GRAMÁTICA PESSOAL

Gramática para uso pessoal de Mario Tessari.

Especialistas em gramática assumem o papel de policiais e avocam para si o direito de disciplinar as escritas dos usuários da Língua Portuguesa. Para sorte dos falantes, ainda há alguma liberdade na prosódia, na ortoépia e na ortofonia.

A maioria dos gramáticos categoriza todos os sinais impressos como ‘ortográficos’. A Ortografia disciplina a grafia ‘correta’ das ‘palavras’, usando as letras do alfabeto latino conforme um conjunto de regras estabelecidas pela gramática normativa. Algumas palavras recebem sinais gráficos complementares usados para indicar valores fonéticos específicos para determinadas letras: os acentos (agudo, grave ou circunflexo), o cedilha, o til e o trema; o hífen une elementos de palavras compostas.

No entanto, os sinais ‘de pontuação’ (vírgula, ponto, dois-pontos, ponto-e-vírgula, ponto de exclamação, ponto de interrogação, reticências, parênteses, aspas e travessão), criados para facilitar a leitura e o entendimento das ideias, são utensílios da Sintaxe (conjunto de regras da estrutura linguística) e da Análise Sintática (estudo das funções das palavras e das orações em uma frase).

Por exemplo, a vírgula pode substituir a conjunção ‘e’ na função de unir “vocábulos ou orações de mesmo valor sintático” [Dicionário Eletrônico Houaiss]. Ao invés de escrevermos: ‘Anna e Marcos e Tadeu estão lendo essa análise.’ e ‘José preparou a terra e plantou as sementes e adubou as plantas e colheu boa safra.’, podemos escrever ‘Anna, Marcos e Tadeu estão lendo essa análise.’ e ‘José preparou a terra, plantou as sementes, adubou as plantas e colheu boa safra.’, evitando, assim, a repetição excessiva da conjunção ‘e’.

A Ortografia estabelece regras ‘oficiais’ de como as palavras devem ser escritas, diferenciando ‘escritas populares’ de ‘escritas eruditas’. Porém, não prescreve padrões de sintaxe, de textos ou de estilos literários.

Os professores de gramática são formados por academias científicas com a responsabilidade de professar a ‘pureza gramatical’ e as academias literárias escolhem seus membros dentre os que obedecem a padrões eruditos, como a ortografia e o formato dos textos (prosa, poema, conto, novela, romance).

Os linguistas analisam a funcionalidade da linguagem falada e/ou escrita, a evolução e a diversificação dos sistemas de representação do pensamento humano.

PARELALISMO SINTÁTICO

Eu dou importância relativa às regras gramaticais e, em alguns pontos, discordo de gramáticos, de acadêmicos, de editores e de críticos literários. Ao invés de perder tempo com arbitrariedades ‘legais’, estudo, analiso e sigo os princípios universais da Linguística, das lógicas estruturais das palavras, das frases e dos textos, conforme a finalidade a que se destinam.

Para meu uso pessoal, com o objetivo consciente de facilitar para o leitor o acesso direto e sem sofrimento às ideias que coloco em palavras, releio várias vezes o que escrevo, peço opinião de leitores exigentes, aguardo a ‘maturação’ dos textos e, só então, publico. Tento, desse modo, evitar ‘abortos literários’.

Um dos meus cuidados está no paralelismo sintático, como eu explico a seguir.

Analisando as frases:

  1. Estão convocados Maria e Paulo. Estão convocados a Maria e o Paulo.
  2. Ana e Ivo estudam a linguagem escrita. A Ana e o Ivo estudam a linguagem escrita.
  3. Cesar gosta de ler e de escrever.

Nos três casos, há aglutinação de orações ligadas pela conjunção ‘e’, conectivo que correlaciona dois termos na mesma oração ou duas orações de um mesmo período.

As orações ‘Está convocada Maria.’ e ‘Está convocado Paulo.’ foram sintetizadas em ‘Estão convocados Maria e Paulo.’ De forma análoga, ‘Está convocada a Maria.’ e ‘Está convocado o Paulo.’ foi reduzida a ‘Estão convocados a Maria e o Paulo.’ ‘Ana estuda a linguagem escrita.’ e ‘Ivo estuda a linguagem escrita.’ Então, ‘Ana e Ivo estudam a linguagem escrita.’

