Nova Trento

Carta aos alunos da Escola Francisco Mazzola, em 17 de agosto de 2002

“Cada ser em si carrega o dom de ser capaz, de ser feliz.”    Almir Sater

O conhecimento nos leva à existência.

Antes de estar com vocês, eu não os conhecia e, provavelmente, vocês não me conheciam. Por isso, não existíamos um para o outro. Não podíamos pensar um no outro, porque não tínhamos uma idéia do outro ainda não conhecido. Há magia no ato de conhecer: o ato de conhecer dá existência a quem e ao que assumimos como conhecido. Só agora existimos um para o outro. Logo, a existência não é uma decisão individual; ela é uma construção coletiva.

Como quando conversamos, no início desta semana, vou analisar algumas palavras. Falamos em amizade e ela me transporta para a palavra comunhão: a união dos que têm objetivos comuns, crenças comuns; os mesmos ideais. E comunicação é o agir coletivo dos que comungam dos mesmos ideais. Já confusão quer dizer aquilo que se fundiu, se misturou, que perdeu a ordem; incapacidade de reconhecer diferenças, falta de clareza.

Precisamos estar em comunhão sem nos fundir com o outro, sem nos anular. O “nós” é constituído da união dos “eu”. Precisamos estar juntos, construir juntos, mas sem perder a nossa identidade. Jamais haverá um “nós” forte se não construirmos um “eu” sólido e solidário. A sociedade será tão ética e tão cooperativa quanto éticos e cooperativos forem seus sócios.

Falamos também na palavra competência: “qualidade de quem é capaz de apreciar e resolver certo assunto, fazer determinada coisa, …”  Uma das metas que a maioria de vocês estabeleceu, para esse ano, foi “passar de ano”. Vocês têm competência para “passar de ano”, porque são capazes de analisar e dar solução para todas as tarefas escolares.

O ano passa todo mês, toda semana, todo dia, toda hora, todo minuto, todo segundo… Por isso, a todo momento, precisamos fazer o que precisa ser feito, da melhor maneira que pudermos e com prazer. Só podemos ter interesse e sentir prazer por aquilo que conhecemos, a começar por nós mesmos. Conhecer a nós mesmos é tomar consciência de nossas capacidades, de nossas habilidades e principalmente do que queremos, do nosso projeto de vida. Conhecer a nós mesmos implica em tomar consciência de como e de quando sentimos alegria ou tristeza, de como e de quando aprendemos, de como nos vemos e de como somos vistos.

Somos estranhos de nós mesmos: não reconhecemos as nossas reais capacidades e acabamos nos subestimando, nos fazendo menores do que somos. Por isso, fazemos menos e vivemos menos.

Outra meta estabelecida “para a vida toda”, pela maioria, foi: ser feliz.

Felicidade não é um lugar no futuro. Em cada momento, em cada lugar e com cada pessoa, a felicidade é outra. As felicidades são muitas. E estão à nossa disposição. A felicidade é como a água de uma fonte: vai passando pelas nossas mãos. Só conseguimos aproveitar uma pequena porção da água; a maior parte vai embora. Quando estamos com muita sede, toda água é boa. Parece que nossa sede de felicidade é pequena, porque deixamos que a felicidade cotidiana escorra pelos nossos dedos, esperando por uma felicidade perfeita, que está à nossa espera, em algum lugar, no futuro. Precisamos aproveitar e viver a felicidade de agora, com as pessoas com quem estamos, senão essa chance se perde e não poderemos mais viver o momento que passou.

Amigo não é aquele que aceita o outro como o outro é. Amigo é aquele que, conhecendo o outro, valoriza as qualidades do amigo e que propõe, com ele, trabalhar para reduzir os defeitos e preencher as falhas. Amigos constroem, em conjunto, os conhecimentos, as habilidades e os valores necessários à felicidade.

Juntos, vamos construir as competências necessárias para uma vida feliz.

Mario Tessari

LIMITES

   Cada ser vivo estabelece seu espaço vital, conforme o poder que tem de restringir o espaço dos outros. Se sozinho no mundo, provavelmente, o indivíduo estabeleça seus limites no limiar de suas necessidades de espaço.

