RECONHECIMENTO

   Desconheço as razões pelas quais escrevo; apenas, escrevo.
   Ler e escrever foram desejos gerados por meus pais, Anna Maria e Vitorino, bem antes de "deus lhes dar um filho". (Nem imaginavam existir óvulos e espermatozoides...) Devo a eles muito do que sou. Além de me darem corpo, cultivaram minha mente e forjaram valores que prezo e procuro praticar.
   Escrevi literariamente a partir da adolescência. O primeiro poema, que guardo por escrito, foi dedicado a meu pai, matado anos antes. Durante o Ensino Médio, a professora de Língua Portuguesa, Irmã Maria Rosa, como avaliação escrita, determinou: “Escreva uma redação sobre o tema: RUAZINHA DA MINHA INFÂNCIA”. Escrevi um soneto, contemplado com nota dez e estrelinhas. O poema está na página 9 do livro Ipoméia. Segundo poema, logo a seguir do poema-título.
   À medida que o tempo passava, mais e melhor fui escrevendo. Escrevi e escrevo por escrever, para ajudar pessoas a escreverem, para organizar meus códigos de valores, para construir vida intelectual e como possibilidade pós-morte.
   Alguns mestres escolares me incentivaram e orientaram. Quando ganhei dinheiro, comprei uma máquina de escrever e papel em resma. Montei livros datilografados... O primeiro computador, a primeira ferramenta de digitação eletrônica (Fácil), depois, o Windows e o Word.
   Em 1977, as senhoras luteranas da OASE, de Canoinhas SC, estavam organizando um grande evento cultural e Ederson Luis Matos Mota, diretor da EEB Almirante Barroso, propôs que fosse lançado um livro e que poderia ser um livro com poemas do Mario Tessari. O Ederson selecionou trinta e um poemas que receberam capa e ilustrações de Maria de Lourdes Brehmer e formaram o pequeno livro Ipoméia.
   A partir dessa publicação, recebi convite de jornais e de revistas, onde pratiquei as artes poéticas, narrativas, cronicontadas, ...
   Aos dezesseis anos, tive a sorte de conviver com um homem culto, que colocou à minha disposição sua biblioteca e que me propunha desafios todos os dias. Eu admirava imensamente o casal e considerava a história do amor deles algo com direito a ser narrado; iniciei as escrituras de SUÇURÊ.
   Depois de aposentado, voltei à UFSC como aluno do Curso de Psicologia. Como participante daquele centro cultural, me senti no direito de publicar um livro pela EdUFSC. O poeta que presidia a Editora, me tratou com desdém e encaminhou a negativa com o conselho de que aguardasse alguns anos 'para amadurecer' e reescrever os poemas. Eu estava com cinquenta e três anos... E os leitores poderão avaliar a 'maturidade' dos poemas que compõe o livro MOMENTOS, publicado em 2004.
   Essa publicação foi o desencadear de muitas outras publicações. E não por acaso: a partir desse ano passei a conviver dia-e-noite com Maria Elisa Ghisi.
   Além de parceiros nas lidas cotidianas, domésticas e profissionais, unimos nossas mentes em leituras compartilhadas e no esforço para bem escrever.
   A Elisa tem ótimas ideias. Porém, as ideias dela permanecem orais, ágrafas. Apenas anota e registra pensamentos ... em letra cursiva; tudo manuscrito.
No entanto, sem ela, não haveria tantos ‘livros do Mario Tessari’, nem tantos textos publicados no blogue. Ela também é a principal divulgadora de minhas obras.
   Todavia, a maior contribuição dela sempre foi e continua sendo a leitura atenta, as críticas assertivas e acertivas, a indicação da presença de obscuridade ou de ideias confusas (falta de clareza ou ambiguidade), a denúncia de incoerências, vazios ou absurdos, o questionamento das construções frasais, o apontamento da necessidade coerência ética, os alertas sobre estética e fluência e a exigência de responsabilidade sobre o que se escreve. 
   Sem ela, a qualidade dos meus livros (conteúdo e redação) estaria bem abaixo. 

