ANOTAÇÕES GRAMATICAIS

PARA USO PESSOAL do Mario Tessari.

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                                       ANOTAÇÕES GRAMATICAIS PARA USO PESSOAL
                                                                               do Mario Tessari

   Especialistas em gramática assumem o papel de policiais e avocam para si o direito de disciplinar as escritas dos usuários da Língua Portuguesa. Para sorte dos falantes, ainda há alguma liberdade na prosódia, na ortoépia e na ortofonia.
   A maioria dos gramáticos categoriza todos os sinais impressos como ‘ortográficos’. A Ortografia disciplina a grafia ‘correta’ das palavras, usando as letras do alfabeto latino conforme um conjunto de regras estabelecidas pela gramática normativa. Algumas palavras recebem sinais gráficos complementares usados para indicar valores fonéticos específicos para determinadas letras: os acentos (agudo, grave ou circunflexo), o cedilha, o til e o trema; o hífen une elementos de palavras compostas.
   No entanto, os sinais ‘de pontuação’ (vírgula, ponto, dois-pontos, ponto-e-vírgula, ponto de exclamação, ponto de interrogação, reticências, parênteses, aspas e travessão), criados para facilitar a leitura e o entendimento das ideias, são utensílios da Sintaxe (conjunto de regras da estrutura linguística) e da Análise Sintática (estudo das funções das palavras e das orações em uma frase).
   Por exemplo, a vírgula pode substituir a conjunção ‘e’ na função de unir “vocábulos ou orações de mesmo valor sintático” [Dicionário Eletrônico Houaiss]. Ao invés de escrevermos: ‘Anna e Marcos e Tadeu estão lendo essa análise.’ e ‘José preparou a terra e plantou as sementes e adubou as plantas e colheu boa safra.’, podemos escrever ‘Anna, Marcos e Tadeu estão lendo essa análise.’ e ‘José preparou a terra, plantou as sementes, adubou as plantas e colheu boa safra.’, evitando, assim, a repetição excessiva da conjunção ‘e’.
   A Ortografia estabelece regras ‘oficiais’ de como as palavras devem ser escritas, diferenciando ‘escritas populares’ de ‘escritas eruditas’. Porém, não prescreve padrões de sintaxe, de textos ou de estilos literários.
   Os professores de gramática são formados por academias científicas com a responsabilidade de professar a ‘pureza gramatical’ e as academias literárias escolhem seus membros dentre os que obedecem a padrões eruditos, como a ortografia e o formato dos textos (prosa, poema, conto, novela, romance).
   Os linguistas analisam a funcionalidade da linguagem falada e/ou escrita, a evolução e a diversificação dos sistemas de representação do pensamento humano.

                                      A PONTUAÇÃO NA PRÁTICA LITERÁRIA

   Posso usar dois-pontos (:), ponto-e-vírgula (;) ou ponto e vírgula (. e ,). Na prática, uso vírgula e ponto (, e .), nessa sequência. Nas frases, uso vírgula para separar ideias que complementam a oração principal, ponto-e-vírgula para incluir ideias divergentes ou paralelas, ponto para indicar que completei o enunciado e ponto-final para encerrar o assunto.
   Ao afirmar que o ponto-e-vírgula (;) é “sinal de pontuação que indica pausa mais forte que a da vírgula e menos que a do ponto”, o dicionarista obrigaria o gago a colocar ponto-e-vírgula a cada ‘pausa gaguejada’, além de uma procissão de vírgulas, para as pausas ‘menos fortes’. O especialista deixa outro desafio: mensurar as pausas (“mais forte que a da vírgula e menos que a do ponto”). Imagino que as pausas possam ser breves ou longas. Como seriam pausas fracas ou fortes?
   Mais preocupantes ainda são as afirmações que a vírgula é uma “ligeira pausa para respirar”. Provavelmente, esses autores sejam biólogos preocupados com nossa fisiologia respiratória.