No entanto, cada vez mais, aumenta a densidade de seres vivos, diminuindo a fatia que corresponde a cada um. Por isso, como algumas plantas e alguns animais, sobrepujam os mais fracos, invadindo os espaços vitais deles. Excedem aos seus limites, exatamente porque os vizinhos carecem de forças e de agressividade para defenderem os próprios limites.
Por outro lado, alguns dos invadidos utilizam justamente a inércia individual para provocar piedade, reivindicando direitos iguais.
A palavra respeito é aglutinação portuguesa da expressão latina ‘res pectus’, significando coisa alheia. Ou seja, se é dos outros, não devo mexer.
Mas, também, pode significar ‘ação de olhar para trás’. Então, respeitar deveria ser aceitar o limite dos outros, sem abrir mão dos próprios limites.
A convivência entre seres vivos será sempre uma relação de poder. Para nós seres humanos, poderá ser um conjunto de relações pacíficas, mediadas por comportamentos éticos.

HIGIENE DA CUECA

   Nasci e cresci imerso na cultura brasileira: machista, reprodutiva, contraditória e simplista; às vezes, simplória e, até, leviana.
Por procura ou por sorte, fui ouvindo vozes dissonantes, indicações de ingenuidades coletivas que se enraizavam em mim também. Sou cientista amador, movido por curiosidade, em busca de atitudes mais coerentes.
   Lá pela terceira década de vida, um comentário, quase um murmúrio, despertou minha mente para as condições higiênicas de minhas cuecas.
   Quando criança, habitante de um cafundó, minha mãe aproveitava panos velhos, restos de camisas ou sobras de retalhos para confeccionar uma roupa íntima elementar. Ainda menino, fui enviado ao seminário para aprender a ler e a escrever. Ela precisa fazer bonito. Afinal, o filho seria alfabetizado. Então, ela aprimorou o modelo, chegando a algo próximo de uma cueca samba-canção. Só passei a usar cuecas compradas em loja quando ganhei algum dinheiro e saí da vila para estudar e trabalhar em uma pequena cidade.
   Paralelamente, a “privada” dos meus tempos na roça evoluiu, nos seminários, para “banheiro coletivo”; para banheiros de pensionatos e para um banheiro adaptado em minha primeira casa; de madeira, mas, “com banheiro”, se bem que ‘adaptado’. Nos seminários, só o nome de “banheiro”, pois, os banhos semanais dependiam das águas – às vezes, barrentas – dos rios.
   E assim fui evoluindo... Mesmo que – hoje, percebo – ainda faltasse muito para poder me vangloriar da higiene pessoal. Aí, ouvi o cochicho a que me referi em alguns parágrafos atrás.
   Desde menino, depois de urinar, toda vez, eu esperava as últimas gotas abandonarem a glande; me demorava... e as pessoas ironizavam esse tempo extra, insinuando malícias ou ironias. Por mais que cuidasse e usasse estratégias para evitar as gotas de urina restantes, a cueca, vez em quando, manifestava o odor de desasseio.
   Perguntei para algumas mulheres como elas faziam para evitar que a calcinha ‘ficasse temperada de urina’. Estranharam a pergunta e demonstraram preocupação com meu comportamento e com minha masculinidade. Ora, usavam papel higiênico...
Pensei: nunca vi meninos, rapazes e homens usando papel absorvente para secar as gotas temporãs... Porém, mesmo que fosse ironizado, decidi experimentar a técnica sanitária.
   Confesso que sofri zombarias e reprimendas. Afinal, estava violando o código do machismo, posto em risco a segurança dos ‘verdadeiramente homens’ e semeando dúvidas sobre minha opção sexual.
   Outra decisão minha: sentar no vaso sanitário para urinar. Afinal, quem convive comigo merece encontrar o assento limpo e inodoro.
   Na Década de 1980, quando passei a trabalhar para uma empresa em que os mictórios se estendiam ao longo de uma parede, às vezes, passava por humilhação, porque algum colega me via a higienizar a glande e o prepúcio e proclamava essa ‘pouca vergonha’ para debochados colegas e clientes na grande sala de trabalho.
   Também sofria escárnios em estações rodoviárias e aeroportos. Os que viam secando os restos de urina riam com complacência, parecendo se apiedarem dos meus desvios ‘morais’. Entretanto, minhas cuecas ficavam quase livres de imundícies e eu sentia o orgulho de romper um preconceito. Por me sentir menos sujo e mais confortável, fiz desse cuidado um hábito.
   No final do Século XX, embarcava mais uma vez para exercer meu trabalho no extremo-norte do país. Depois de encaminhar minha bagagem e meu embarque, fui aos ‘sanitários’, carregando a ‘bagagem de mão’.
   Como sempre se faz, ao adentrar ao ambiente restrito, lancei um olhar estratégico para a parede em frente, onde se alinhavam os mictórios ... e encontrei um rolo de papel higiênico ao lado ‘direito’ de cada urinol de louça.
   Aquela visão me deixou paralisado. E a estátua viva chorou... Inicialmente, um choro manso, lágrimas escorrendo silenciosamente... Os dois passageiros que lá estavam, ao sair, passaram por mim olhando o chão, compadecidos com meu pranto. Os que vinham entrando me olharam com assombro e um deles veio me consolar, pois, então, eu já me sacudia em soluços.
   Me emocionei porque via realizado um sonho evolutivo; um espaço público tinha sido preparado para atender a uma necessidade daqueles que desejavam privilegiar a higiene íntima em detrimento da glória machista de ‘jamais se comportar como mulher’.
   Tenho consciência de que aqueles rolos de papel higiênico foram colocados ali para atender mais da metade dos ‘homens’ que ali urinassem; que, sozinho, nada teria conseguido. Todavia, eu tinha sido um dos que lutaram em silêncio por aquele benefício. Vibrei de alegria por ter participado de um evento social evolutivo; de ter ouvido o Zeitgeist (“o espírito do tempo”) e contribuído para a higiene das cuecas.
                                              Sítio Itaguá, 08.09.2020

