À medida que sobrevivo por sete décadas, percebo que meu olhar alcança outros níveis, outros horizontes ou que eu consigo visualizar o que estava perto e permanecia ‘invisível’, em segundo plano. Talvez, minha mente envelhecida, com melhores configurações, consiga ultrapassar o imediato e penetrar através das frestas do senso comum. Durante a gestação, os meus olhos e a minha mente em construção devem ter visto, inicialmente, escuridões e, gradualmente, penumbras. Na primeira infância, reconheceram rostos familiares, objetos coloridos e fontes de alimentos, como mamas e mingaus. Até os três anos, dispensado de análises éticas e/ou filosóficas, devo ter visto o mundo apenas como paisagem dinâmica. A ‘idade da razão’ surgiu aos sete anos? Talvez. Quais as análises que eu fazia aos dez anos? E aos quinze? O que o Mario recém-adulto passou a pensar? Quais os critérios éticos do Mario quarentão? Em que fase radicalizei minhas visões de mundo? Quando comecei a me aprofundar nas raízes das questões? Justificadas as minhas idiossincrasias (predisposição do organismo que leva o indivíduo a reagir de maneira peculiar à influência de agentes exteriores/Houaiss), vamos ao tema proposto. Até envelhecer, lutei para acomodar a ideia de pedofilia como vício de “perversão que leva o indivíduo adulto a se sentir sexualmente atraído por crianças/Houaiss”. Apenas de adultos humanos? Esparramei minha atenção para o reino vegetal e procurei por eventos em que uma planta adulta tivesse tentado atos reprodutivos com uma planta recém-nascida, com brotos tenros ou com plantas sexualmente imaturas. Nada. Nenhum indício... Concluo que faltam evidências de pedofilia vegetal. Haveria pedofilia entre os seres microscópicos? Está lançado o desafio... Entre humanos existe. Humanos são animais. E os outros animais? Vasculhei as prateleiras mais antigas de minha memória, catalogando imagens registradas durante a infância, quando adolescente, durante a juventude e depois de adulto. Galos, galinhas, pintos; cachaços, porcas, leitões; baguais, éguas e potrinhos; cães, cadelas e filhotes; gatos, gatas, gatinhos; patos, patas, patinhos; marrecos, marrecas e marrequinhos; perus, peruas, peruzinhos; ... Nunca vi machos adultos dessas linhagens assediando os recém-nascidos, os desmamados ou os jovens. Pelas minhas interpretações, as danças sensuais animalescas iniciam com a maturidade dos animais domésticos. Os pássaros machos assediam os filhotes nos ninhos? Os passarinhos em treinamento de voo são perseguidos por pássaros tarados? Quem já presenciou alguma cena comprometedora? Existe pedofilia entre tatus, capivaras, cotias, gambás, lebres, veados, quatis, onças, leões, girafas, elefantes, cobras, baleias, avestruzes, carrapatos, bagres, hienas, chipanzés, gorilas ou micos? Os animais selvagens seriam mais éticos que os humanos? Mas, a ética e a moral não são preceitos humanos? Pedofilia seria um ‘efeito colateral’ da ‘inteligência superior’ do Homo Sapiens? Os seres humanos seriam mais animalescos e selvagens que os ‘animais inferiores’?
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A FORÇA SOCIAL
Há milhares de anos, o hominídeo lutava contra seu vizinho tão naturalmente quanto comia. Ou seja, na luta pela sobrevivência, era normal bater, usar a força para dominar ou, até mesmo, matar o rival. Violência natural. Lutava indivíduo contra indivíduo, família contra família, grupo contra grupo, …
Através dos séculos, a espécie humana usou as mãos e as armas para impor suas ideias e sua vontade, sem ter consciência de que empregava a força física como qualquer outro animal. Os mais fortes dominavam os mais fracos: os adultos dominavam os jovens e os velhos; os machos dominavam as fêmeas – apenas se fossem mais fortes que elas. Quem obedecia era protegido. Por isso, a obediência consagra-se como virtude, do ponto de vista do dominador.