MONETARIZAÇÃO DO AFETO

O vocábulo ‘humanidade’ pode ser entendido, dentre outros significados, como “conjunto dos seres humanos” ou “sentimento de bondade, benevolência, em relação aos semelhantes, ou de compaixão, piedade, em relação aos desfavorecidos”.

Em suma, espera-se que os humanos demonstrem um mínimo de ternura por filhos, pais, irmãos, avós, netos, amigos, vizinhos, …, conhecidos ou estranhos, nos dois sentidos. Ou seja, espera-se que os humanos pratiquem empatia. Para a Psicanálise, ternura seria “atitude com relação a outrem, na qual, um indivíduo reproduz a relação amorosa que mantinha com a pessoa que dele cuidava e o alimentava, quando criança”.

Nesses tempos internéticos, o zelo pelos familiares virou ‘cafona’, atitude desprezível, fora de moda, fraqueza, vergonha diante de seres evoluídos. Pais, filhos, irmãos, avós, tios, sobrinhos, primos e afins passaram a ser ‘clientes’ ou fornecedores. Cuidar de pessoas virou ‘mercado de trabalho’; profissão do futuro, indício de evolução da Sociedade.

Ainda no estudo do Dicionário Houaiss, encontramos que afeto, cognição e volição são funções mentais. Talvez… apenas dos humanos. Tomara que não.

Tomo a liberdade de considerar que os humanos estejam com excesso de vontades e buscam dominar cada vez mais conhecimentos. São dominados pela volição e querem construir cognição infinita. Para a maioria dos humanos, a falta de vontade, a inércia e a preguiça causam poucos problemas; o problema, para si e para os outros, está na “vontade imperfeita”, que deixa de ser voluntária, para ser fúria que domina muitos dos que defendem o livre-arbítrio, o pseudodireito de agir inconscientemente, com graves prejuízos para si e para seus arbitrados.

Parece que estamos vivendo tempos negros em que a Humanidade se desumaniza, transformando a humanidade em mercadoria à venda por preços adequados a cada interesse e a cada situação. Os afetos passaram a ser objetos de desejo e de lucro. Quem conseguir juntar dinheiro poderá pagar por amores, carinhos, cuidados, ternuras e tranquilidades. Fornecer afetos virou profissão lucrativa. Assim, a pobreza, além de continuar causando fome e privações, pode se consumar em abandono, porque a caridade também está à venda.

VIDAS POR ESCOLHER

Dentre os animais,
nós - humanos – podemos fazer
escolhas racionais e construir
um modo cultural de viver.

Podemos escolher
a vontade de cooperar,
a prática da bondade, ...
o dinheiro como deus ou
"a doença como caminho".

Podemos cultivar a avareza,
a gula, a luxúria, o ódio, ...
abusar de mansos, de fracos,
de crianças e de idosos;
ser intolerantes, usar armas,
intimidar pessoas, fazer intrigas,
promover guerras, conquistas, ...

Pessoas simples
– muitas vezes, sem diploma,
com limitações físicas e com
poucos recursos financeiros – 
se unem para ajudar amigos,
desconhecidos e, até, inimigos,
na esperança que mais gente
entre no mutirão do bem.

Por outro lado,
predadores desfaçados
exploram familiares,
vizinhos e governos
para comprar e esbanjar.

Devassos se entregam
a prazeres desenfreados,
abusando dos outros e
desmoralizando a vida.

Quando alguém cai
na escuridão do fanatismo,
segue a voz que arrasta
para o abismo da alienação.

Quem segue leis naturais,
com simplicidade e desapego,
tem maiores chances de 
viver em paz e harmonia.

Alguns fazem escolhas iniciais
na infância ou na adolescência;
outros, escolhem aos poucos,
quando tomam consciência
da própria responsabilidade,
ou ... só na velhice...