PARTE DO PROBLEMA

   Eu sofria ataques verbais dos vizinhos, sem compreender a razão de tão intensas e contínuas agressões.
   Conversando com os filhos, um deles afirmou que eu estava provocando a situação.
   No primeiro momento, senti abalo emocional: considerei que até o filho estava contra mim.
   Depois, refleti: ele falou isso por um motivo. Procurei inverter o meu ponto de vista, experimentar outros olhares, tentar ver por outro ângulo. Imaginar o que meu filho via.
   Então, conclui: minha afabilidade, meus sorrisos silenciosos e minha vontade de ajudar criavam barreiras e, até, aversão. Afinal, eu era ‘de fora’; o que estaria querendo? “Ensinar a gente viver do jeito dele?” Minhas palavras eram recebidas como desaprovação do modo de vida dos ‘nativos’. Eu era ‘de fora’, não comungava dos valores deles, como criar bois atados em cordas à beirada de estradas, proliferar cães e gatos, jogar lixo no rio, ... Minhas opiniões, atitudes e crenças causavam desconfortos e desencadeavam reações agressivas.
   Queriam ‘me expulsar’. Assim, eles estariam livres de ‘críticas delicadas’ e de orientações ‘urbanas’ (“pensa que vive na cidade”), como ensinar pessoas a ler e a escrever, aparar a relva, cultivar jardim, plantar flores, construir canteiros na horta em retângulos sob medida, “fazer trabalho de mulher”, perder tempo plantando árvores, ... Como o Plínio Schmidt me alertou: “Andam dizendo por aí que o senhor é um louco. Enquanto todo mundo luta pra limpar os terrenos, o senhor planta mato.” 
Minhas tentativas de conversar, minha disponibilidade, meus desejados diálogos sem entrar no jogo verbal de revidar, sem responder à altura, sem ter uma “atitude de homem”. Meu comportamento cortês agredia as pessoas, minha tolerância com homossexuais e com negros depunha contra valores ‘consagrados’; meu ateísmo assustava.
   Ou seja, eu era parte do meu problema. Ou pior: eu causava problemas.
   Eu escrevia frases filosóficas no quadro pendurado na varanda. E a maioria deles despreza a leitura ou nem sabe ou não quer ler... Eu escrevo livros; “Vai ver que tá escrevendo da gente...”. Meu comportamento, sem que eu tivesse consciência disso, atraia o ódio dos ‘normais’. Ao longo de dezesseis anos, esporadicamente, sofri tempestades de palavrões e de acusações infundadas do vizinho, que, talvez, esteja indignado com meu silêncio complacente, com minha ‘educação exagerada’. “Tem gente que estuda a vida intera e não aprende a ajudá quem percisa.” “Bicha covarde. Froxo. Se iscode atráis da janela e da muié, foge pra banda de lá do rio.”
   Pesquisei e encontrei alguns ensaios sobre a aversão aos benevolentes e aos afáveis. Afável? Uhhhmmmm! Afável... Seria falta de atitudes viris? Falta de capacidade de enfrentamento? Covardia? Enfim, um ‘homem frouxo’... Então, querer a paz, querer viver em harmonia, seria agressivo aos belicosos? Fugir das competições, das encrencas e dos riscos sociais seria uma provocação para os empreendedores, para os destemidos? Sou um franguinho manso que se encolhe a cada bicada? Meu desejo de ‘ficar quieto no meu canto’ agride os competidores? Meu silêncio incomoda os que gritam? Percebo que essa minha afabilidade ofende as pessoas... que me atacam... e eu me encolho... Ao fugir de polêmicas, de confusões e de brigas, eu provoco a ira deles. Escolhi me retrair, abdicar da convivência comunitária e permanecer calado, sem contextualizar situações e sem relatar meus sentimentos.
   Convicto de que sou parte dos problemas que causo, passei a usar essa dúvida em minhas análises de conjuntura e nas solicitações de aconselhamento.
   Por esse ponto de vista, vejo que a maioria dos problemas persiste porque as pessoas se sentem vítimas condescendentes; não se veem como parte do problema e continuam agindo de boa-fé, crentes que ‘fazem o bem’.
   Acredito que o reconhecimento de que somos parte dos problemas pode contribuir na solução das nossas dificuldades afetivas e nas melhorias de nossas relações sociais.