Os fortes podem também dominar pela linguagem. O canto e os gritos conseguem ampliar os espaços vitais de aves e mamíferos. Tomando como exemplo, os galináceos (domésticos ou não) defendem seus espaços pelo cocoricó e os leoninos, pelo rugido.
Se articulassem a linguagem, leões e galos ampliariam seus espaços e a forma de domínio, sobre a própria espécie e sobre outras espécies. Enquanto o grito queria dizer simplesmente “fora daqui, esse pedaço é meu”, a articulação poderia explicar porque tinham direito ao espaço dominado e quais as condições e os limites do domínio.
O poder dos dominantes justificando os argumentos ditatoriais, nas religiões, nas políticas e nas ‘justiças’. Em síntese, as regras oficiais eram (e são) cumpridas porque o bom juízo recomendava obediência. “Manda quem pode; obedece que tem juízo.”
À medida que substituíram o uso da força pelo uso da linguagem articulada, os hominídeos se transformaram em homens. Evolução fundamental para a ampliação e consolidação do domínio humano sobre os demais animais que não desenvolveram a fala. O homem, que, pela força, já dominava outros homens e animais menores, se torna mais eficiente, dominando-os também pela palavra. Inicia, então, a Guerra do Letramento, com o uso da escrita pelas elites cultas para dominar os analfabetos.
Como nos mostra Vigotsky, linguagem e pensamento têm desenvolvimento interdependente e contínuo. Assim, o desenvolvimento linguístico veio acompanhado de desenvolvimento da inteligência. Talvez, se outra espécie animal tivesse articulado a voz, hoje, não seríamos tão soberanos.
A substituição da força pela palavra se dá aos poucos, ao longo de milhares de anos, e ainda não se consumou, coexistindo a democracia com a guerra. O dominador, seja ele indivíduo, grupo ou nação, demonstra civilidade, tentando convencer pela palavra, pelo discurso, pela diplomacia. Porém, se não atingir o objetivo, não vacila em usar a força.
Nesse processo de substituição, se confirma a regra do mais forte: os machos exigem que as fêmeas usem a linguagem em vez de usar a força física para se defenderem ou para atacarem, as obrigando a serem civilizadas. Porém, se as fêmeas não agirem conforme o esperado, os machos, então, se permitem usar a força, porque eles detêm o poder. Poder exercido prioritariamente pela linguagem. Todavia, se elas não tiverem juízo, eles se consideram no direito, segundo o juízo deles, de voltar ao uso da violência física. Essa segunda instância garante que, com o tempo, elas entendam as mensagens.
O mesmo acontece em outras relações sociais: adultos sobre jovens, grupos sobre indivíduos, grupos maiores sobre grupos menores, armados sobre desarmados, ricos sobre pobres, eruditos sobre analfabetos. Surgem alianças de mais fracos para superar o poder de um forte.
A linguagem, a articulação e a força garantem também o domínio do grupo sobre os indivíduos.
O ser humano talvez seja o único animal a se agrupar para atacar a própria espécie, sejam indivíduos ou sejam outros grupos rivais. De forma arcaica, juntando forças físicas – mãos, braços, pernas, unhas, dentes, pedras, paus, fuzis, misseis, … – ou, democraticamente, substituindo a força muscular pela força oral, pelo poder da palavra.
Exemplo da força inquestionável da sociedade sobre o indivíduo é a pena de morte: muitos são condenados à morte por terem matado… Por isso, a lei manda matar o matador.
Aceitamos que a sociedade faça justiça com as próprias mãos, condenando a morrer os que mataram menos que ela. Matar na guerra merece condecoração, por ser considerado um gesto nobre, da nobreza instituída … que decreta pena de morte para quem matar sem ordem oficial de um governo.
Usamos a própria linguagem para dizer que mudamos a linguagem. Entretanto, em último caso, usamos a força das mãos e dos artefatos bélicos para garantir que a mudança seja aceita, que nossa verdade seja a única, que nossa regra seja cumprida. Mudamos tanta coisa, mudamos o mundo; só não abrimos mão da lei do mais forte.