Cesar gosta de ler e, também, gosta de escrever. Numa só oração, ‘Cesar gosta de ler e de escrever’. Sem o ‘de’ (sem paralelismo sintático: ‘Cesar gosta de ler e escrever.’), pode ser que ‘Cesar gosta de ler e escrever virou consequência’. Ou que ‘Cesar gosta de ler e escrever ficou mais fácil para ele’.

Em ‘Estão convocados a Maria e o Paulo.’, a presença dos artigos definidos indica que as duas pessoas (ou personagens) são conhecidas (e reconhecidas) pelo escritor e pelo leitor. A ausência dos artigos ‘a’ e ‘o’ deixa em aberto a identidade dos sujeitos. Por outro lado, podemos usar artigos indefinidos: ‘Estão convocados uma Maria e um Paulo.’ São opções, por questão de necessidade, de escolha ou de estilo.

Porém, escrever ‘Estão convocados a Maria e Paulo.’ indicaria que o escritor alterna as regras conforme ‘sua vontade’; óbvio, se estiver consciente de como escreve… ‘Está convocada a Maria.’ e ‘Está convocado Paulo.’; um, determinado e o outro, não. Parece que a frase continuaria: ‘Está convocada a Maria e Paulo sabe disso.’

Você já viu escrito ou ouviu dizer “Gosto disso e aquilo.”? É normal ler ou ouvir “Gosto disso e daquilo.”, porque é a lógica linguística, a linguagem natural, sem afetação. Caso contrário, parece que a frase continuaria, como em “Gosto disso e aquilo me repugna.”

A PONTUAÇÃO NA PRÁTICA LITERÁRIA

Posso usar dois-pontos (:), ponto-e-vírgula (;) ou ponto e vírgula (. e ,). Na prática, uso vírgula e ponto (, e .), nessa sequência. Nas frases, uso vírgula para separar ideias que complementam a oração principal, ponto-e-vírgula para incluir ideias divergentes ou paralelas, ponto para indicar que completei o enunciado e ponto-final para encerrar o assunto.

Ao afirmar que o ponto-e-vírgula (;) é “sinal de pontuação que indica pausa mais forte que a da vírgula e menos que a do ponto”, o dicionarista obrigaria o gago a colocar ponto-e-vírgula a cada ‘pausa gaguejada’, além de uma procissão de vírgulas, para as pausas ‘menos fortes’. O especialista deixa outro desafio: mensurar as pausas (“mais forte que a da vírgula e menos que a do ponto”). Imagino que as pausas possam ser breves ou longas. Como seriam pausas fracas ou fortes?

Mais preocupantes ainda são as afirmações que a vírgula é uma “ligeira pausa para respirar”. Provavelmente, esses autores sejam biólogos preocupados com nossa fisiologia respiratória.

RETICÊNCIAS

As reticências, além das funções técnico-linguísticas, podem ser usadas como recurso estilístico. Vai depender se as reticências são dúvidas da palavra… ou indecisões das ideias …

No caso, estou indicando ceticismo, dissimulação, hesitação, indeterminação da palavra… ou a omissão de algo que deixo de escrever para que o leitor continue … a frase por conta dele. Ou seja, deixo o leitor decidir como continua a ideia.

Também uso reticências para indicar uma ‘pausa emocional’ (aposiopese) ou uma insinuação.

Nesses trechos de Suçurê, aparecem reticências em:

“— Vejo que a aliança ainda está no dedo… Logo … para o povo daqui, a situação continua na mesma: só mistério.” (P. 485)

“— Mesmo assim, o Icobé vai ficar sozinho e não sabe lidar com o gado; a gente vai deixar tudo organizado, pra ele apenas atender alguma eventualidade. Por falar nisso, seria bom se você, Icobé, pudesse dar seu passeio de reconhecimento agora pela manhã porque cismo de saber que você saia por aí sozinho… Pode lhe acontecer algo e … – opinou Genuíno.