Quem nunca escolhe
acaba escolhido e,
alienado e manipulado,
segue o fluxo social,
rumo ao fracasso.

A FORÇA SOCIAL

Há milhares de anos, o hominídeo lutava contra seu vizinho tão naturalmente quanto comia. Ou seja, na luta pela sobrevivência, era normal bater, usar a força para dominar ou, até mesmo, matar o rival. Violência natural. Lutava indivíduo contra indivíduo, família contra família, grupo contra grupo, …

Através dos séculos, a espécie humana usou as mãos e as armas para impor suas ideias e sua vontade, sem ter consciência de que empregava a força física como qualquer outro animal. Os mais fortes dominavam os mais fracos: os adultos dominavam os jovens e os velhos; os machos dominavam as fêmeas – apenas se fossem mais fortes que elas. Quem obedecia era protegido. Por isso, a obediência consagra-se como virtude, do ponto de vista do dominador.

Os fortes podem também dominar pela linguagem. O canto e os gritos conseguem ampliar os espaços vitais de aves e mamíferos. Tomando como exemplo, os galináceos (domésticos ou não) defendem seus espaços pelo cocoricó e os leoninos, pelo rugido.

Se articulassem a linguagem, leões e galos ampliariam seus espaços e a forma de domínio, sobre a própria espécie e sobre outras espécies. Enquanto o grito queria dizer simplesmente “fora daqui, esse pedaço é meu”, a articulação poderia explicar porque tinham direito ao espaço dominado e quais as condições e os limites do domínio.

O poder dos dominantes justificando os argumentos ditatoriais, nas religiões, nas políticas e nas ‘justiças’. Em síntese, as regras oficiais eram (e são) cumpridas porque o bom juízo recomendava obediência. “Manda quem pode; obedece que tem juízo.”

À medida que substituíram o uso da força pelo uso da linguagem articulada, os hominídeos se transformaram em homens. Evolução fundamental para a ampliação e consolidação do domínio humano sobre os demais animais que não desenvolveram a fala. O homem, que, pela força, já dominava outros homens e animais menores, se torna mais eficiente, dominando-os também pela palavra. Inicia, então, a Guerra do Letramento, com o uso da escrita pelas elites cultas para dominar os analfabetos.

Como nos mostra Vigotsky, linguagem e pensamento têm desenvolvimento interdependente e contínuo. Assim, o desenvolvimento linguístico veio acompanhado de desenvolvimento da inteligência. Talvez, se outra espécie animal tivesse articulado a voz, hoje, não seríamos tão soberanos.

A substituição da força pela palavra se dá aos poucos, ao longo de milhares de anos, e ainda não se consumou, coexistindo a democracia com a guerra. O dominador, seja ele indivíduo, grupo ou nação, demonstra civilidade, tentando convencer pela palavra, pelo discurso, pela diplomacia. Porém, se não atingir o objetivo, não vacila em usar a força.

Nesse processo de substituição, se confirma a regra do mais forte: os machos exigem que as fêmeas usem a linguagem em vez de usar a força física para se defenderem ou para atacarem, as obrigando a serem civilizadas. Porém, se as fêmeas não agirem conforme o esperado, os machos, então, se permitem usar a força, porque eles detêm o poder. Poder exercido prioritariamente pela linguagem. Todavia, se elas não tiverem juízo, eles se consideram no direito, segundo o juízo deles, de voltar ao uso da violência física. Essa segunda instância garante que, com o tempo, elas entendam as mensagens.

O mesmo acontece em outras relações sociais: adultos sobre jovens, grupos sobre indivíduos, grupos maiores sobre grupos menores, armados sobre desarmados, ricos sobre pobres, eruditos sobre analfabetos. Surgem alianças de mais fracos para superar o poder de um forte.

A linguagem, a articulação e a força garantem também o domínio do grupo sobre os indivíduos.