As leis proíbem o indivíduo de acusar, de roubar ou de matar. Porém, a sociedade – um ente ideológico e mítico – tem o direito de fazer e de absolver a si mesma desses crimes com toda naturalidade, porque é muito mais forte que os indivíduos. As leis civis foram criadas pelo Homem. Logo, são produto cultural humano; não são leis naturais. No entanto, ao mais forte pode optar entre as leis do legislador e as leis da natureza, se houver vantagens para ele.
Em 10.12.1948, os homens se disseram animais especiais, através da Declaração dos Direitos Humanos. Seria o cultural substituindo o natural, mudando as regras sociais. Porém, ainda os opressores esquecem da linguagem, da diplomacia, do diálogo e usam a força bruta, toda vez que seus interesses não são atendidos.
Ainda não somos totalmente humanos; só o seremos no dia em que, abdicando da irracionalidade, respeitarmos os direitos dos outros. Principalmente quando os outros forem os mais fracos, os sem-poder. É a utopia do educador; o sonho possível.
Entretanto, as regras continuam as mesmas: os fortes dominando os fracos, preferencialmente pela palavra. Caso não haja obediência, aí, se volta ao método anterior, que ainda funciona: homens mandando em mulheres, adultos mandando em jovens, grupos mandando em indivíduos, grupos poderosos mandando em grupos menos poderosos. E quem manda tem o direito de escolher as armas; se a palavra for insuficiente, acrescenta-se o porrete, a faca, o revólver, o canhão, o míssil, … o Pentágono, a OTAN e a ONU.
Tudo muda e evolui, menos a regra fundamental do jogo. Inventamos várias contagens para o tempo, vários calendários. O ocidental, que tem mais poder, diz que estamos na virada do milênio, entrando em uma nova era. Ainda os fortes dominando os fracos; sendo mais ético fazê-lo pela linguagem, criando e impondo a lei, que garante o direito do legislador, com os argumentos de quem tem poder.
Desses argumentos, o mais convincente – e talvez o mais sutil e silencioso – é a nossa consciência de que, se o discurso verbal não for suficiente, o detentor do poder apelará para a violência física ou para a violência simbólica: poder do dinheiro, poder político, poder religioso, empregabilidade, …
Escrito em 1976; reescrito em 14.09.1999; atualizado em 27.03.2022.
Nome de estradas, ruas, pontes, túneis, …
Em rodovias, os políticos colocam o nome de líderes paternalistas para que possamos transitar sobre eles; pisar, escarrar e jogar lixo neles. Menos mal que a maioria das pessoas logo esquece quem foi o laureado, ignora a fama concedida e passa a ver os letreiros das placas como símbolo grafado, pouco importando se com letras, algarismos ou desenhos. O vocábulo ‘homenagem’ deriva de homem, autoridade masculina, que concede às mulheres raras exceções, em espaços desprezados, temidos por eles. Assim, por obscura ironia vaginal, os homens nomeiam túneis e pontes em homenagem a mulheres idôneas, dignas e castas, para que sejam penetradas ou para que possam passar por cima delas. Para evitar e estar a salvo de reações dos violentados, estabeleceram em lei que só podem ser usados, nas placas informativas, nomes de pessoas mortas. São vinganças póstumas.
MINHA LISTA DE DESCONHECIDOS
Quando jovem, … (Quando mesmo que fui jovem? Quando deixei de ser jovem? Resta alguma jovialidade em mim?) Bem… Quando ainda imaginava ser jovem, eu enfrentava qualquer parada: serviço pesado, serviço difícil, festas, conflitos e campanhas eleitorais. Para muitos, fiz diferença, colaborei; para a maioria, fui paisagem, um rosto anônimo; para alguns, fui estorvo, um incomodador.
Como disse aquele monge ao completar 86 anos, comecei com a ilusão que poderia mudar o mundo e acabei mudando um pouco em mim mesmo.