                                                 RETICÊNCIAS

   As reticências, além das funções técnico-linguísticas, podem ser usadas como recurso estilístico. Vai depender se as reticências são dúvidas da palavra… ou indecisões das ideias …
   No caso, estou indicando ceticismo, dissimulação, hesitação, indeterminação da palavra… ou a omissão de algo que deixo de escrever para que o leitor continue … a frase por conta dele. Ou seja, deixo o leitor decidir como continua a ideia.
   Também uso reticências para indicar uma ‘pausa emocional’ (aposiopese) ou uma insinuação.
   Nesses trechos de Suçurê, aparecem reticências em:
“— Vejo que a aliança ainda está no dedo… Logo … para o povo daqui,  a situação continua na mesma: só mistério.” (P. 485)
“— Mesmo assim, o Icobé vai ficar sozinho e não sabe lidar com o gado; a gente vai deixar tudo organizado, pra ele apenas atender alguma eventualidade. Por falar nisso, seria bom se você, Icobé, pudesse dar seu passeio de reconhecimento agora pela manhã porque cismo de saber que você saia por aí sozinho… Pode lhe acontecer algo e … – opinou Genuíno.
— Boa ideia! Vou encilhar o Zaino e dar uma volta pela invernada. Mas não demoro… – concordou Icobé.” (P. 504)
“— Tem que ver… – ponderou o capataz. Eu devo me afastar por uns dias… O João não pode ficar solito por muito tempo…
— Si desse … fais tempo qui num falo c´a mana Maria Rosa … – choramingou o Silvino.” (P. 505)
“— Não sou eu que procuro antes de ser chamado. São eles que me perturbam com vozes estranhas…
— Estranhas, porém bem audíveis, claras, pois indicam quem é e o local exato em que estão …” (P. 605)

                             O USO DA VÍRGULA ANTES DO PRONOME RELATIVO ‘QUE’

1. Os senadores que foram eleitos no último dia 15 tomarão posse hoje.
2. É difícil encontrar os gatos que fogem de casa durante a noite.
3. O povo cobra dos senadores, que foram eleitos democraticamente, a responsabilidade política.
4. Os gatos, que são venerados desde o tempo dos faraós, preferem viver livres, sem coleiras.
   Nas duas primeiras frases, o pronome ‘que’ indica a delimitação dos sujeitos, através de oração subordinada restritiva, com função de adjunto adnominal da palavra antecedente, indispensável para expressar o sentido pretendido. Sem vírgula; ligadas diretamente aos sujeitos das orações.
1a. Apenas os senadores que foram eleitos no último dia 15 tomarão posse hoje.
2a. É difícil encontrar apenas os gatos que fogem de casa durante a noite.
   Nas duas últimas, o pronome relativo ‘que’ é usado para iniciar uma explicação (oração subordinada adjetiva explicativa); oração opcional que acrescenta uma informação complementar, com características dos sujeitos, que continuam os mesmos. Deve ser escrita ‘entre vírgulas’.
3a. O povo cobra dos senadores[, os quais foram eleitos democraticamente,] a responsabilidade política.
3b. O povo cobra dos senadores a responsabilidade política.
4a. Os gatos[, os quais são venerados desde o tempo dos faraós,] preferem viver livres, sem coleiras.
4b. Os gatos preferem viver livres, sem coleiras.

                                          USO DE LETRAS MAIÚSCULAS

   Escrevo siglas em letras maiúsculas. Uso letras maiúsculas para iniciar nomes próprios; tecnicamente, substantivos próprios. Escrevo Antônio (nome da pessoa) e os antônios (todas as pessoas de nome Antônio); o Brasil e os vários brasis; o Estado (substituto de substantivo próprio) e os estados (substantivo usado para designar nações em comum). 
   Uma palavra composta é um vocábulo resultante da junção de duas ou mais palavras. Se uma palavra composta exercer a função de substantivo próprio, deverá ser grafada com letra inicial maiúscula: Serra-abaixo, Serra-acima, Baia-norte, Baia-sul, …

