Recontagem de ÚLTIMA TRAVESSIA

Ouvi como anedota. Entretanto, o cenário, o tema e a insolência para com o homem humilde provocaram em mim uma reação ética e uma reflexão filosófica.

Um barqueiro ganhava seu sustento transportando pessoas para a outra margem do imenso rio. Não havia pontes. Era o único meio de transporte disponível. Em geral, transportava pessoas conhecidas, moradores das redondezas ou alguém que queria visitar algum familiar que morava além da outra margem.

Porém, num final de tarde, um homem com aspecto muito diferente dos ribeirinhos contratou uma travessia. As roupas e a pasta demonstravam ser uma pessoa da cidade. Mais que isso, cheio de si, parecia orgulhoso, cheio de si, semostrador.

Logo que a canoa saiu do embarcadouro, perguntou:

– Você conhece a Grécia?

– Grécia? Ela mora por aqui?

– Não, não. Não é uma mulher. A Grécia é um país distante e muito importante, porque foi lá que nasceu a Filosofia. Você deveria conhecer. Você não sabe o que está perdendo…

O humilde barqueiro baixou a cabeça. O objetivo dele era bem simples: levar pessoas de uma margem à outra.

– Você sabe Filosofia?

O barqueiro continuou remando, desinteressado dessa outra… possível … Seria outra nação? Seria uma mulher? Uma cidade?

Mesmo entendendo o silêncio e percebendo a inutilidade de lições, o homem explicou:

– A Filosofia investiga os princípios, os fundamentos e as essências da realidade imanente. Você não sabe o que está perdendo…

O barqueiro nem deu ouvidos; permaneceu atento à força da correnteza e aos movimentos arriscados do passageiro que podiam jogar água pra dentro da embarcação.

– Você sabe por que o avião consegue voar?

Pobre homem!!! Nem sabia da existência de aviões… Via muitos pássaros voarem… Até as folhas secas voam levadas pelo vento… Mas… avião… nem imaginava…

– Não. Não sei, não.

– Você não sabe o que está perdendo…

O barqueiro se sentiu mais pobre ainda… Nada possuía e ainda estava perdendo muita coisa…

– Você já leu Lucas Visentini?

– Lucas, eu conheço. Mas, ler o Lucas… Lá isso eu não sei.

– Você não sabe o que está perdendo…

O homem estava mesmo espezinhando o seu transportador.

– Qual a voltagem da energia elétrica por aqui?

O barqueiro ficou ainda mais confuso. Energia, ele até sabia o que era… Voltagem? Seria a volta de alguém? De dona Elétrica, talvez… Tem cada nome por aí…

– Nunca ouvi falar…

– Você não sabe o que está perdendo…

E assim, enquanto o barquinho singrava as turbulentas e agressivas águas do imenso rio, seguiu o desdenhoso interrogatório.

Além dos perigos naturais de se navegar a imensidão do rio em uma minúscula canoa, um iminente naufrágio ameaçava a vida de ambos, por causa da imprudência do passageiro.

No limite de sua paciência, o barqueiro perguntou agressivamente:

– O senhor sabe nadar?

– Nunca precisei aprender… – ironizou.

– Se continuar enchendo a igara de sabença e saracoteando sem parar, a canoa vai virar e o senhor vai perder tudo o que sabe. Até a própria vida…

PEDOFILIA HUMANA

À medida que sobrevivo por sete décadas, percebo que meu olhar alcança outros níveis, outros horizontes ou que eu consigo visualizar o que estava perto (porém, em segundo plano) e permanecia ‘invisível’. Talvez, minha mente envelhecida, com melhores configurações, consiga ultrapassar o imediato e penetrar através das frestas do senso comum.

Durante a gestação, os meus olhos e a minha mente em construção devem ter visto, inicialmente, escuridões e, gradualmente, penumbras. Na primeira infância, reconheceram rostos familiares, objetos coloridos e fontes de alimentos, como mamas e mingaus? Até os três anos, dispensado de análises éticas e/ou filosóficas, devo ter visto o mundo apenas como paisagem dinâmica.

A ‘idade da razão’ surgiu aos sete anos? Talvez, por aí. Quais as análises que eu fazia aos dez anos? E aos quinze? O que o Mario neo-adulto passou a pensar? Quais os critérios éticos do Mario quarentão? Em que fase radicalizei minhas visões de mundo? (aprofundei raízes…)

Justificadas as minhas idiossincrasias (predisposição do organismo que leva o indivíduo a reagir de maneira peculiar à influência de agentes exteriores/Houaiss), vamos ao tema proposto.

Até envelhecer, lutei para acomodar a ideia de pedofilia como vício de “perversão que leva o indivíduo adulto a se sentir sexualmente atraído por crianças”. Apenas de seres humanos?

Esparramei minha atenção para o reino vegetal e procurei por eventos em que uma planta adulta teria tentado atos reprodutivos com uma planta recém-nascida, com brotos tenros ou com plantas sexualmente imaturas. Nada. Nenhum indício… Concluo que faltam evidências de pedofilia vegetal.

Haveria pedofilia entre os seres microscópicos? Está lançado o desafio…

Entre humanos existe. Humanos são animais. E os outros animais? Vasculhei as prateleiras mais antigas de minha memória, catalogando imagens registradas durante a infância, quando adolescente, durante a juventude e depois de adulto.

Galos, galinhas, pintos; cachaços, porcas, leitões; baguais, éguas e potrinhos; cães, cadelas e filhotes; gatos, gatas, gatinhos; patos, patas, patinhos; marrecos, marrecas e marrequinhos; perus, peruas, peruzinhos; … Nunca vi machos adultos dessas linhagens assediando os recém-nascidos, os desmamados ou os jovens. Pelas minhas interpretações, as danças sensuais animalescas iniciavam depois da maturidade dos animais domésticos.

Os pássaros machos assediam os filhotes nos ninhos? Os passarinhos em treinamento de voo são perseguidos por machos tarados? Quem já presenciou alguma cena comprometedora? Existe pedofilia entre tatus, capivaras, cotias, gambás, lebres, veados, quatis, onças, leões, girafas, elefantes, cobras, baleias, avestruzes, hienas, chipanzés, gorilas ou micos?

Os animais selvagens seriam mais éticos que os humanos? Mas, a ética e a moral não são preceitos humanos? Pedofilia seria um ‘efeito colateral’ da ‘inteligência superior’ do Homo Sapiens? Os seres humanos seriam mais animalescos e selvagens que os ‘animais inferiores’?