Tive durante muito tempo a pretensão de elucidar dúvidas, desvendar mistérios, conquistar pessoas por convencimento e de manter relações amigáveis insistindo em explicações. Ah! Ajudar as pessoas no aprendizado do que eu considerava importante e que considerava seria muito importante para elas. Observava a forma como as pessoas dirigiam, criticava os desmatadores e os depravados, orientava os esbanjadores, me preocupava com os telhados dos vizinhos, ria dos ridículos, … Enfim: cuidava da vida alheia.
Aí, durante um desgosto mais amargo, tive a ideia de iniciar minha lista de desconhecidos. Quando uma pessoa de minha rede de relações se mostrava resistente ou incomodada com minhas opiniões, quando os parceiros sabotavam meus esforços, quando uma pessoa me traia, quando alguém me ofendia, … A lista cresceu, mesmo usando doses de benevolência e permitindo, em alguns casos, uma segunda chance.
Nessa minha lista de desconhecidos, coloquei arrogantes, brigões, vingativos, espertos, estúpidos, caloteiros, hipócritas, dissimulados e/ou fingidos. Reduzi contatos, deletei mágoas, evitei aborrecimentos, parei de querer mudar quem não quer mudar, deixei caídos os que me empurraram e economizei desprezos. Deixei de gastar minhas energias e de empatar o meu tempo com ex-conhecidos.
Para os ainda-por-conhecer, dedico parte da minha atenção, com precaução. Porém, quando encontro um desses desconhecidos contabilizados, concentro esforços em neutralidade planejada. Como diz a gíria: “passo reto”.
Há tempo, escrevi o poema “Menos amigos, mais amizade”, que procuro sempre reler, para me manter crítico e prosseguir no meu processo de enxugamento.
OS EXPLORADORES
Muito ativos desde pequenos,
choram por qualquer coisa,
exigem dedicação integral e
conseguem a atenção cobrada.
.
Só que começam engatinhar,
exploram o quarto, a casa, o quintal.
Remexem tudo e seguem adiante…
sempre sem limites.
.
Da mãe,
exigem alimento,
carinhos, o infinito e a eternidade;
do pai,
cobram trabalho extenuante,
segurança e presentes;
das demais pessoas,
ocupam o centro das atenções.
.
Mesmo assim, reclamam de tudo.
.
Para ampliar a exploração,
recebem madrinhas e padrinhos,
fontes inesgotáveis
de elogios e de mimos.
.
Depois de explorar o pai, a mãe,
a família, os padrinhos, os avós,
os irmãos e os vizinhos, frequentam
creches, escolas e academias, onde
continuam exigindo privilégios:
exploram colegas e professores.
.
Crescem explorando pessoas,
comunidades, clientes, governos
e todos os que deles se aproximam.
.
Se apossam da natureza
como predadores insaciáveis,
derrubando árvores, matando animais,
queimando os resíduos orgânicos
e, por último, vendem
as pedras que restam no solo.
.
Envenenam as lavouras,
as pastagens, os pátios de casa,
os rios, as lagoas, o mar e o ar.
.
Seguem explorando os vizinhos,
as terras dos vizinhos,
as matas dos vizinhos,
as criações dos vizinhos,
os transportes dos vizinhos,
a amizade dos vizinhos,
a boa-fé dos vizinhos e
acabam esgotando
a paciência dos vizinhos.
.
Depois de sugar a mãe, o pai,
a família, a comunidade,
a natureza e os mananciais de água,
passam a explorar as verbas públicas
e os espaços sociais…
.
Como gafanhotos humanos,
vão desfolhando a vida;
por onde passam,
só restarão esqueletos ao vento.
.
Exploradores
são pessoas bem atuantes,
que vivem sem limites,
se apossando de tudo
o que estiver disponível,
devorando o que encontram,
exigindo ‘colaboração’ dos outros,
sem nunca colaborar,
e ‘ficam muito brabos’ quando
os desejos e a voracidade deles
não forem atendidos.
.
Exploradores desdenham e combatem
a ordem, os limites, as regras,
os valores morais,
as ações comunitárias,
o trabalho coletivo,
a preservação da natureza,
o ajardinamento de ruas e praças,
os cuidados com a casa,
a lealdade com as pessoas e
o respeito com as diferenças.