                                             EXEMPLOS DE USO DE HÍFEN

   Abelha-sem-ferrão é palavra composta (substantivo) que nomeia abelhas com uma característica específica: uma espécie de abelha. E abelha sem ferrão é locução substantiva usada para designar a abelha que perdeu o ferrão.
   Se for nome da espécie, deve ser escrito ‘uruçu-amarela’. Se determinada espécie de uruçu tiver indivíduos uns pretos e outros amarelos, haverá abelhas uruçu pretas e abelhas uruçu amarelas. Mirim-guaçu preta e mirim-guaçu amarela; manduri preta e manduri amarela; porque as espécies são denominadas mirim-guaçu e manduri, respectivamente.
   É questionável que os meliponíneos não possuam ferrões; todavia, com certeza, não ferroam. Logo, a locução deveria ser: abelha que não ferroa. Abelha-sem-ferrão ou abelha-da-terra: espécie de abelhas dos gêneros melípona, trigona, …     Uma abelha do gênero Apis que deixou o ferrão em alguém será uma abelha sem ferrão. Se os chifres de um boi forem decepados, teremos um boi sem chifres. Os que já nascem mochos serão bois-sem-chifres.
   Batata-doce é uma espécie vegetal; batata doce pode ser uma batata adoçada. Boca-de-leão: uma flor; boca de leão: a abertura inicial do tubo digestivo do ‘rei dos animais’. Copo-de-leite nomeia uma flor e ‘copo de leite’ é uma porção de leite que pode estar num copo ou em outra vasilha; a expressão se refere à quantidade do alimento. Ponto-e-vírgula nomeia um sinal de pontuação; ponto e vírgula são dois sinais de pontuação.
   Mesmo depois da última Reforma Ortográfica, as palavras compostas que designam espécies animais ou vegetais continuam sendo grafadas com hífen: bem-te-vi, copo-de-leite, boca-de-renda, porco-bravo, porco-do-mato, aroeira-folha-de-salso, uruçu-boi, formiga-açucareira, formiga-cabeça-de-vidro, …

                                                  SEO OU SEU

   A palavra ‘seu’ é pronome possessivo.
   Eu uso ‘seo’ para traduzir a pronúncia caipira de ‘senhor’. A fala coloquial abrevia as palavras, ‘comendo letras’, economizando tempo e voz, através de síncopes, pronunciando apenas as ‘essências’ da palavra. Maior / mor, senhor / seo, está / tá, estive / tive, embora / em boa hora, … Logo, ‘seo’ – síncope da palavra senhor – é pronome de tratamento. Da mesma forma, ao transcrever falas, uso sinhá ou siá, para designar senhora. Quem escreve ‘seu’ José, deveria, também, escrever ‘sua’ Maria em vez de escrever ‘dona’ Maria.

                                                    ETCÉTERA

   Et cetera, do Latim, significa “e outras coisas, e assim por diante, …”
   A abreviatura (etc.) já vem precedida do conetivo ‘e’ (et). Logo, não uso vírgula antes de ‘etc’. Aliás, uso reticências ao invés de usar etcétera. Deixo o ‘et cetera’ para os romanos. Sou de época mais recente.

                                                     ASPAS

   Uso aspas duplas para indicar trecho de outro autor ou de outro texto meu. Para destacar palavras ou expressões, uso aspas simples, caracteres em tipo itálico ou palavras em caixa-alta.

A DIALÉTICA DA VIDA

A manhã, ao fornecer a luz,

rompe o repouso da noite;

desperta o aconchego do sono.

.

A alegria da primavera

está impregnada de dor,

porque a flor que abre

e o ramo que cresce

precisam romper a si mesmos

para superar o corpo que foram

durante o tempo de recolhimento,

tempo de hibernação.

.

O despertar da vida,

de aparente alegria,

traz em si

o rompimento do próprio ser

para que ele possa ser mais…

.

A magia da vida está

em entender os ciclos vitais,

a alternância das estações,

a importância própria de cada momento,

que é único e necessário para o seguinte,

que não consegue ser mágico por si só,

por ser apenas um passo a mais

no caminho do todo indivisível

prazer de viver como pessoa feliz.

.

A própria morte

traz dentro de si a vida,

pois, a saudade que nos invade

vem grávida da sabedoria de quem se foi,

da consciência de que tudo é efêmero

e de que precisamos viver intensamente

o momento presente,

valorizando as coisas simples e as pessoas,

porque, da vida, só lembraremos

da magia dos encontros humanos.

.

A alegria e a dor são

partes de um todo perfeito,

que alterna sofrimento e prazer,

na construção da vida.

.

A consciência dessa lógica

nos faz artífices do dia que nasce

e da primavera que floresce.

CÂNCER EM MAMA

Comandantes de instituições religiosas criam interdições (muitas vezes, incompreensíveis), que colocam névoas intelectuais entre as pessoas, dificultando a comunicação e criando o obscurantismo. Somos vítimas, “… seres humanos sacrificados a uma divindade ou em algum rito sagrado.”¹ Vivemos sob os constrangimentos morais dos “bons costumes” decorrentes de estratégias de dominação dos humildes por líderes ‘bondosos’, espertos e prepotentes.

