Útero: nosso primeiro espaço para habitar e para aprender. Vida boa. Com riscos, óbvio: “Viver é arriscado.” Entretanto, receber alimentos completos através do cordão umbilical, sem precisar mastigar, sem a obrigação de se livrar de urinas e de fezes. Mesmo sendo o primeiro paraíso, ficar ‘pra sempre’ ali seria um desperdício. Se houvesse a possibilidade de perguntarmos para os fetos qual seria a vontade deles, receberíamos respostas semelhantes às nossas: “Não. Quero ver o mundo, caminhar, correr, comer, abraçar, ... Já tô cansado de ficar preso nessa escuridão.” Ao ser libertado dessa primeira situação social (de ser invisível, desejado ou rejeitado) o neonato é colocado no berço, a segunda estação vital (estação = onde se está por um tempo...). Bom, também. Mamadas, cafunés, carinhos, palavras infantilizadas, ... Por sorte, não recordamos do desconforto de mijadas e/ou cagadas... Nessa fase, podemos ver pessoas, objetos e paisagens; aproveitamos para aprender mais que na fase inicial. Muito bom, mas... melhor crescer logo, se livrar das fraldas, engatinhar, andar, mexer em tudo que alcançar, ... Ser criança tem muitas vantagens, naturais e/ou culturais: proteção, casa e comida de graça, admiração e elogios, chance de aprender muito mais... Fase de aprender quase tudo; até, de aprender a entender e a falar vários idiomas. No entanto, as crianças querem crescer logo pra poder ir pra escola, andar de bicicleta, jogar bola, subir nas árvores, ... Seria horrível permanecer criança a vida inteira. Terceira estação vital: a escola obrigatória. Poder sair de casa, como, tempos antes, foi desejo fugir do berço. Começam as responsabilidades, alguns colegas belicosos, mas... tem cirandas, brincadeiras, jogos, malandragens, gritarias, ... e o aconchego de uma casa pra voltar quando cansa e/ou sente fome. Na escola, aprendemos ainda mais que nas fases anteriores. Principalmente, fora da escola, com os amigos, com os livros, com ... Por outro lado, a lei impede que a gente deixe a escola, os pais (e a Sociedade) obrigam estudar coisas chatas, ... há reprovações; às vezes, precisamos trabalhar para sobreviver, ... Enfim, adultos, senhores de si, com direito de trabalhar, de casar, ... Uma pequena parcela dos adolescentes ou dos neoadultos tem a sorte de poder continuar estudando, antes de se dedicar exclusivamente ao trabalho; de poder ‘cursar uma faculdade’, obter uma ‘graduação’. Quiçá, uma especialização, um mestrado, um doutorado, ... Fase ótima! Privilégio social, destaque intelectual, melhores oportunidades de emprego... Principalmente, possibilidade de melhores salários, de trabalhar menos e em atividades mais nobres, menos desgastantes. Apesar de todas essas regalias, os diplomados preferem avançar para a próxima fase de vida: trabalhar, conquistar autonomia: deixar de ser ‘universitário’, para habitar espaços profissionais, empresariais, sociais, ... Espera-se (inclusive os universitários esperam... ) superar a situação formativa para ser um(a) cidadã(o) completa(o). Desconheço alguém que quis permanecer ‘estudante universitário’ até os noventa anos. *** A Medicina considera inflamação um “processo patológico fundamental” pelo acúmulo de partículas nocivas ao organismo. Inchar e inflar podem ser palavras com mesmo sentido: aumentar além do normal. Podemos considerar que pequenas coisas da vida fetal podem saturar o estado saudável, levando ao desejo de avançar para a próxima fase ou abortar, abandonar o lar. O mesmo acontece com os bebês, com as crianças, com os adolescentes, com os jovens e com os universitários. Menos com os que ficam trancados em uma das fases (não conseguem avançar para a próxima): patinam e acumulam ‘partículas nocivas’ que inflamam, incham, saturam o processo, adoecem. Escolhem continuar a viver a fase que deveria ser passada; ficam presos no redemoinho de relações tóxicas. Comparando com inflamações corpóreas (tendinite, sinusite, apendicite, renite, otite, ...), podemos nomear o acúmulo de manias de cada fase por fetite, bebite, criancite, adolescite, estudantite, academicite, adultite, ... Ou seja, quando acumulamos resistências, evitando avançar e superar o status quo, não conseguimos ultrapassar aquela fase de vida e inchamos de convicções e de covardias, obstáculos para enfrentar os desafios da próxima etapa de vida. Fetos que continuam considerando suficiente viver passivamente no útero, bebês que se negam a andar e/ou a falar, crianças que preferem permanecer infantilizadas, eternos adolescentes, universitários ‘jubilados’ ou que não conseguem ir além das arcaicas teorias livrescas acumuladas, repetidas, decoradas e defendidas como dogmas, ... Além de conhecer, analisar e selecionar a herança cultural, precisamos e devemos dar o ‘passo adiante’, continuar a construção de saberes ou reformular velhas teorias. Prender a mente em pensamentos da fase anterior pode ser doença grave.