.
Exploradores não perguntam
‘Eu posso entrar?’,
‘Eu posso pegar uma fruta?’,
‘Eu posso ajudar nesse trabalho?’,
‘Como você se sente?’,
‘O que você espera de mim?’, …
.
Quando casam,
os exploradores já são
especialistas em exploração
e dominam completamente
as esposas, os sogros, os cunhados,
os filhos, os parentes, as instituições.
.
Querem ser servidos,
‘ter tudo à mão’,
sem questionamentos
ou reclamações.
CÂNCER EM MAMA
Comandantes de instituições religiosas criam interdições (muitas vezes, incompreensíveis), que colocam névoas intelectuais entre as pessoas, dificultando a comunicação e criando o obscurantismo. Somos vítimas, “… seres humanos sacrificados a uma divindade ou em algum rito sagrado.”¹ Vivemos sob os constrangimentos morais dos “bons costumes” decorrentes de estratégias de dominação dos humildes por líderes ‘bondosos’, espertos e prepotentes.
Os dogmas e os mitos descrevem eventos metafísicos, criados por discursos da classe dominante e perpetuados pela oralidade plebeia ágrafa e subservil. As elites governantes inventam categorias sobrenaturais para justificar as transgressões às regras morais usadas para subjugar os súditos. Ou seja, controlam o povo com normas que se permitem burlar para dar plena vazão à corrupção, à devassidão, à libertinagem, à perversão e à exploração de seus semelhantes, como escravos ou fregueses de “determinada paróquia ou freguesia”¹.
Os semideuses da mitologia grega (satiros) e romana (faunos), como os demais semideuses em todos os impérios, leigos ou religiosos, permitiam a si o que proibiam aos comandados. Homens com cabeça de bode (que pensavam como um bode de alta potência sexual) que se permitiam a si mesmos (apenas a si mesmos…) dispensar o bom senso e, sem escrúpulos, liberar os instintos animalescos para praticar vícios e abusos.
A dominação masculina começa ao anexar as mulheres pela linguagem: a palavra ‘homens’ designando mulheres e homens, as fêmeas e os machos da espécie Homo Sapiens. Mitos e regras impostas por homens (masculinos, não-femininos) que, em casos extremos, transformam meninas, moças e mulheres em animais domésticos. O machismo permeia a cultura colonial europeia. (Desconheço os comportamentos de gênero nas demais culturas. E, como não conheci e nem convivi com sociedades matriarcais, fico curioso sobre os comportamentos do femealismo.)
Os tabus influenciam os costumes e, consequentemente, a linguagem. O uso de eufemismos e de jargões camufla a realidade objetiva (camuflar = disfarçar, enganar), gerando escrúpulos infundados, inquietação mental, subserviência, constrangimento e interdição cultural ou religiosa. A hipocrisia imposta pela língua condena, por tabuísmo, palavras comuns, triviais e vulgares. Ou seja, demonializa objetos naturais e ações corriqueiras do nosso cotidiano.
Podemos tomar como exemplo o generalizado uso da expressão “câncer de mama”.
O tabu exige que, ao falarmos de mamas, usemos o ‘bom senso’, eufemismos, palavras não interditadas pela MORAL: ‘peito’ ou ‘seio’. “Deu o peito ao bebê.” “Tem o peito pequeno.” “Estava com o seio à mostra.” “Machucou o seio.”
Em anatomia, identificamos ‘peito’ como “porção anterior ou ventral do tórax”¹. Daí decorre o absurdo de afirmar que a mulher tem dois peitos. (E as porcas, então, teriam entre doze e dezesseis peitos???) Os rapazes também têm um único peito e duas mamas, em geral, pouco desenvolvidas.
No mesmo dicionário, podemos encontrar que ‘seio’ significa “parte do pescoço e do peito feminino que pode ficar descoberto”¹. (Os humanos machos e machos ‘humanos’ permitem essa sedução…) Ou “parte interna”¹, “cavidade”¹. Nas aulas de Anatomia, aprendi que o ‘seio’ de qualquer pessoa estava localizado sobre o osso esterno, entre as duas mamas. De homens e de mulheres.