ADMIRAÇÃO

   Eu admiro o voo dos pássaros. Posso passar horas, no templo da floresta, con-templando os pássaros em suas ousadias e em suas habilidades voláteis, que representam a real liberdade. Admiro, apenas... não quero estar com eles no ar, não pretendo imitar.
   Admiro os heróis; fujo de heroísmos. Prefiro ser normal, passageiro, substituível e livre de idolatrias. Jamais eterno. Meu corpo e minha mente são finitos. Talvez, minhas ideias se propaguem e sobrevivam ao meu sopro vital...
   Admiro os vizinhos. Admiro apenas. Prefiro ser plateia e auditório dos projetos e das realizações deles, enquanto continuo silvestre, como elemento da Natureza, convivendo com os bichos e plantando sementes.
   Admiro a Primavera. Todavia, o encanto dela está – exatamente – na impermanência, na fugidade das estações e dos ciclos cósmicos. Se, o tempo todo, fosse primavera, já estaríamos cansados do eterno florir. A beleza das flores começa na esperança, no saber esperar, que inclui semear, plantar, regar, cuidar e imaginar. E as esperanças vegetam durante os invernos.
   Procuro saber o que admiro; prefiro ter consciência do que vivo, do que quero continuar vendo de longe, do que quero viver integralmente no dia-a-dia. A beleza e a funcionalidade da vida estão na diversidade, na compreensão dos ciclos... semelhantes, porém, sempre modificados, diferentes em detalhes que fogem ao nosso entendimento. Depois de séculos, identificamos mudanças significativas.
   Se chovesse o tempo todo ou se nunca chovesse, as plantas seriam extintas. A monotonia mata. A monocultura se autodestrói. Inclusive, a monocultura literária.
   Viver para sempre seria a ‘morte de novas vidas’. A soberba humana pode pretender ser eterna; há quem acredite que sua estupidez seja insubstituível.
   O inverno e o morrer são tão importantes quanto a primavera e o nascimento. A ressurreição, então, seria a arrogância de renascer em detrimento de outras vidas, de se intrometer nas gerações futuras.
   O mundo já está superlotado de homo-deuses; para sobreviver, o Planeta Terra precisa que ocorram muitas mortes definitivas, para dar espaço a novas existências.
   Quero viver plenamente o meu agora com o máximo senso de realidade: essa consciência de que sou único, limitado e efêmero.
                                      ***
O prefixo latino ‘ad’ indica “movimento para, movimento em direção de, aproximação, diante de, junto a, ...”
Ad-miror, atus, sum: ad-mirar, intenção e ação consciente de mirar, de “fixar os olhos em, olhar longamente à distância, fazer pontaria”, se esforçar para atingir o ponto central, desenvolver acuidade, ...
                                               8 de setembro de 2020 11:19

A FORÇA SOCIAL

Há milhares de anos, o hominídeo lutava contra seu vizinho tão naturalmente quanto comia. Ou seja, na luta pela sobrevivência, era normal bater, usar a força para dominar ou, até mesmo, matar o rival. Violência natural. Lutava indivíduo contra indivíduo, família contra família, grupo contra grupo, …

Através dos séculos, a espécie humana usou as mãos e as armas para impor suas ideias e sua vontade, sem ter consciência de que empregava a força física como qualquer outro animal. Os mais fortes dominavam os mais fracos: os adultos dominavam os jovens e os velhos; os machos dominavam as fêmeas – apenas se fossem mais fortes que elas. Quem obedecia era protegido. Por isso, a obediência consagra-se como virtude, do ponto de vista do dominador.