Os dogmas e os mitos descrevem eventos metafísicos, criados por discursos da classe dominante e perpetuados pela oralidade plebeia ágrafa e subservil. As elites governantes inventam categorias sobrenaturais para justificar as transgressões às regras morais usadas para subjugar os súditos. Ou seja, controlam o povo com normas que se permitem burlar para dar plena vazão à corrupção, à devassidão, à libertinagem, à perversão e à exploração de seus semelhantes, como escravos ou fregueses de “determinada paróquia ou freguesia”¹.

Os semideuses da mitologia grega (satiros) e romana (faunos), como os demais semideuses em todos os impérios, leigos ou religiosos, permitiam a si o que proibiam aos comandados. Homens com cabeça de bode (que pensavam como um bode de alta potência sexual) que se permitiam a si mesmos (apenas a si mesmos…) dispensar o bom senso e, sem escrúpulos, liberar os instintos animalescos para praticar vícios e abusos.

A dominação masculina começa ao anexar as mulheres pela linguagem: a palavra ‘homens’ designando mulheres e homens, as fêmeas e os machos da espécie Homo Sapiens. Mitos e regras impostas por homens (masculinos, não-femininos) que, em casos extremos, transformam meninas, moças e mulheres em animais domésticos. O machismo permeia a cultura colonial europeia. (Desconheço os comportamentos de gênero nas demais culturas. E, como não conheci e nem convivi com sociedades matriarcais, fico curioso sobre os comportamentos do femealismo.)

Os tabus influenciam os costumes e, consequentemente, a linguagem.  O uso de eufemismos e de jargões camufla a realidade objetiva (camuflar = disfarçar, enganar), gerando escrúpulos infundados, inquietação mental, subserviência, constrangimento e interdição cultural ou religiosa. A hipocrisia imposta pela língua condena, por tabuísmo, palavras comuns, triviais e vulgares. Ou seja, demonializa objetos naturais e ações corriqueiras do nosso cotidiano.

Podemos tomar como exemplo o generalizado uso da expressão “câncer de mama”.

O tabu exige que, ao falarmos de mamas, usemos o ‘bom senso’, eufemismos, palavras não interditadas pela MORAL: ‘peito’ ou ‘seio’. “Deu o peito ao bebê.” “Tem o peito pequeno.” “Estava com o seio à mostra.” “Machucou o seio.”

Em anatomia, identificamos ‘peito’ como “porção anterior ou ventral do tórax”¹. Daí decorre o absurdo de afirmar que a mulher tem dois peitos. (E as porcas, então, teriam entre doze e dezesseis peitos???) Os rapazes também têm um único peito e duas mamas, em geral, pouco desenvolvidas.

No mesmo dicionário, podemos encontrar que ‘seio’ significa “parte do pescoço e do peito feminino que pode ficar descoberto”¹. (Os humanos machos e machos ‘humanos’ permitem essa sedução…) Ou “parte interna”¹, “cavidade”¹. Nas aulas de Anatomia, aprendi que o ‘seio’ de qualquer pessoa estava localizado sobre o osso esterno, entre as duas mamas. De homens e de mulheres.

Por outro lado, deslembro de ter ouvido expressões como ‘espinho de pé’, ‘câncer de cabeça’, ‘câimbra de perna’, ‘dor de coluna’, ‘cólica de rim’, ‘cólica de útero’, ‘afta de boca’, … Em geral, ouço falar ‘espinho no pé’, ‘câncer na cabeça’, ‘câimbra na perna’, ‘dor na coluna’, ‘cólica nos rins’, ‘cólica no útero’, ‘afta na boca’.

Então, talvez, o mais correto (e menos dissimulado) seria dizer ‘câncer em uma mama’, ‘câncer nas mamas’ ou ‘câncer nas duas mamas’.

Mesmo assim, lamentável que as mamas só possam vir a público quando a mulher já está doente.

¹ Dicionário Eletrônico Houaiss

LIBERDADE INDIVIDUAL E ORDEM PÚBLICA

Há pessoas de todos os tipos…

E, ainda, serão inventados outros…

.

Algumas pessoas conseguem viver

desestruturadas, soltas no espaço,

livres, originais, inéditas, sem limites.

A desordem organiza o mundo delas.

.

No outro extremo, identificamos

pessoas agoniadas com a perfeição,

que surtam diante de qualquer

imprevisto que ameace a rotina.

Seguindo um trilho, vivem em paz.

.