Por outro lado, deslembro de ter ouvido expressões como ‘espinho de pé’, ‘câncer de cabeça’, ‘câimbra de perna’, ‘dor de coluna’, ‘cólica de rim’, ‘cólica de útero’, ‘afta de boca’, … Em geral, ouço falar ‘espinho no pé’, ‘câncer na cabeça’, ‘câimbra na perna’, ‘dor na coluna’, ‘cólica nos rins’, ‘cólica no útero’, ‘afta na boca’.
Então, talvez, o mais correto (e menos dissimulado) seria dizer ‘câncer em uma mama’, ‘câncer nas mamas’ ou ‘câncer nas duas mamas’.
Mesmo assim, lamentável que as mamas só possam vir a público quando a mulher já está doente.
¹ Dicionário Eletrônico Houaiss
Recontagem de ÚLTIMA TRAVESSIA
Ouvi como anedota. Entretanto, o cenário, o tema e a insolência para com o homem humilde provocaram em mim uma reação ética e uma reflexão filosófica.
Um barqueiro ganhava seu sustento transportando pessoas para a outra margem do imenso rio. Não havia pontes. Era o único meio de transporte disponível. Em geral, transportava pessoas conhecidas, moradores das redondezas ou alguém que queria visitar algum familiar que morava além da outra margem.
Porém, num final de tarde, um homem com aspecto muito diferente dos ribeirinhos contratou uma travessia. As roupas e a pasta demonstravam ser uma pessoa da cidade. Mais que isso, cheio de si, parecia orgulhoso, cheio de si, semostrador.
Logo que a canoa saiu do embarcadouro, perguntou:
– Você conhece a Grécia?
– Grécia? Ela mora por aqui?
– Não, não. Não é uma mulher. A Grécia é um país distante e muito importante, porque foi lá que nasceu a Filosofia. Você deveria conhecer. Você não sabe o que está perdendo…
O humilde barqueiro baixou a cabeça. O objetivo dele era bem simples: levar pessoas de uma margem à outra.
– Você sabe Filosofia?
O barqueiro continuou remando, desinteressado dessa outra… possível … Seria outra nação? Seria uma mulher? Uma cidade?
Mesmo entendendo o silêncio e percebendo a inutilidade de lições, o homem explicou:
– A Filosofia investiga os princípios, os fundamentos e as essências da realidade imanente. Você não sabe o que está perdendo…
O barqueiro nem deu ouvidos; permaneceu atento à força da correnteza e aos movimentos arriscados do passageiro que podiam jogar água pra dentro da embarcação.
– Você sabe por que o avião consegue voar?
Pobre homem!!! Nem sabia da existência de aviões… Via muitos pássaros voarem… Até as folhas secas voam levadas pelo vento… Mas… avião… nem imaginava…
– Não. Não sei, não.
– Você não sabe o que está perdendo…
O barqueiro se sentiu mais pobre ainda… Nada possuía e ainda estava perdendo muita coisa…
– Você já leu Lucas Visentini?
– Lucas, eu conheço. Mas, ler o Lucas… Lá isso eu não sei.
– Você não sabe o que está perdendo…
O homem estava mesmo espezinhando o seu transportador.
– Qual a voltagem da energia elétrica por aqui?
O barqueiro ficou ainda mais confuso. Energia, ele até sabia o que era… Voltagem? Seria a volta de alguém? De dona Elétrica, talvez… Tem cada nome por aí…
– Nunca ouvi falar…
– Você não sabe o que está perdendo…
E assim, enquanto o barquinho singrava as turbulentas e agressivas águas do imenso rio, seguiu o desdenhoso interrogatório.
Além dos perigos naturais de se navegar a imensidão do rio em uma minúscula canoa, um iminente naufrágio ameaçava a vida de ambos, por causa da imprudência do passageiro.
No limite de sua paciência, o barqueiro perguntou agressivamente:
– O senhor sabe nadar?
– Nunca precisei aprender… – ironizou.