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PEDOFILIA HUMANA
À medida que sobrevivo por sete décadas, percebo que meu olhar alcança outros níveis, outros horizontes ou que eu consigo visualizar o que estava perto e permanecia ‘invisível’, em segundo plano. Talvez, minha mente envelhecida, com melhores configurações, consiga ultrapassar o imediato e penetrar através das frestas do senso comum. Durante a gestação, os meus olhos e a minha mente em construção devem ter visto, inicialmente, escuridões e, gradualmente, penumbras. Na primeira infância, reconheceram rostos familiares, objetos coloridos e fontes de alimentos, como mamas e mingaus. Até os três anos, dispensado de análises éticas e/ou filosóficas, devo ter visto o mundo apenas como paisagem dinâmica. A ‘idade da razão’ surgiu aos sete anos? Talvez. Quais as análises que eu fazia aos dez anos? E aos quinze? O que o Mario recém-adulto passou a pensar? Quais os critérios éticos do Mario quarentão? Em que fase radicalizei minhas visões de mundo? Quando comecei a me aprofundar nas raízes das questões? Justificadas as minhas idiossincrasias (predisposição do organismo que leva o indivíduo a reagir de maneira peculiar à influência de agentes exteriores/Houaiss), vamos ao tema proposto. Até envelhecer, lutei para acomodar a ideia de pedofilia como vício de “perversão que leva o indivíduo adulto a se sentir sexualmente atraído por crianças/Houaiss”. Apenas de adultos humanos? Esparramei minha atenção para o reino vegetal e procurei por eventos em que uma planta adulta tivesse tentado atos reprodutivos com uma planta recém-nascida, com brotos tenros ou com plantas sexualmente imaturas. Nada. Nenhum indício... Concluo que faltam evidências de pedofilia vegetal. Haveria pedofilia entre os seres microscópicos? Está lançado o desafio... Entre humanos existe. Humanos são animais. E os outros animais? Vasculhei as prateleiras mais antigas de minha memória, catalogando imagens registradas durante a infância, quando adolescente, durante a juventude e depois de adulto. Galos, galinhas, pintos; cachaços, porcas, leitões; baguais, éguas e potrinhos; cães, cadelas e filhotes; gatos, gatas, gatinhos; patos, patas, patinhos; marrecos, marrecas e marrequinhos; perus, peruas, peruzinhos; ... Nunca vi machos adultos dessas linhagens assediando os recém-nascidos, os desmamados ou os jovens. Pelas minhas interpretações, as danças sensuais animalescas iniciam com a maturidade dos animais domésticos. Os pássaros machos assediam os filhotes nos ninhos? Os passarinhos em treinamento de voo são perseguidos por pássaros tarados? Quem já presenciou alguma cena comprometedora? Existe pedofilia entre tatus, capivaras, cotias, gambás, lebres, veados, quatis, onças, leões, girafas, elefantes, cobras, baleias, avestruzes, carrapatos, bagres, hienas, chipanzés, gorilas ou micos? Os animais selvagens seriam mais éticos que os humanos? Mas, a ética e a moral não são preceitos humanos? Pedofilia seria um ‘efeito colateral’ da ‘inteligência superior’ do Homo Sapiens? Os seres humanos seriam mais animalescos e selvagens que os ‘animais inferiores’?