Há quem prefira conhecer

os seus próprios limites

e os limites morais e sociais,

para poder respeitar

e, sempre que for possível,

tentar ampliar seus espaços.

.

A sociedade humana

e as coletividades nacionais

estabelecem padrões sociais

de ordem comunitária,

para relações afetivas e

para condutas morais.

.

Cabe a cada um de nós escolher

entre seguir as leis e as normas

ou assumir a liberdade absoluta.

Recontagem de ÚLTIMA TRAVESSIA

Ouvi como anedota. Entretanto, o cenário, o tema e a insolência para com o homem humilde provocaram em mim uma reação ética e uma reflexão filosófica.

Um barqueiro ganhava seu sustento transportando pessoas para a outra margem do imenso rio. Não havia pontes. Era o único meio de transporte disponível. Em geral, transportava pessoas conhecidas, moradores das redondezas ou alguém que queria visitar algum familiar que morava além da outra margem.

Porém, num final de tarde, um homem com aspecto muito diferente dos ribeirinhos contratou uma travessia. As roupas e a pasta demonstravam ser uma pessoa da cidade. Mais que isso, cheio de si, parecia orgulhoso, cheio de si, semostrador.

Logo que a canoa saiu do embarcadouro, perguntou:

– Você conhece a Grécia?

– Grécia? Ela mora por aqui?

– Não, não. Não é uma mulher. A Grécia é um país distante e muito importante, porque foi lá que nasceu a Filosofia. Você deveria conhecer. Você não sabe o que está perdendo…

O humilde barqueiro baixou a cabeça. O objetivo dele era bem simples: levar pessoas de uma margem à outra.

– Você sabe Filosofia?

O barqueiro continuou remando, desinteressado dessa outra… possível … Seria outra nação? Seria uma mulher? Uma cidade?

Mesmo entendendo o silêncio e percebendo a inutilidade de lições, o homem explicou:

– A Filosofia investiga os princípios, os fundamentos e as essências da realidade imanente. Você não sabe o que está perdendo…

O barqueiro nem deu ouvidos; permaneceu atento à força da correnteza e aos movimentos arriscados do passageiro que podiam jogar água pra dentro da embarcação.

– Você sabe por que o avião consegue voar?

Pobre homem!!! Nem sabia da existência de aviões… Via muitos pássaros voarem… Até as folhas secas voam levadas pelo vento… Mas… avião… nem imaginava…

– Não. Não sei, não.

– Você não sabe o que está perdendo…

O barqueiro se sentiu mais pobre ainda… Nada possuía e ainda estava perdendo muita coisa…

– Você já leu Lucas Visentini?

– Lucas, eu conheço. Mas, ler o Lucas… Lá isso eu não sei.

– Você não sabe o que está perdendo…

O homem estava mesmo espezinhando o seu transportador.

– Qual a voltagem da energia elétrica por aqui?

O barqueiro ficou ainda mais confuso. Energia, ele até sabia o que era… Voltagem? Seria a volta de alguém? De dona Elétrica, talvez… Tem cada nome por aí…

– Nunca ouvi falar…

– Você não sabe o que está perdendo…

E assim, enquanto o barquinho singrava as turbulentas e agressivas águas do imenso rio, seguiu o desdenhoso interrogatório.

Além dos perigos naturais de se navegar a imensidão do rio em uma minúscula canoa, um iminente naufrágio ameaçava a vida de ambos, por causa da imprudência do passageiro.

No limite de sua paciência, o barqueiro perguntou agressivamente:

– O senhor sabe nadar?

– Nunca precisei aprender… – ironizou.

– Se continuar enchendo a igara de sabença e saracoteando sem parar, a canoa vai virar e o senhor vai perder tudo o que sabe. Até a própria vida…

PENSAR NO IMPENSAR

Nada lembramos do que vivemos

– inconscientemente –

nos primeiros anos de vida.

.

Da infância à adolescência,

agimos mais por impulso

que por raciocínio lógico.

.

Aos poucos, vamos tomando consciência

de nossos acertos e de nossos erros

e passamos a refletir antes de fazer,

acreditando que construímos o destino

com nossas escolhas, sem responsabilizar

o azar ou a sorte por fracassos ou sucessos.

.

Se planejarmos o que iremos fazer

e analisarmos o que fizemos,

poderemos reduzir o volume de erros

e viver sem tantas decepções.

.