— Boa ideia! Vou encilhar o Zaino e dar uma volta pela invernada. Mas não demoro… – concordou Icobé.” (P. 504)

“— Tem que ver… – ponderou o capataz. Eu devo me afastar por uns dias… O João não pode ficar solito por muito tempo…

— Si desse … fais tempo qui num falo c´a mana Maria Rosa … – choramingou o Silvino.” (P. 505)

“— Não sou eu que procuro antes de ser chamado. São eles que me perturbam com vozes estranhas…

— Estranhas, porém bem audíveis, claras, pois indicam quem é e o local exato em que estão …” (P. 605)

O USO DA VÍRGULA ANTES DO PRONOME RELATIVO ‘QUE’

1. Os senadores que foram eleitos no último dia 15 tomarão posse hoje.

2. É difícil encontrar os gatos que fogem de casa durante a noite.

3. O povo cobra dos senadores, que foram eleitos democraticamente, a responsabilidade política.

4. Os gatos, que são venerados desde o tempo dos faraós, preferem viver livres, sem coleiras.

Nas duas primeiras frases, o pronome ‘que’ indica a delimitação dos sujeitos, através de oração subordinada restritiva, com função de adjunto adnominal da palavra antecedente, indispensável para expressar o sentido pretendido. Sem vírgula; ligadas diretamente aos sujeitos das orações.

1a. Apenas os senadores que foram eleitos no último dia 15 tomarão posse hoje.

2a. É difícil encontrar apenas os gatos que fogem de casa durante a noite.

Nas duas últimas, o pronome relativo ‘que’ é usado para iniciar uma explicação (oração subordinada adjetiva explicativa); oração opcional que acrescenta uma informação complementar, com características dos sujeitos, que continuam os mesmos. Deve ser escrita ‘entre vírgulas’.

3a. O povo cobra dos senadores[, os quais foram eleitos democraticamente,] a responsabilidade política.

3b. O povo cobra dos senadores a responsabilidade política.

4a. Os gatos[, os quais são venerados desde o tempo dos faraós,] preferem viver livres, sem coleiras.

4b. Os gatos preferem viver livres, sem coleiras.

USO DE LETRAS MAIÚSCULAS

Escrevo siglas em letras maiúsculas. Uso letras maiúsculas para iniciar nomes próprios; tecnicamente, substantivos próprios. Escrevo Antônio (nome da pessoa) e os antônios (todas as pessoas de nome Antônio); o Brasil e os vários brasis; o Estado (substituto de substantivo próprio) e os estados (substantivo usado para designar nações em comum).

Uma palavra composta é um vocábulo resultante da junção de duas ou mais palavras. Se uma palavra composta exercer a função de substantivo próprio, deverá ser grafada com letra inicial maiúscula: Serra-abaixo, Serra-acima, Baia-norte, Baia-sul, …

EXEMPLOS DE USO DE HÍFEN

Abelha-sem-ferrão é palavra composta (substantivo) que nomeia abelhas com uma característica específica: uma espécie de abelha. E abelha sem ferrão é locução substantiva usada para designar a abelha que perdeu o ferrão.

Se for nome da espécie, deve ser escrito ‘uruçu-amarela’. Se determinada espécie de uruçu tiver indivíduos uns pretos e outros amarelos, haverá abelhas uruçu pretas e abelhas uruçu amarelas. Mirim-guaçu preta e mirim-guaçu amarela; manduri preta e manduri amarela; porque as espécies são denominadas mirim-guaçu e manduri, respectivamente.

É questionável que os meliponíneos não possuam ferrões; todavia, com certeza, não ferroam. Logo, a locução deveria ser: abelha que não ferroa. Abelha-sem-ferrão ou abelha-da-terra: espécie de abelhas dos gêneros melípona, trigona, … Uma abelha do gênero Apis que deixou o ferrão em alguém será uma ‘abelha sem ferrão’. Se os chifres de um boi forem decepados, teremos um ‘boi sem chifres’. Os que já nascem mochos serão bois-sem-chifres.