O ser humano talvez seja o único animal a se agrupar para atacar a própria espécie, sejam indivíduos ou sejam outros grupos rivais. De forma arcaica, juntando forças físicas – mãos, braços, pernas, unhas, dentes, pedras, paus, fuzis, misseis, … – ou,  democraticamente, substituindo a força muscular pela força oral, pelo poder da palavra.

Exemplo da força inquestionável da sociedade sobre o indivíduo é a pena de morte: muitos são condenados à morte por terem matado… Por isso, a lei manda matar o matador.

Aceitamos que a sociedade faça justiça com as próprias mãos, condenando a morrer os que mataram menos que ela. Matar na guerra merece condecoração, por ser considerado um gesto nobre, da nobreza instituída … que decreta pena de morte para quem matar sem ordem oficial de um governo.

Usamos a própria linguagem para dizer que mudamos a linguagem. Entretanto, em último caso, usamos a força das mãos e dos artefatos bélicos para garantir que a mudança seja aceita, que nossa verdade seja a única, que nossa regra seja cumprida. Mudamos tanta coisa, mudamos o mundo; só não abrimos mão da lei do mais forte.

As leis proíbem o indivíduo de acusar, de roubar ou de matar. Porém, a sociedade – um ente ideológico e mítico – tem o direito de fazer e de absolver a si mesma desses crimes com toda naturalidade, porque é muito mais forte que os indivíduos. As leis civis foram criadas pelo Homem. Logo, são produto cultural humano; não são leis naturais. No entanto, ao mais forte pode optar entre as leis do legislador e as leis da natureza, se houver vantagens para ele.

Em 10.12.1948, os homens se disseram animais especiais, através da Declaração dos Direitos Humanos. Seria o cultural substituindo o natural, mudando as regras sociais. Porém, ainda os opressores esquecem da linguagem, da diplomacia, do diálogo e usam a força bruta, toda vez que seus interesses não são atendidos.

Ainda não somos totalmente humanos; só o seremos no dia em que, abdicando da irracionalidade, respeitarmos os direitos dos outros. Principalmente quando os outros forem os mais fracos, os sem-poder. É a utopia do educador; o sonho possível.

Entretanto, as regras continuam as mesmas: os fortes dominando os fracos, preferencialmente pela palavra. Caso não haja obediência, aí, se volta ao método anterior, que ainda funciona: homens mandando em mulheres, adultos mandando em jovens, grupos mandando em indivíduos, grupos poderosos mandando em grupos menos poderosos. E quem manda tem o direito de escolher as armas; se a palavra for insuficiente, acrescenta-se o porrete, a faca, o revólver, o canhão, o míssil, … o Pentágono, a OTAN e a ONU.

Tudo muda e evolui, menos a regra fundamental do jogo. Inventamos várias contagens para o tempo, vários calendários. O ocidental, que tem mais poder, diz que estamos na virada do milênio, entrando em uma nova era. Ainda os fortes dominando os fracos; sendo mais ético fazê-lo pela linguagem, criando e impondo a lei, que garante o direito do legislador, com os argumentos de quem tem poder.

Desses argumentos, o mais convincente – e talvez o mais sutil e silencioso – é a nossa consciência de que, se o discurso verbal não for suficiente, o detentor do poder apelará para a violência física ou para a violência simbólica: poder do dinheiro, poder político, poder religioso, empregabilidade, …

Escrito em 1976; reescrito em 14.09.1999; atualizado em 27.03.2022.

TERRORISMO COMUNITÁRIO

O agressor grita de medo

para quem tem coragem

de ouvir insultos em silêncio.

Os animais gritam de medo;

os animais humanos

usam revólveres para amedrontar,

ameaçar e matar o que temem.

Muitos acreditam que

armas e insultos

possam substituir a coragem.

E que o silêncio das vítimas

possa ser sinal de covardia

que autorize prosseguir

com ações terroristas.