– Se continuar enchendo a igara de sabença e saracoteando sem parar, a canoa vai virar e o senhor vai perder tudo o que sabe. Até a própria vida…
JOGOS SEXUAIS
Os rebanhos humanos seguem em busca de saciedade. E, saciados, mantêm, na lembrança, a sensação do prazer sentido ao saciar a fome, a vaidade e os desejos. O prazer norteia a marcha dos rebanhos que buscam alimentos para satisfazer o corpo, emoções para satisfazer a libido, poderes para satisfazer o orgulho ou dinheiros para comprar alimentos, emoções e poderes. Saciadas as necessidades naturais, os humanos criam artificialmente novas necessidades para obter repetidas oportunidades de sentir prazer, comendo, acariciando, comprando, subjugando e dominando. O saciamento de necessidades, de desejos e de vaidades, entretanto, cobra altos preços. Nada é de graça. Quem pode saciar uma necessidade aproveita o ensejo para capitalizar espaços de dominação e cotas de poder. Talvez, a necessidade de pertencimento seja a força que une e comanda a massa humana que segue atrás de bandeiras de luta desenhadas com ingenuidade e/ou má-fé. Por detrás de slogans, palavras-ônibus e discursos – hinos instantâneos e efêmeros –, existe um emaranhado de correntes que ovelhas e cordeiros ignoram ou fingem não ver. Cidadania, democracia, direitos humanos, preconceito, assédio sexual, racismo, desigualdade social, trabalho escravo, ... os catecismos conseguem uniformizar a marcha do rebanho. Cantando a mesma canção, ovelhas e cordeiros se sentem seguros para caminharem na mesma direção. Dentre as estratégias usadas pelo comportamento tribal, está a cortina que encobre os jogos sexuais. Robôs conduzidos por inteligência artificial estão imunes a atrações sensuais, hormônios provocadores, agressões físicas e assassinatos. Seres humanos – por enquanto – ainda agem e reagem por estímulos, excitações, provocações e artimanhas sensoriais. É ingenuidade ou hipocrisia se esconder atrás de ondas sociais ou de discursos superficiais sem analisar as relações lógicas de causa-efeito que ocorrem na fisiologia dos corpos. As ondas moralistas se assemelham a religiões politeístas com deuses virtuais instáveis e sacerdotes eventuais que usam e dominam as ferramentas eletrônicas para subjugar instintos, sentimentos, ciclos naturais e eventos biológicos. Acondicionam os fenômenos reprodutivos em fôrmas ideológicas anônimas e massacrantes: trituram os grãos para formar uma massa de aspecto aparente uniforme. Usam a mídia e por ela são usados. As árvores que expõe flores para as abelhas polinizarem e que geram frutos com sementes férteis distribuídas pelas aves devem ser submetidas às vontades humanas, produzindo lucros para o mercado capitalista. Manipulam as videiras para produzir uvas sem sementes durante todo o transcurso anual e em todas as regiões; negam o convívio de casais de animais em primavera: confinam, inseminam, engordam e abatem. Escravizam animais e vegetais ao deus Consumo, usando engenharias genéticas e transgenias. As pessoas devem controlar seus hormônios e desejos, fingindo desconhecer as reações naturais do próprio corpo, como se as glândulas femininas não liberassem estrogênio e as glândulas masculinas não liberassem testosterona; esses odores devem ser abafados com perfumes potentes. Porém, a indústria e o comércio podem livremente explorar a moda baseada em atrativos sexuais e obter lucros usando imagens e imaginações dos próprios consumidores fanatizados, que são o princípio e o fim dos processos consumidores. A violência visível pode encobrir a violência simbólica e a manipulação, sejam elas conscientes, intencionais ou ingênuas. Muitos buscam gozar prazeres e tirar vantagens sem compensar as vítimas em ambos os lados da guerra. Os espertos usam os mantras para ganhar palco e para cobrar indenizações pelas reações alheias, se fazendo de vítimas dos jogos sexuais de iniciativa própria. Sítio Itaguá, das 03:08 às 04:10 horas do dia 01jan2017.