À medida que envelhecemos,

passamos a pensar mais sobre

o cada vez menos que podemos fazer.

Substituímos espontaneidade e ingenuidade

por responsabilidade crítica.

TERRORISMO COMUNITÁRIO

O agressor grita de medo

para quem tem coragem

de ouvir insultos em silêncio.

Os animais gritam de medo;

os animais humanos

usam revólveres para amedrontar,

ameaçar e matar o que temem.

Muitos acreditam que

armas e insultos

possam substituir a coragem.

E que o silêncio das vítimas

possa ser sinal de covardia

que autorize prosseguir

com ações terroristas.

IDEIAS COLETIVAS

Por incrível que pareça, os problemas e as soluções didáticas continuam sendo os mesmos.

A maioria dos instrutores, treinadores, professores e facilitadores ainda continua “dando aula” para si mesma. Doam ou vendem, sem entregar, o ‘saber deles’, a sabedoria particular. Ou seja, a maioria se coloca como centro do processo. Mais que isso: se coloca como quem sabe.

Óbvio, as tecnologias estão cada vez mais diversificadas e mais aprimoradas. Todavia, a didática (pedagogia ou competência oratória) é muito mais um modo como os profissionais buscam, organizam e aplicam as tecnologias, os conteúdos, os fazeres, as pesquisas ou experiências do que a soma de genialidade, tecnologia disponível e sabedoria acumulada.

Existe um número estatístico que aponta para 16% de alunos ou professores realmente conscientes de suas funções e de suas responsabilidades. Dias atrás, troquei mensagens com o autor de um artigo publicado em Profissão Mestre, nas quais eu afirmo que essa era a parcela de pessoas (alunos e professores) que estavam na escola antes de 1967, ano da reforma do ensino que passou a considerar obrigatória a matrícula de todos os jovens de 7 a 14 anos. (Hoje, é dos 6 aos 17 anos) Atualmente, 16% dos alunos e dos professores continuam na escola por opção; os demais, por obrigação.

O som da própria voz é sedutor, encantador. Isto dificulta imensamente a ação do
pedagogo ou de qualquer um que se propõe a ensinar algo pelo canal da fala.
Penso que nossos movimentos também nos encantem; somos vaidosos e acometidos de narcisismos, permanentes ou temporários. Como vencer nosso umbigo e chegar aos outros? Como dosar nossa necessidade de expressão para que ela sirva ao intuito de ensinar?

O poder sempre é sedutor. Políticos, professores e sacerdotes recebem muito poder e – no mais das vezes – confundem a importância da atividade com a importância pessoal, provavelmente, bem menor. Por exemplo, um locutor de rádio ou de televisão acaba envolvido pelo poder da palavra … que nem é dele, é alheia, escrita pelos redatores, lida e logo esquecida. O poder é da média (mídia). Entretanto, muitos se iludem pensando que eles ‘são O Poder’.

Eu mesmo, ao escrever, preciso ter consciência de que as ideias são sempre obras coletivas, geradas no embate intelectual, e não individuais, como que espontâneas. Não. Nunca. Sem o desafio, nós dois – e todos os demais humanos – não pensaríamos, falaríamos e escreveríamos textos edificantes. Você é provocação. Eu sou provocação. Os fatos nos provocam e … no confronto das opiniões, construímos ‘grandes’ ideias. Por isso, os que não aceitam contradições nada criam. Para germinar, a criatividade precisa do diferente, do oposto, do inusitado, do ridículo, do incompleto… O inédito nasce da diversidade e da discordância.

MUDAR NA MUDANÇA

Podemos mudar de apartamento, casa, bairro, cidade, região, país, … Talvez, … de planeta…

Impulsionados por insatisfações, saturamentos, esgotamentos, tragédias, expulsões, aversões ou oportunidades.

Podemos deixar o indesejado, algo do que fomos, apelidos, relações, humilhações, perseguições, limitações espaciais ou emocionais.

Em busca de horizontes amplos, harmonia interna, familiar, social ou comunitária: melhores condições de vida.

Podemos mudar de residência e aproveitar para mudar de vida.

Ou, ingenuamente, carregar conosco idiossincrasias, ilusões, manias, comportamentos, …

Assumindo os mesmos papeis, repetindo hábitos prejudiciais, reconstruindo o desagradável…

Ou podemos aproveitar a mudança para mudar a nós mesmos, abandonando ‘verdades’, replantando esperanças e concretizando sonhos.