta

que os pés da que seguia

pisavam os pisados

dos pés da madrinheira.

 

A que conduzia a marcha

carregava dois chifres

crescidos num redondo perfeito

que faltava fechar cinco dedos

num alto do tamanho da cabeça.

 

Seguia altiva,

com sobra de peso,

levando um corpo firme

de determinação pela consciência

da liderança assumida.

 

A última,

que era mocha de nascença,

batia  com mais força

todo medo de suas pernas magras

como se quisesse furar o asfalto.

Balançava vigorosamente quatro tetas vazias

em movimento oposto ao  corpo.

 

Parecia vestirem couros

de fumaça  chovida,

pois o cinza adensado no lombo

ia branqueando na descida.

 

Bem em frente ao olhar,

a segunda mugiu

um desespero longo,

contando do medo

de andar à procura de um nada

perdido nas lonjuras além.

 

Ao olhar os outros olhos,

ficou evidente

que essa estranheza

era coisa particular,

porque, no demais,

ninguém se importou

com a passagem.

JOGOS SEXUAIS

Os rebanhos humanos seguem em busca de saciedade.
E, saciados, mantêm, na lembrança, a sensação do prazer
sentido ao saciar a fome, a vaidade e os desejos.

O prazer norteia a marcha dos rebanhos que buscam
alimentos para satisfazer o corpo,
emoções para satisfazer a libido,
poderes para satisfazer o orgulho ou
dinheiros para comprar alimentos, emoções e poderes.

Saciadas as necessidades naturais,
os humanos criam artificialmente novas necessidades
para obter repetidas oportunidades de sentir prazer,
comendo, acariciando, comprando, subjugando e dominando.

O saciamento de necessidades, de desejos e de vaidades,
entretanto, cobra altos preços. Nada é de graça.
Quem pode saciar uma necessidade aproveita o ensejo
para capitalizar espaços de dominação e cotas de poder.

Talvez, a necessidade de pertencimento
seja a força que une e comanda a massa humana
que segue atrás de bandeiras de luta
desenhadas com ingenuidade e/ou má-fé.

Por detrás de slogans, palavras-ônibus e discursos
– hinos instantâneos e efêmeros –,
existe um emaranhado de correntes
que ovelhas e cordeiros ignoram ou fingem não ver.

Cidadania, democracia, direitos humanos, preconceito,
assédio sexual, racismo, desigualdade social, trabalho escravo, ...
os catecismos conseguem uniformizar a marcha do rebanho.
Cantando a mesma canção, ovelhas e cordeiros
se sentem seguros para caminharem na mesma direção.

Dentre as estratégias usadas pelo comportamento tribal,
está a cortina que encobre os jogos sexuais.

Robôs conduzidos por inteligência artificial
estão imunes a atrações sensuais,
hormônios provocadores, agressões físicas e assassinatos.
Seres humanos – por enquanto – ainda agem e reagem
por estímulos, excitações, provocações e artimanhas sensoriais.

É ingenuidade ou hipocrisia se esconder
atrás de ondas sociais ou de discursos superficiais
sem analisar as relações lógicas de causa-efeito
que ocorrem na fisiologia dos corpos.

As ondas moralistas se assemelham a religiões politeístas
com deuses virtuais instáveis e sacerdotes eventuais
que usam e dominam as ferramentas eletrônicas para subjugar
instintos, sentimentos, ciclos naturais e eventos biológicos.

Acondicionam os fenômenos reprodutivos
em fôrmas ideológicas anônimas e massacrantes:
trituram os grãos para formar uma massa
de aspecto aparente uniforme.

Usam a mídia e por ela são usados.

As árvores que expõe flores para as abelhas polinizarem
e que geram frutos com sementes férteis distribuídas pelas aves
devem ser submetidas às vontades humanas,
produzindo lucros para o mercado capitalista. 

Manipulam as videiras para produzir uvas sem sementes
durante todo o transcurso anual e em todas as regiões;
negam o convívio de casais de animais em primavera:
confinam, inseminam, engordam e abatem.

Escravizam animais e vegetais ao deus Consumo,
usando engenharias genéticas e transgenias.

As pessoas devem controlar seus hormônios e desejos,
fingindo desconhecer as reações naturais do próprio corpo,
como se as glândulas femininas não liberassem estrogênio
e as glândulas masculinas não liberassem testosterona;
esses odores devem ser abafados com perfumes potentes.

Porém, a indústria e o comércio podem livremente
explorar a moda baseada em atrativos sexuais e
obter lucros usando imagens e imaginações
dos próprios consumidores fanatizados, que são
o princípio e o fim dos processos consumidores.

A violência visível pode encobrir
a violência simbólica e a manipulação,
sejam elas conscientes, intencionais ou ingênuas.

Muitos buscam gozar prazeres e tirar vantagens
sem compensar as vítimas em ambos os lados da guerra.
Os espertos usam os mantras para ganhar palco
e para cobrar indenizações pelas reações alheias,
se fazendo de vítimas dos jogos sexuais de iniciativa própria.

Sítio Itaguá, das 03:08 às 04:10 horas do dia 01jan2017.