Batata-doce é uma espécie vegetal; batata doce pode ser uma batata adoçada. Boca-de-leão: uma flor; boca de leão: abertura inicial do tubo digestivo do ‘rei dos animais’. Copo-de-leite nomeia uma flor e ‘copo de leite’ é uma porção de leite que pode estar num copo ou em outra vasilha; a expressão se refere à quantidade do alimento. Ponto-e-vírgula nomeia um sinal de pontuação; ponto e vírgula são dois sinais de pontuação.

Mesmo depois da última Reforma Ortográfica, as palavras compostas que designam espécies animais ou vegetais continuam sendo grafadas com hífen: bem-te-vi, copo-de-leite, boca-de-renda, porco-bravo, porco-do-mato, aroeira-folha-de-salso, uruçu-boi, formiga-açucareira, formiga-cabeça-de-vidro, …

SEO OU SEU

A palavra ‘seu’ é pronome possessivo.

Eu uso ‘seo’ para traduzir a pronúncia caipira de ‘senhor’. A fala coloquial abrevia as palavras, ‘comendo letras’, economizando tempo e voz, através de síncopes, pronunciando apenas as ‘essências’ da palavra. Maior / mor, senhor / seo, está / tá, estive / tive, em boa hora / embora, … Logo, ‘seo’ – síncope da palavra senhor – é pronome de tratamento. Da mesma forma, ao transcrever falas, uso sinhá ou siá, para designar senhora. Quem escreve ‘seu’ José, deveria, também, escrever ‘sua’ Maria em vez de escrever ‘dona’ Maria.

ETCÉTERA

Et cetera, do Latim, significa “e outras coisas, e assim por diante, …”

A abreviatura (etc.) já vem precedida do conetivo ‘e’ (et). Logo, não uso vírgula antes de ‘etc’. Aliás, uso reticências ao invés de usar etcétera. Deixo o ‘et cetera’ para os romanos. Sou de época mais recente.

ASPAS

Uso aspas duplas para indicar trecho de outro autor ou de outro texto meu. Para destacar palavras ou expressões, uso aspas simples, caracteres em tipo itálico ou palavras em caixa-alta.

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VIDAS POR ESCOLHER

Dentre os animais,
nós - humanos – podemos fazer
escolhas racionais e construir
um modo cultural de viver.

Podemos escolher
a vontade de cooperar,
a prática da bondade, ...
o dinheiro como deus ou
"a doença como caminho".

Podemos cultivar a avareza,
a gula, a luxúria, o ódio, ...
abusar de mansos, de fracos,
de crianças e de idosos;
ser intolerantes, usar armas,
intimidar pessoas, fazer intrigas,
promover guerras, conquistas, ...

Pessoas simples
– muitas vezes, sem diploma,
com limitações físicas e com
poucos recursos financeiros – 
se unem para ajudar amigos,
desconhecidos e, até, inimigos,
na esperança que mais gente
entre no mutirão do bem.

Por outro lado,
predadores desfaçados
exploram familiares,
vizinhos e governos
para comprar e esbanjar.

Devassos se entregam
a prazeres desenfreados,
abusando dos outros e
desmoralizando a vida.

Quando alguém cai
na escuridão do fanatismo,
segue a voz que arrasta
para o abismo da alienação.

Quem segue leis naturais,
com simplicidade e desapego,
tem maiores chances de 
viver em paz e harmonia.

Alguns fazem escolhas iniciais
na infância ou na adolescência;
outros, escolhem aos poucos,
quando tomam consciência
da própria responsabilidade,
ou ... só na velhice...

Quem nunca escolhe
acaba escolhido e,
alienado e manipulado,
segue o fluxo social,
rumo ao fracasso.

Frases 10

  1. A tolerância é semente de paz.
  2. Quem planta emoções colhe violência.
  3. A vaidade é pedra inútil que carregamos.
  4. Ao invés de viver a própria vida, muita gente quer viver a vida dos outros. Essa é a mais profunda das alienações.
  5. O dialético percebe o mundo como realidade em contínua transformação.