Nome de estradas, ruas, pontes, túneis, …
Em rodovias, os políticos colocam o nome de líderes paternalistas para que possamos transitar sobre eles; pisar, escarrar e jogar lixo neles. Menos mal que a maioria das pessoas logo esquece quem foi o laureado, ignora a fama concedida e passa a ver os letreiros das placas como símbolo grafado, pouco importando se com letras, algarismos ou desenhos. O vocábulo ‘homenagem’ deriva de homem, autoridade masculina, que concede às mulheres raras exceções, em espaços desprezados, temidos por eles. Assim, por obscura ironia vaginal, os homens nomeiam túneis e pontes em homenagem a mulheres idôneas, dignas e castas, para que sejam penetradas ou para que possam passar por cima delas. Para evitar e estar a salvo de reações dos violentados, estabeleceram em lei que só podem ser usados, nas placas informativas, nomes de pessoas mortas. São vinganças póstumas.
OS EXPLORADORES
Muito ativos desde pequenos,
choram por qualquer coisa,
exigem dedicação integral e
conseguem a atenção cobrada.
.
Só que começam engatinhar,
exploram o quarto, a casa, o quintal.
Remexem tudo e seguem adiante…
sempre sem limites.
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Da mãe,
exigem alimento,
carinhos, o infinito e a eternidade;
do pai,
cobram trabalho extenuante,
segurança e presentes;
das demais pessoas,
ocupam o centro das atenções.
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Mesmo assim, reclamam de tudo.
.
Para ampliar a exploração,
recebem madrinhas e padrinhos,
fontes inesgotáveis
de elogios e de mimos.
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Depois de explorar o pai, a mãe,
a família, os padrinhos, os avós,
os irmãos e os vizinhos, frequentam
creches, escolas e academias, onde
continuam exigindo privilégios:
exploram colegas e professores.
.
Crescem explorando pessoas,
comunidades, clientes, governos
e todos os que deles se aproximam.
.
Se apossam da natureza
como predadores insaciáveis,
derrubando árvores, matando animais,
queimando os resíduos orgânicos
e, por último, vendem
as pedras que restam no solo.
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Envenenam as lavouras,
as pastagens, os pátios de casa,
os rios, as lagoas, o mar e o ar.
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Seguem explorando os vizinhos,
as terras dos vizinhos,
as matas dos vizinhos,
as criações dos vizinhos,
os transportes dos vizinhos,
a amizade dos vizinhos,
a boa-fé dos vizinhos e
acabam esgotando
a paciência dos vizinhos.
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Depois de sugar a mãe, o pai,
a família, a comunidade,
a natureza e os mananciais de água,
passam a explorar as verbas públicas
e os espaços sociais…
.
Como gafanhotos humanos,
vão desfolhando a vida;
por onde passam,
só restarão esqueletos ao vento.
.
Exploradores
são pessoas bem atuantes,
que vivem sem limites,
se apossando de tudo
o que estiver disponível,
devorando o que encontram,
exigindo ‘colaboração’ dos outros,
sem nunca colaborar,
e ‘ficam muito brabos’ quando
os desejos e a voracidade deles
não forem atendidos.
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Exploradores desdenham e combatem
a ordem, os limites, as regras,
os valores morais,
as ações comunitárias,
o trabalho coletivo,
a preservação da natureza,
o ajardinamento de ruas e praças,
os cuidados com a casa,
a lealdade com as pessoas e
o respeito com as diferenças.
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Exploradores não perguntam
‘Eu posso entrar?’,
‘Eu posso pegar uma fruta?’,
‘Eu posso ajudar nesse trabalho?’,
‘Como você se sente?’,
‘O que você espera de mim?’, …
.