Os fortes podem também dominar pela linguagem. O canto e os gritos conseguem ampliar os espaços vitais de aves e mamíferos. Tomando como exemplo, os galináceos (domésticos ou não) defendem seus espaços pelo cocoricó e os leoninos, pelo rugido.

Se articulassem a linguagem, leões e galos ampliariam seus espaços e a forma de domínio, sobre a própria espécie e sobre outras espécies. Enquanto o grito queria dizer simplesmente “fora daqui, esse pedaço é meu”, a articulação poderia explicar porque tinham direito ao espaço dominado e quais as condições e os limites do domínio.

O poder dos dominantes justificando os argumentos ditatoriais, nas religiões, nas políticas e nas ‘justiças’. Em síntese, as regras oficiais eram (e são) cumpridas porque o bom juízo recomendava obediência. “Manda quem pode; obedece que tem juízo.”

À medida que substituíram o uso da força pelo uso da linguagem articulada, os hominídeos se transformaram em homens. Evolução fundamental para a ampliação e consolidação do domínio humano sobre os demais animais que não desenvolveram a fala. O homem, que, pela força, já dominava outros homens e animais menores, se torna mais eficiente, dominando-os também pela palavra. Inicia, então, a Guerra do Letramento, com o uso da escrita pelas elites cultas para dominar os analfabetos.

Como nos mostra Vigotsky, linguagem e pensamento têm desenvolvimento interdependente e contínuo. Assim, o desenvolvimento linguístico veio acompanhado de desenvolvimento da inteligência. Talvez, se outra espécie animal tivesse articulado a voz, hoje, não seríamos tão soberanos.

A substituição da força pela palavra se dá aos poucos, ao longo de milhares de anos, e ainda não se consumou, coexistindo a democracia com a guerra. O dominador, seja ele indivíduo, grupo ou nação, demonstra civilidade, tentando convencer pela palavra, pelo discurso, pela diplomacia. Porém, se não atingir o objetivo, não vacila em usar a força.

Nesse processo de substituição, se confirma a regra do mais forte: os machos exigem que as fêmeas usem a linguagem em vez de usar a força física para se defenderem ou para atacarem, as obrigando a serem civilizadas. Porém, se as fêmeas não agirem conforme o esperado, os machos, então, se permitem usar a força, porque eles detêm o poder. Poder exercido prioritariamente pela linguagem. Todavia, se elas não tiverem juízo, eles se consideram no direito, segundo o juízo deles, de voltar ao uso da violência física. Essa segunda instância garante que, com o tempo, elas entendam as mensagens.

O mesmo acontece em outras relações sociais: adultos sobre jovens, grupos sobre indivíduos, grupos maiores sobre grupos menores, armados sobre desarmados, ricos sobre pobres, eruditos sobre analfabetos. Surgem alianças de mais fracos para superar o poder de um forte.

A linguagem, a articulação e a força garantem também o domínio do grupo sobre os indivíduos.

O ser humano talvez seja o único animal a se agrupar para atacar a própria espécie, sejam indivíduos ou sejam outros grupos rivais. De forma arcaica, juntando forças físicas – mãos, braços, pernas, unhas, dentes, pedras, paus, fuzis, misseis, … – ou,  democraticamente, substituindo a força muscular pela força oral, pelo poder da palavra.

Exemplo da força inquestionável da sociedade sobre o indivíduo é a pena de morte: muitos são condenados à morte por terem matado… Por isso, a lei manda matar o matador.

Aceitamos que a sociedade faça justiça com as próprias mãos, condenando a morrer os que mataram menos que ela. Matar na guerra merece condecoração, por ser considerado um gesto nobre, da nobreza instituída … que decreta pena de morte para quem matar sem ordem oficial de um governo.

Usamos a própria linguagem para dizer que mudamos a linguagem. Entretanto, em último caso, usamos a força das mãos e dos artefatos bélicos para garantir que a mudança seja aceita, que nossa verdade seja a única, que nossa regra seja cumprida. Mudamos tanta coisa, mudamos o mundo; só não abrimos mão da lei do mais forte.