FRASES 9

  1. A maior e a pior violência é a violência étnica: impor aos outros aquilo que chamam de cultura.
  2. Para o pobre, o pouco resolve; para o rico, nem o muito satisfaz.
  3. Ao organizar o ambiente e/ou o tempo, as pessoas estão também organizando a “mente” (inteligência). A desorganização externa (ambiente/tempo) é apenas reflexo da desorganização interna.
  4. A partir da fala surgem a reflexão e a consciência, como capacidades de descrever a si mesmo.
  5. Alguns anos atrás, era suficiente que parte da população passasse pelos bancos escolares para receber apenas informações. As exigências do mundo atual são bem maiores: toda população precisa dominar o conhecimento, desenvolver habilidades e assumir atitudes. É o saber, o saber fazer e ter a consciência do que faz.

FRASES 8

  1. A paz e a guerra são escolhas.
  2. Não se ama apenas o bem; muitas pessoas amam a guerra, a fofoca, o lucro, a promiscuidade, o vício, o jogo, …
  3. A paz rende mais que a guerra.
  4. O político tira um pouco de todos, distribui um mínimo aos amigos e guarda o resto.
  5. As pequenas ilhas é que são exóticas; paisagens para se olhar de fora e não lugares para se viver. É melhor viver em terra firme do que em ilhas de fantasia.

A FORÇA SOCIAL

Há milhares de anos, o hominídeo lutava contra seu vizinho tão naturalmente quanto comia. Ou seja, na luta pela sobrevivência, era normal bater, usar a força para dominar ou, até mesmo, matar o rival. Violência natural. Lutava indivíduo contra indivíduo, família contra família, grupo contra grupo, …

Através dos séculos, a espécie humana usou as mãos e as armas para impor suas ideias e sua vontade, sem ter consciência de que empregava a força física como qualquer outro animal. Os mais fortes dominavam os mais fracos: os adultos dominavam os jovens e os velhos; os machos dominavam as fêmeas – apenas se fossem mais fortes que elas. Quem obedecia era protegido. Por isso, a obediência consagra-se como virtude, do ponto de vista do dominador.

Os fortes podem também dominar pela linguagem. O canto e os gritos conseguem ampliar os espaços vitais de aves e mamíferos. Tomando como exemplo, os galináceos (domésticos ou não) defendem seus espaços pelo cocoricó e os leoninos, pelo rugido.

Se articulassem a linguagem, leões e galos ampliariam seus espaços e a forma de domínio, sobre a própria espécie e sobre outras espécies. Enquanto o grito queria dizer simplesmente “fora daqui, esse pedaço é meu”, a articulação poderia explicar porque tinham direito ao espaço dominado e quais as condições e os limites do domínio.

O poder dos dominantes justificando os argumentos ditatoriais, nas religiões, nas políticas e nas ‘justiças’. Em síntese, as regras oficiais eram (e são) cumpridas porque o bom juízo recomendava obediência. “Manda quem pode; obedece que tem juízo.”

À medida que substituíram o uso da força pelo uso da linguagem articulada, os hominídeos se transformaram em homens. Evolução fundamental para a ampliação e consolidação do domínio humano sobre os demais animais que não desenvolveram a fala. O homem, que, pela força, já dominava outros homens e animais menores, se torna mais eficiente, dominando-os também pela palavra. Inicia, então, a Guerra do Letramento, com o uso da escrita pelas elites cultas para dominar os analfabetos.

Como nos mostra Vigotsky, linguagem e pensamento têm desenvolvimento interdependente e contínuo. Assim, o desenvolvimento linguístico veio acompanhado de desenvolvimento da inteligência. Talvez, se outra espécie animal tivesse articulado a voz, hoje, não seríamos tão soberanos.

A substituição da força pela palavra se dá aos poucos, ao longo de milhares de anos, e ainda não se consumou, coexistindo a democracia com a guerra. O dominador, seja ele indivíduo, grupo ou nação, demonstra civilidade, tentando convencer pela palavra, pelo discurso, pela diplomacia. Porém, se não atingir o objetivo, não vacila em usar a força.