Quando casam,
os exploradores já são
especialistas em exploração
e dominam completamente
as esposas, os sogros, os cunhados,
os filhos, os parentes, as instituições.
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Querem ser servidos,
‘ter tudo à mão’,
sem questionamentos
ou reclamações.
Recontagem de ÚLTIMA TRAVESSIA
Ouvi como anedota. Entretanto, o cenário, o tema e a insolência para com o homem humilde provocaram em mim uma reação ética e uma reflexão filosófica.
Um barqueiro ganhava seu sustento transportando pessoas para a outra margem do imenso rio. Não havia pontes. Era o único meio de transporte disponível. Em geral, transportava pessoas conhecidas, moradores das redondezas ou alguém que queria visitar algum familiar que morava além da outra margem.
Porém, num final de tarde, um homem com aspecto muito diferente dos ribeirinhos contratou uma travessia. As roupas e a pasta demonstravam ser uma pessoa da cidade. Mais que isso, cheio de si, parecia orgulhoso, cheio de si, semostrador.
Logo que a canoa saiu do embarcadouro, perguntou:
– Você conhece a Grécia?
– Grécia? Ela mora por aqui?
– Não, não. Não é uma mulher. A Grécia é um país distante e muito importante, porque foi lá que nasceu a Filosofia. Você deveria conhecer. Você não sabe o que está perdendo…
O humilde barqueiro baixou a cabeça. O objetivo dele era bem simples: levar pessoas de uma margem à outra.
– Você sabe Filosofia?
O barqueiro continuou remando, desinteressado dessa outra… possível … Seria outra nação? Seria uma mulher? Uma cidade?
Mesmo entendendo o silêncio e percebendo a inutilidade de lições, o homem explicou:
– A Filosofia investiga os princípios, os fundamentos e as essências da realidade imanente. Você não sabe o que está perdendo…
O barqueiro nem deu ouvidos; permaneceu atento à força da correnteza e aos movimentos arriscados do passageiro que podiam jogar água pra dentro da embarcação.
– Você sabe por que o avião consegue voar?
Pobre homem!!! Nem sabia da existência de aviões… Via muitos pássaros voarem… Até as folhas secas voam levadas pelo vento… Mas… avião… nem imaginava…
– Não. Não sei, não.
– Você não sabe o que está perdendo…
O barqueiro se sentiu mais pobre ainda… Nada possuía e ainda estava perdendo muita coisa…
– Você já leu Lucas Visentini?
– Lucas, eu conheço. Mas, ler o Lucas… Lá isso eu não sei.
– Você não sabe o que está perdendo…
O homem estava mesmo espezinhando o seu transportador.
– Qual a voltagem da energia elétrica por aqui?
O barqueiro ficou ainda mais confuso. Energia, ele até sabia o que era… Voltagem? Seria a volta de alguém? De dona Elétrica, talvez… Tem cada nome por aí…
– Nunca ouvi falar…
– Você não sabe o que está perdendo…
E assim, enquanto o barquinho singrava as turbulentas e agressivas águas do imenso rio, seguiu o desdenhoso interrogatório.
Além dos perigos naturais de se navegar a imensidão do rio em uma minúscula canoa, um iminente naufrágio ameaçava a vida de ambos, por causa da imprudência do passageiro.
No limite de sua paciência, o barqueiro perguntou agressivamente:
– O senhor sabe nadar?
– Nunca precisei aprender… – ironizou.
– Se continuar enchendo a igara de sabença e saracoteando sem parar, a canoa vai virar e o senhor vai perder tudo o que sabe. Até a própria vida…
TERRORISMO COMUNITÁRIO
O agressor grita de medo
para quem tem coragem
de ouvir insultos em silêncio.
Os animais gritam de medo;
os animais humanos
usam revólveres para amedrontar,
ameaçar e matar o que temem.
Muitos acreditam que
armas e insultos
possam substituir a coragem.
E que o silêncio das vítimas
possa ser sinal de covardia
que autorize prosseguir
com ações terroristas.