As leis proíbem o indivíduo de acusar, de roubar ou de matar. Porém, a sociedade – um ente ideológico e mítico – tem o direito de fazer e de absolver a si mesma desses crimes com toda naturalidade, porque é muito mais forte que os indivíduos. As leis civis foram criadas pelo Homem. Logo, são produto cultural humano; não são leis naturais. No entanto, ao mais forte pode optar entre as leis do legislador e as leis da natureza, se houver vantagens para ele.

Em 10.12.1948, os homens se disseram animais especiais, através da Declaração dos Direitos Humanos. Seria o cultural substituindo o natural, mudando as regras sociais. Porém, ainda os opressores esquecem da linguagem, da diplomacia, do diálogo e usam a força bruta, toda vez que seus interesses não são atendidos.

Ainda não somos totalmente humanos; só o seremos no dia em que, abdicando da irracionalidade, respeitarmos os direitos dos outros. Principalmente quando os outros forem os mais fracos, os sem-poder. É a utopia do educador; o sonho possível.

Entretanto, as regras continuam as mesmas: os fortes dominando os fracos, preferencialmente pela palavra. Caso não haja obediência, aí, se volta ao método anterior, que ainda funciona: homens mandando em mulheres, adultos mandando em jovens, grupos mandando em indivíduos, grupos poderosos mandando em grupos menos poderosos. E quem manda tem o direito de escolher as armas; se a palavra for insuficiente, acrescenta-se o porrete, a faca, o revólver, o canhão, o míssil, … o Pentágono, a OTAN e a ONU.

Tudo muda e evolui, menos a regra fundamental do jogo. Inventamos várias contagens para o tempo, vários calendários. O ocidental, que tem mais poder, diz que estamos na virada do milênio, entrando em uma nova era. Ainda os fortes dominando os fracos; sendo mais ético fazê-lo pela linguagem, criando e impondo a lei, que garante o direito do legislador, com os argumentos de quem tem poder.

Desses argumentos, o mais convincente – e talvez o mais sutil e silencioso – é a nossa consciência de que, se o discurso verbal não for suficiente, o detentor do poder apelará para a violência física ou para a violência simbólica: poder do dinheiro, poder político, poder religioso, empregabilidade, …

Escrito em 1976; reescrito em 14.09.1999; atualizado em 27.03.2022.

OS EXPLORADORES

Muito ativos desde pequenos,

choram por qualquer coisa,

exigem dedicação integral e

conseguem a atenção cobrada.

.

Só que começam engatinhar,

exploram o quarto, a casa, o quintal.

Remexem tudo e seguem adiante…

sempre sem limites.

.

Da mãe,

exigem alimento,

carinhos, o infinito e a eternidade;

do pai,

cobram trabalho extenuante,

segurança e presentes;

das demais pessoas,

ocupam o centro das atenções.

.

Mesmo assim, reclamam de tudo.

.

Para ampliar a exploração,

recebem madrinhas e padrinhos,

fontes inesgotáveis

de elogios e de mimos.

.

Depois de explorar o pai, a mãe,

a família, os padrinhos, os avós,

os irmãos e os vizinhos, frequentam

creches, escolas e academias, onde

continuam exigindo privilégios:

exploram colegas e professores.

.

Crescem explorando pessoas,

comunidades, clientes, governos

e todos os que deles se aproximam.

.

Se apossam da natureza

como predadores insaciáveis,

derrubando árvores, matando animais,

queimando os resíduos orgânicos

e, por último, vendem

as pedras que restam no solo.

.

Envenenam as lavouras,

as pastagens, os pátios de casa,

os rios, as lagoas, o mar e o ar.

.

Seguem explorando os vizinhos,

as terras dos vizinhos,

as matas dos vizinhos,

as criações dos vizinhos,

os transportes dos vizinhos,

a amizade dos vizinhos,

a boa-fé dos vizinhos e

acabam esgotando

a paciência dos vizinhos.

.

Depois de sugar a mãe, o pai,

a família, a comunidade,

a natureza e os mananciais de água,

passam a explorar as verbas públicas

e os espaços sociais…

.

Como gafanhotos humanos,

vão desfolhando a vida;

por onde passam,

só restarão esqueletos ao vento.

.

Exploradores

são pessoas bem atuantes,

que vivem sem limites,

se apossando de tudo

o que estiver disponível,

devorando o que encontram,

exigindo ‘colaboração’ dos outros,

sem nunca colaborar,

e ‘ficam muito brabos’ quando

os desejos e a voracidade deles

não forem atendidos.

.