IDEIAS COLETIVAS

Por incrível que pareça, os problemas e as soluções didáticas continuam sendo os mesmos.

A maioria dos instrutores, treinadores, professores e facilitadores ainda continua “dando aula” para si mesma. Doam ou vendem, sem entregar, o ‘saber deles’, a sabedoria particular. Ou seja, a maioria se coloca como centro do processo. Mais que isso: se coloca como quem sabe.

Óbvio, as tecnologias estão cada vez mais diversificadas e mais aprimoradas. Todavia, a didática (pedagogia ou competência oratória) é muito mais um modo como os profissionais buscam, organizam e aplicam as tecnologias, os conteúdos, os fazeres, as pesquisas ou experiências do que a soma de genialidade, tecnologia disponível e sabedoria acumulada.

Existe um número estatístico que aponta para 16% de alunos ou professores realmente conscientes de suas funções e de suas responsabilidades. Dias atrás, troquei mensagens com o autor de um artigo publicado em Profissão Mestre, nas quais eu afirmo que essa era a parcela de pessoas (alunos e professores) que estavam na escola antes de 1967, ano da reforma do ensino que passou a considerar obrigatória a matrícula de todos os jovens de 7 a 14 anos. (Hoje, é dos 6 aos 17 anos) Atualmente, 16% dos alunos e dos professores continuam na escola por opção; os demais, por obrigação.

O som da própria voz é sedutor, encantador. Isto dificulta imensamente a ação do
pedagogo ou de qualquer um que se propõe a ensinar algo pelo canal da fala.
Penso que nossos movimentos também nos encantem; somos vaidosos e acometidos de narcisismos, permanentes ou temporários. Como vencer nosso umbigo e chegar aos outros? Como dosar nossa necessidade de expressão para que ela sirva ao intuito de ensinar?

O poder sempre é sedutor. Políticos, professores e sacerdotes recebem muito poder e – no mais das vezes – confundem a importância da atividade com a importância pessoal, provavelmente, bem menor. Por exemplo, um locutor de rádio ou de televisão acaba envolvido pelo poder da palavra … que nem é dele, é alheia, escrita pelos redatores, lida e logo esquecida. O poder é da média (mídia). Entretanto, muitos se iludem pensando que eles ‘são O Poder’.

Eu mesmo, ao escrever, preciso ter consciência de que as ideias são sempre obras coletivas, geradas no embate intelectual, e não individuais, como que espontâneas. Não. Nunca. Sem o desafio, nós dois – e todos os demais humanos – não pensaríamos, falaríamos e escreveríamos textos edificantes. Você é provocação. Eu sou provocação. Os fatos nos provocam e … no confronto das opiniões, construímos ‘grandes’ ideias. Por isso, os que não aceitam contradições nada criam. Para germinar, a criatividade precisa do diferente, do oposto, do inusitado, do ridículo, do incompleto… O inédito nasce da diversidade e da discordância.

PRIMEIRO DIA DE UM ANO

Pode ser que, distraídos pelos fogos de artifício ou pelas alegrias artificiais, tenhamos esquecido que hoje é Dia de Ação de Graça, dia de agir sem cobrar, de ajudar os outros sem pensar em si.

E, principalmente, dia de agradecer.

Agradecer a nós mesmos pelo que fizemos bem e agradecer a todos que nos ajudaram a acertar e/ou nos indicaram os perigos de errar.

Agradecer pelas dádivas que a Vida disponibilizou gratuitamente e pelas recompensas por termos trabalhado com planejamento, responsabilidade, persistência e abnegação.

Em especial, dia de agradecer que podemos iniciar mais um ano de boas ações.

05.09 / 01.01.2021

MUDAR NA MUDANÇA

Podemos mudar de apartamento, casa, bairro, cidade, região, país, … Talvez, … de planeta…

Impulsionados por insatisfações, saturamentos, esgotamentos, tragédias, expulsões, aversões ou oportunidades.