Nesse processo de substituição, se confirma a regra do mais forte: os machos exigem que as fêmeas usem a linguagem em vez de usar a força física para se defenderem ou para atacarem, as obrigando a serem civilizadas. Porém, se as fêmeas não agirem conforme o esperado, os machos, então, se permitem usar a força, porque eles detêm o poder. Poder exercido prioritariamente pela linguagem. Todavia, se elas não tiverem juízo, eles se consideram no direito, segundo o juízo deles, de voltar ao uso da violência física. Essa segunda instância garante que, com o tempo, elas entendam as mensagens.

O mesmo acontece em outras relações sociais: adultos sobre jovens, grupos sobre indivíduos, grupos maiores sobre grupos menores, armados sobre desarmados, ricos sobre pobres, eruditos sobre analfabetos. Surgem alianças de mais fracos para superar o poder de um forte.

A linguagem, a articulação e a força garantem também o domínio do grupo sobre os indivíduos.

O ser humano talvez seja o único animal a se agrupar para atacar a própria espécie, sejam indivíduos ou sejam outros grupos rivais. De forma arcaica, juntando forças físicas – mãos, braços, pernas, unhas, dentes, pedras, paus, fuzis, misseis, … – ou,  democraticamente, substituindo a força muscular pela força oral, pelo poder da palavra.

Exemplo da força inquestionável da sociedade sobre o indivíduo é a pena de morte: muitos são condenados à morte por terem matado… Por isso, a lei manda matar o matador.

Aceitamos que a sociedade faça justiça com as próprias mãos, condenando a morrer os que mataram menos que ela. Matar na guerra merece condecoração, por ser considerado um gesto nobre, da nobreza instituída … que decreta pena de morte para quem matar sem ordem oficial de um governo.

Usamos a própria linguagem para dizer que mudamos a linguagem. Entretanto, em último caso, usamos a força das mãos e dos artefatos bélicos para garantir que a mudança seja aceita, que nossa verdade seja a única, que nossa regra seja cumprida. Mudamos tanta coisa, mudamos o mundo; só não abrimos mão da lei do mais forte.

As leis proíbem o indivíduo de acusar, de roubar ou de matar. Porém, a sociedade – um ente ideológico e mítico – tem o direito de fazer e de absolver a si mesma desses crimes com toda naturalidade, porque é muito mais forte que os indivíduos. As leis civis foram criadas pelo Homem. Logo, são produto cultural humano; não são leis naturais. No entanto, ao mais forte pode optar entre as leis do legislador e as leis da natureza, se houver vantagens para ele.

Em 10.12.1948, os homens se disseram animais especiais, através da Declaração dos Direitos Humanos. Seria o cultural substituindo o natural, mudando as regras sociais. Porém, ainda os opressores esquecem da linguagem, da diplomacia, do diálogo e usam a força bruta, toda vez que seus interesses não são atendidos.

Ainda não somos totalmente humanos; só o seremos no dia em que, abdicando da irracionalidade, respeitarmos os direitos dos outros. Principalmente quando os outros forem os mais fracos, os sem-poder. É a utopia do educador; o sonho possível.

Entretanto, as regras continuam as mesmas: os fortes dominando os fracos, preferencialmente pela palavra. Caso não haja obediência, aí, se volta ao método anterior, que ainda funciona: homens mandando em mulheres, adultos mandando em jovens, grupos mandando em indivíduos, grupos poderosos mandando em grupos menos poderosos. E quem manda tem o direito de escolher as armas; se a palavra for insuficiente, acrescenta-se o porrete, a faca, o revólver, o canhão, o míssil, … o Pentágono, a OTAN e a ONU.

Tudo muda e evolui, menos a regra fundamental do jogo. Inventamos várias contagens para o tempo, vários calendários. O ocidental, que tem mais poder, diz que estamos na virada do milênio, entrando em uma nova era. Ainda os fortes dominando os fracos; sendo mais ético fazê-lo pela linguagem, criando e impondo a lei, que garante o direito do legislador, com os argumentos de quem tem poder.

Desses argumentos, o mais convincente – e talvez o mais sutil e silencioso – é a nossa consciência de que, se o discurso verbal não for suficiente, o detentor do poder apelará para a violência física ou para a violência simbólica: poder do dinheiro, poder político, poder religioso, empregabilidade, …

Escrito em 1976; reescrito em 14.09.1999; atualizado em 27.03.2022.