Exploradores desdenham e combatem

a ordem, os limites, as regras,

os valores morais,

as ações comunitárias,

o trabalho coletivo,

a preservação da natureza,

o ajardinamento de ruas e praças,

os cuidados com a casa,

a lealdade com as pessoas e

o respeito com as diferenças.

.

Exploradores não perguntam

‘Eu posso entrar?’,

‘Eu posso pegar uma fruta?’,

‘Eu posso ajudar nesse trabalho?’,

‘Como você se sente?’,

‘O que você espera de mim?’, …

.

Quando casam,

os exploradores já são

especialistas em exploração

e dominam completamente

as esposas, os sogros, os cunhados,

os filhos, os parentes, as instituições.

.

Querem ser servidos,

‘ter tudo à mão’,

sem questionamentos

ou reclamações.

CÂNCER EM MAMA

Comandantes de instituições religiosas criam interdições (muitas vezes, incompreensíveis), que colocam névoas intelectuais entre as pessoas, dificultando a comunicação e criando o obscurantismo. Somos vítimas, “… seres humanos sacrificados a uma divindade ou em algum rito sagrado.”¹ Vivemos sob os constrangimentos morais dos “bons costumes” decorrentes de estratégias de dominação dos humildes por líderes ‘bondosos’, espertos e prepotentes.

Os dogmas e os mitos descrevem eventos metafísicos, criados por discursos da classe dominante e perpetuados pela oralidade plebeia ágrafa e subservil. As elites governantes inventam categorias sobrenaturais para justificar as transgressões às regras morais usadas para subjugar os súditos. Ou seja, controlam o povo com normas que se permitem burlar para dar plena vazão à corrupção, à devassidão, à libertinagem, à perversão e à exploração de seus semelhantes, como escravos ou fregueses de “determinada paróquia ou freguesia”¹.

Os semideuses da mitologia grega (satiros) e romana (faunos), como os demais semideuses em todos os impérios, leigos ou religiosos, permitiam a si o que proibiam aos comandados. Homens com cabeça de bode (que pensavam como um bode de alta potência sexual) que se permitiam a si mesmos (apenas a si mesmos…) dispensar o bom senso e, sem escrúpulos, liberar os instintos animalescos para praticar vícios e abusos.

A dominação masculina começa ao anexar as mulheres pela linguagem: a palavra ‘homens’ designando mulheres e homens, as fêmeas e os machos da espécie Homo Sapiens. Mitos e regras impostas por homens (masculinos, não-femininos) que, em casos extremos, transformam meninas, moças e mulheres em animais domésticos. O machismo permeia a cultura colonial europeia. (Desconheço os comportamentos de gênero nas demais culturas. E, como não conheci e nem convivi com sociedades matriarcais, fico curioso sobre os comportamentos do femealismo.)

Os tabus influenciam os costumes e, consequentemente, a linguagem.  O uso de eufemismos e de jargões camufla a realidade objetiva (camuflar = disfarçar, enganar), gerando escrúpulos infundados, inquietação mental, subserviência, constrangimento e interdição cultural ou religiosa. A hipocrisia imposta pela língua condena, por tabuísmo, palavras comuns, triviais e vulgares. Ou seja, demonializa objetos naturais e ações corriqueiras do nosso cotidiano.

Podemos tomar como exemplo o generalizado uso da expressão “câncer de mama”.

O tabu exige que, ao falarmos de mamas, usemos o ‘bom senso’, eufemismos, palavras não interditadas pela MORAL: ‘peito’ ou ‘seio’. “Deu o peito ao bebê.” “Tem o peito pequeno.” “Estava com o seio à mostra.” “Machucou o seio.”

Em anatomia, identificamos ‘peito’ como “porção anterior ou ventral do tórax”¹. Daí decorre o absurdo de afirmar que a mulher tem dois peitos. (E as porcas, então, teriam entre doze e dezesseis peitos???) Os rapazes também têm um único peito e duas mamas, em geral, pouco desenvolvidas.

No mesmo dicionário, podemos encontrar que ‘seio’ significa “parte do pescoço e do peito feminino que pode ficar descoberto”¹. (Os humanos machos e machos ‘humanos’ permitem essa sedução…) Ou “parte interna”¹, “cavidade”¹. Nas aulas de Anatomia, aprendi que o ‘seio’ de qualquer pessoa estava localizado sobre o osso esterno, entre as duas mamas. De homens e de mulheres.

