PIOLHENTO

Em Ipoméia, os adultos contavam e repetiam a história da “Véia Pina” e do “Celestino Pancada” toda vez que uma criança insistisse em implicar com os colegas ou na prática de maldades sem nexo. A história era usada como fábula, com função moral de corrigir comportamentos.

Nos tempos atuais, seria preconceito com ela e boas reflexões sobre o nome dele: Celestino, porque ‘merecia o céu’ de tanta pancada que recebeu na vida? Piolhento, dizia ela.

Relatavam um evento fatídico que ficou impresso em nossas memórias. Nunca lembrei de perguntar quem de fato eram, se tiveram filhos, do que viviam. Nem mesmo o nome civil completo dos dois. Lembro apenas que a casa deles ficava na barranca da margem direita do Rio Preto, a meio caminho entre a vila e o moinho. Era uma faixa estreita de chão batido e varrido, com uma casa de madeira escurecida pelas intempéries durante muito tempo.

Diziam que ela vivia implicando com o marido, debicando, enticando e chamando de piolhento. Diziam que a vida conjugal deles sempre teria sido assim: ela depreciando o marido e ele suportando tudo calado.

Naquele dia, ela teria chamado e apontado para a algo invisível no meio do rio. Ele teria olhado o ponto apontado, com atenção, forçando as vistas. E ela, aproveitando a concentração dele no inexistente apontado, embalou carreira pra empurrar o marido pra morte. Ele, porém, escutou os passos acelerados dela e, no momento que seria empurrado, saiu de lado, deixando que a mulher passasse a toda e caísse na água profunda do rio.

Ela, mesmo submersa e se afogando, ainda punha as mãos pra fora da água e fazia o gesto de quem esmaga piolho entre as unhas dos polegares.

Um comentário sobre “PIOLHENTO

  1. Esta história me lembrou outras, da minha infância em Marcílio Dias, e dos personagens esfumaçados que habitavam objetivamente o mundo dos adultos, mas que para mim eram feito do material das lendas e das anedotas. Tais como esse casal de vida turbulenta. Li de mais de um autor que a infância é o reservatório principal do romancista, e não consigo discordar. Na infância a percepção diferenciada do mundo abre a mente do infante a interpretações e formulações curiosas. Quiçá um dia eu abra meu próprio repositório para registrar algumas ficções curiosas.

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