Podemos deixar o indesejado, algo do que fomos, apelidos, relações, humilhações, perseguições, limitações espaciais ou emocionais.

Em busca de horizontes amplos, harmonia interna, familiar, social ou comunitária: melhores condições de vida.

Podemos mudar de residência e aproveitar para mudar de vida.

Ou, ingenuamente, carregar conosco idiossincrasias, ilusões, manias, comportamentos, …

Assumindo os mesmos papeis, repetindo hábitos prejudiciais, reconstruindo o desagradável…

Ou podemos aproveitar a mudança para mudar a nós mesmos, abandonando ‘verdades’, replantando esperanças e concretizando sonhos.

O GOSTO DO MAR

Antônio nasceu na serra, numa casa construída pela família, com a ajuda de outras pessoas dali. Logo que cresceu um pouco, ele também passou a ajudar as pessoas construírem suas casas. Fazia isso com prazer, porque seu corpo e seu espírito gostavam de atividade e de coisas novas, de coisas por aprender.

Da primeira vez, viu a casa como um todo e a construção como um trabalho só. Depois, percebeu que a casa está dividida em partes, que são construídas numa determinada sequência, durante determinado tempo. Assim, começou a pensar nas dimensões, na qualidade e no custo.

Antônio aprendia tudo sem esforço, porque entendia a razão de se construírem casas, porque sabia da necessidade de portas e de janelas e porque estava consciente da importância do alicerce. Mas, não aprendia apenas o que via.

Maria, moradora do lugar, teve oportunidade de viajar para o litoral e conheceu o mar. De volta, contou: O MAR É SALGADO. E todos, crianças e adultos, puseram-se a pensar: Porque o mar é salgado? Quem teria jogado sal no mar? Quanto sal foi necessário? Há quanto tempo isso ocorreu?

Ao ver Maria, todos se lembravam do mar e dessas questões todas. Ela se tornou um SÍMBOLO de O MAR É SALGADO. Não foi preciso decorar, aprenderam isso naturalmente. Mas, havia muita curiosidade e nasceram muitas dúvidas. Planejavam ir até a praia, procurar respostas para suas perguntas. Passaram ainda a provar as coisas para ver se havia mais coisas SALGADAS ou, até mesmo, com outros sabores.

Porém, passou-se muito tempo – gerações inteiras – e o conjunto de casas tornou-se uma cidade grande, onde as pessoas não se conheciam e as casas eram construídas por empresas e não mais por pessoas. As crianças não mais ajudavam construir casas e, delas, não mais sabiam distinguir as partes, o início e o tempo de construção. Também, não pensavam mais por que eram construídas, de onde veio o material e quem o produziu.

Na escola, ensinavam outra lição invariável: O MAR É SALGADO. E, nas provas, perguntavam sempre: “Que gosto tem o mar?” e “Quem é salgado?” E, como ninguém conheceu Maria, a escola também ensinava que foi ela quem descobriu, em determinada data, que O MAR É SALGADO. Por isso, essas informações também faziam parte do estudo; parte da História do Lugar, que era preciso decorar e saber de cor.

As demais perguntas estavam proibidas e seria um sacrilégio alguém tentar separar o sal da água. Os conhecimentos do Livro Didático eram considerados suficientes. Para se estudar mais, bastava repetir várias vezes a mesma lição.

Foi então que, cansadas de decorebas, as crianças perderam o gosto pela escola e, não tendo interesse no sabor de um mar que não conheciam, não conseguiam aprovação, repetindo, além das lições, o ano letivo. A maioria desistia da escola, porque ela não tinha vida, tratando apenas de coisas sem uso no dia-a-dia.

Nessa escola, as crianças só aprendiam a verdade dos outros; ficavam alienadas.

Esse texto nasceu após a leitura da “SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO”, de SONIA M. P. KRUPPA. FPOLIS25SET95