Até a década de 1960, a Educação no Brasil era privilégio dos filhos da elite social e de uns raros pobres determinados a estudar, que conseguiam superar as enormes dificuldades pessoais e romper as barreiras socialmente impostas.
Porém, a partir da Revolução Militar de 64, o governo brasileiro assinou um convênio com os Estados Unidos, que previa ações estruturantes, dentre elas, a expansão do acesso à escola para todas as crianças e algumas oportunidades de formação técnica-profissional.
Para normatizar a implantação dessas mudanças educacionais, foi promulgada a LDB/1971 que extinguiu os cursos primário, ginasial e científico. Até então, a maioria deles estava sob a tutela de instituições particulares; na quase totalidade, oferecidos em escolas mantidas por congregações religiosas.
O governo revolucionário pretendia dominar a formação dos ‘novos brasileiros’, como pessoas e como cidadãos. Por isso, uma das primeiras medidas foi afastar as instituições e os métodos tradicionais; os novos cursos passavam a ser administrados pelos governos estaduais e, décadas depois, por parcerias entre os governos municipais, estaduais e federal.
De um modo geral, todas as orientações foram implantadas e persistiram, com alguns ajustes. No entanto, uma das opções pedagógicas teve duração efêmera, porque se mostrou equivocada e preconceituosa: formar turmas segundo o desempenho escolar e, para os iniciantes, segundo o desempenho escolar dos parentes mais velhos (irmãos, pais ou tios).
Na época, as proles eram abundantes e havia muitos jovens em idade escolar. Por isso, mesmo em pequenos povoados, foram formadas muitas turmas para cada série escolar. E, pelo critério elitista adotado, nas turmas ‘A’, estudavam os melhores alunos da região e/ou os ‘filhos das melhores famílias’, mesmo os que fossem pouco estudiosos. Na sequência decrescente de ‘capacidade intelectual’ e em ordem alfabética crescente, seguiam as demais turmas.
Em uma das escolas em que Maria Alfabetizadora trabalhou, as sextas séries do Ensino Fundamental alcançavam a letra ‘H’; a ‘6ª série H’ era a última e mais ‘fraquinha’, com apenas vinte alunos ‘repetentes’ ou candidatos à repetência. Dentre eles, o José Ignoto, que era considerado, pela equipe docente, ‘o mais fraco de todos’; por isso, recebeu o rótulo de incapaz de aprender e os professores estavam dispensados de tentar ensiná-lo, pois seria apenas desperdício de tempo e de dinheiro.
Porém, aconteceu de a avó do José Ignoto morrer de velhice.
Nas aldeias, os velórios eram eventos obrigatórios para toda a comunidade; o luto era coletivo. Por isso, naquele bairro operário, os colegas de turma do enlutado sempre visitavam o velório, como gesto de solidariedade e de espírito cristão.
Para cumprir a obrigação, a diretora da escola solicitou que Maria Alfabetizadora acompanhasse os alunos da ‘6ª série H’ e que representasse a escola na cerimônia, conduzindo, inclusive, as orações fúnebres. Afinal, a escola era autoridade cultural.
As crianças estavam acostumadas a caminhar até a cidade distante cinco quilômetros, para acompanhar os pais ou para, em excursão escolar, participar dos jogos estudantis, como atletas e/ou torcedores. Por isso, poderiam caminhar três quilômetros, sem maiores problemas. E, depois do compromisso, todos poderiam ir para suas casas, algumas delas até próximas do local.
Assim, a pequena procissão iniciou a caminhada em alegre algazarra: como se fossem fazer um piquenique. Isso até deixar a estrada principal e começar a subir a ladeira estreita. A partir daí, todos deveriam caminhar em silêncio respeitoso. Essa atitude favorecia a audição da cantilena fúnebre: uma voz juvenil conduzia as orações e parecia ser a voz do José Ignoto.
De fato: chegando cada vez mais perto, ia aumentando a certeza de que a autoridade eclesiástica, naquela cerimônia, era o ‘mais fraco dos alunos da turma’. E com que firmeza e com que convicção conduzia o culto!!! Maria Alfabetizadora tomou um choque de realidade. E as crianças também demonstraram surpresa, admiração e respeito.
Tendo participado de um bloco de orações e depois de passar ao lado do caixão persignando-se, a pequena procissão voltou para a estrada e para uma nova realidade: lá na casa dele, o José Ignoto era o mais letrado, lia com desenvoltura e conduzia o culto como um líder legitimado pela família.
Naquele final de tarde primaveril, os mitos e os preconceitos foram rompidos e a realidade mais cristalina inundou as mentes: o José Ignoto desempenhava na escola o papel de ‘pior aluno’, porém, em casa, livre das fôrmas e dos rótulos, era uma pessoa letrada, merecedora da admiração e da esperança da Família Ignoto.
Tessari, Mario. Maria Alfabetizadora. Jaguaruna, Edição do autor, 2014. (pg 42)