VÍTIMA DA HOSPITALIDADE

Quando menino, minha mãe me mandou levar alguma coisa para a casa de uma família de descendentes de alemães. Como minha mãe ganhava dinheiro costurando, deve ter sido para entregar algum vestido, camisa ou calça encomendada. Fui um pouco antes do meio-dia.

Eu conhecia ‘de longe’ a família de tons meio dourados, na pele e nos cabelos. As sardas – ilhas de pigmento mais adensado que, agora, o dicionário me conta que são ‘efélides’ ou lentigos’ – cobriam parte dos rostos, com maior concentração nas áreas mais expostas à luz solar, e cabelos entre louros e ruivos cobriam as cabeças. Os sotaques pronunciadamente germânicos completavam as nossas disparidades.

Ah! E eles costumavam almoçar cedo. E estavam almoçando. E minha timidez não encontrou palavras para me livrar do convite quase autoritário.

Mais uma diferença cultural. Os meninos De Negri se serviam do que escolhessem à mesa e nas quantidades desejadas; a mamãe loura serviu o prato de cada menino. Inclusive, o meu.

A bondosa mulher colocou diante de mim um pouco de arroz e diversas bolas de sangue brilhante, que ia tingindo o prato, o garfo e o arroz. Me senti encurralado. Meus pais nos disciplinaram a sermos muito corteses, afáveis, até. Entretanto, aquele sangue vermelho vivo trancava de náuseas a minha garganta.

Depois de um longo exercício mental – que eles tomaram como tempo em que eu rezava em silêncio… – garfei a primeira bola rubra, me concentrei, fechei os olhos e enchi a boca… com um gosto desconhecido, mais desconhecido ainda que o sabor que eu imaginava ser o de sangue cru. Ainda bem que era macia e meio adocicada… Mastiguei com os olhos fixos num retrato de família pendurado na parede em minha frente.

Não doeu. Mais uma, mais uma, mais uma, … Ufa!!! Sobrou o arroz com as beiradas ‘ensanguentadas’. Porém, nem deu tempo de avançar nos grãos; a mulher, contente ‘por eu ter gostado tanto das beterrabas’, depositou no meu prato mais uma farta remessa…

3 comentários sobre “VÍTIMA DA HOSPITALIDADE

  1. Nos pratos da dona Frida eu me lembro mais do tomate cortado com cebolas, e salpicado de pimenta do reino. Das beterrabas eu lembro mais das que cobriam as prateleiras, em forma de compota.

    Curioso ler sobre beterrabas agora. Neste ano de 2020 eu decidi que comeria beterrabas. Cruas. Cozidas fica para um próximo ano. Vamos devagar que ainda vamos chegar longe.

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