Por outro lado, deslembro de ter ouvido expressões como ‘espinho de pé’, ‘câncer de cabeça’, ‘câimbra de perna’, ‘dor de coluna’, ‘cólica de rim’, ‘cólica de útero’, ‘afta de boca’, … Em geral, ouço falar ‘espinho no pé’, ‘câncer na cabeça’, ‘câimbra na perna’, ‘dor na coluna’, ‘cólica nos rins’, ‘cólica no útero’, ‘afta na boca’.

Então, talvez, o mais correto (e menos dissimulado) seria dizer ‘câncer em uma mama’, ‘câncer nas mamas’ ou ‘câncer nas duas mamas’.

Mesmo assim, lamentável que as mamas só possam vir a público quando a mulher já está doente.

¹ Dicionário Eletrônico Houaiss

LIBERDADE INDIVIDUAL E ORDEM PÚBLICA

Há pessoas de todos os tipos…

E, ainda, serão inventados outros…

.

Algumas pessoas conseguem viver

desestruturadas, soltas no espaço,

livres, originais, inéditas, sem limites.

A desordem organiza o mundo delas.

.

No outro extremo, identificamos

pessoas agoniadas com a perfeição,

que surtam diante de qualquer

imprevisto que ameace a rotina.

Seguindo um trilho, vivem em paz.

.

Há quem prefira conhecer

os seus próprios limites

e os limites morais e sociais,

para poder respeitar

e, sempre que for possível,

tentar ampliar seus espaços.

.

A sociedade humana

e as coletividades nacionais

estabelecem padrões sociais

de ordem comunitária,

para relações afetivas e

para condutas morais.

.

Cabe a cada um de nós escolher

entre seguir as leis e as normas

ou assumir a liberdade absoluta.

IDEIAS COLETIVAS

Por incrível que pareça, os problemas e as soluções didáticas continuam sendo os mesmos.

A maioria dos instrutores, treinadores, professores e facilitadores ainda continua “dando aula” para si mesma. Doam ou vendem, sem entregar, o ‘saber deles’, a sabedoria particular. Ou seja, a maioria se coloca como centro do processo. Mais que isso: se coloca como quem sabe.

Óbvio, as tecnologias estão cada vez mais diversificadas e mais aprimoradas. Todavia, a didática (pedagogia ou competência oratória) é muito mais um modo como os profissionais buscam, organizam e aplicam as tecnologias, os conteúdos, os fazeres, as pesquisas ou experiências do que a soma de genialidade, tecnologia disponível e sabedoria acumulada.

Existe um número estatístico que aponta para 16% de alunos ou professores realmente conscientes de suas funções e de suas responsabilidades. Dias atrás, troquei mensagens com o autor de um artigo publicado em Profissão Mestre, nas quais eu afirmo que essa era a parcela de pessoas (alunos e professores) que estavam na escola antes de 1967, ano da reforma do ensino que passou a considerar obrigatória a matrícula de todos os jovens de 7 a 14 anos. (Hoje, é dos 6 aos 17 anos) Atualmente, 16% dos alunos e dos professores continuam na escola por opção; os demais, por obrigação.

O som da própria voz é sedutor, encantador. Isto dificulta imensamente a ação do
pedagogo ou de qualquer um que se propõe a ensinar algo pelo canal da fala.
Penso que nossos movimentos também nos encantem; somos vaidosos e acometidos de narcisismos, permanentes ou temporários. Como vencer nosso umbigo e chegar aos outros? Como dosar nossa necessidade de expressão para que ela sirva ao intuito de ensinar?

O poder sempre é sedutor. Políticos, professores e sacerdotes recebem muito poder e – no mais das vezes – confundem a importância da atividade com a importância pessoal, provavelmente, bem menor. Por exemplo, um locutor de rádio ou de televisão acaba envolvido pelo poder da palavra … que nem é dele, é alheia, escrita pelos redatores, lida e logo esquecida. O poder é da média (mídia). Entretanto, muitos se iludem pensando que eles ‘são O Poder’.

Eu mesmo, ao escrever, preciso ter consciência de que as ideias são sempre obras coletivas, geradas no embate intelectual, e não individuais, como que espontâneas. Não. Nunca. Sem o desafio, nós dois – e todos os demais humanos – não pensaríamos, falaríamos e escreveríamos textos edificantes. Você é provocação. Eu sou provocação. Os fatos nos provocam e … no confronto das opiniões, construímos ‘grandes’ ideias. Por isso, os que não aceitam contradições nada criam. Para germinar, a criatividade precisa do diferente, do oposto, do inusitado, do ridículo, do incompleto… O inédito nasce da diversidade e da discordância.