PIOLHENTO

Em Ipoméia, os adultos contavam e repetiam a história da “Véia Pina” e do “Celestino Pancada” toda vez que uma criança insistisse em implicar com os colegas ou na prática de maldades sem nexo. A história era usada como fábula, com função moral de corrigir comportamentos.

Nos tempos atuais, seria preconceito com ela e boas reflexões sobre o nome dele: Celestino, porque ‘merecia o céu’ de tanta pancada que recebeu na vida? Piolhento, dizia ela.

Relatavam um evento fatídico que ficou impresso em nossas memórias. Nunca lembrei de perguntar quem de fato eram, se tiveram filhos, do que viviam. Nem mesmo o nome civil completo dos dois. Lembro apenas que a casa deles ficava na barranca da margem direita do Rio Preto, a meio caminho entre a vila e o moinho. Era uma faixa estreita de chão batido e varrido, com uma casa de madeira escurecida pelas intempéries durante muito tempo.

Diziam que ela vivia implicando com o marido, debicando, enticando e chamando de piolhento. Diziam que a vida conjugal deles sempre teria sido assim: ela depreciando o marido e ele suportando tudo calado.

Naquele dia, ela teria chamado e apontado para a algo invisível no meio do rio. Ele teria olhado o ponto apontado, com atenção, forçando as vistas. E ela, aproveitando a concentração dele no inexistente apontado, embalou carreira pra empurrar o marido pra morte. Ele, porém, escutou os passos acelerados dela e, no momento que seria empurrado, saiu de lado, deixando que a mulher passasse a toda e caísse na água profunda do rio.

Ela, mesmo submersa e se afogando, ainda punha as mãos pra fora da água e fazia o gesto de quem esmaga piolho entre as unhas dos polegares.

LIMITES

   Cada ser vivo estabelece seu espaço vital, conforme o poder que tem de restringir o espaço dos outros. Se sozinho no mundo, provavelmente, o indivíduo estabeleça seus limites no limiar de suas necessidades de espaço.

No entanto, cada vez mais, aumenta a densidade de seres vivos, diminuindo a fatia que corresponde a cada um. Por isso, como algumas plantas e alguns animais, sobrepujam os mais fracos, invadindo os espaços vitais deles. Excedem aos seus limites, exatamente porque os vizinhos carecem de forças e de agressividade para defenderem os próprios limites.
Por outro lado, alguns dos invadidos utilizam justamente a inércia individual para provocar piedade, reivindicando direitos iguais.
A palavra respeito é aglutinação portuguesa da expressão latina ‘res pectus’, significando coisa alheia. Ou seja, se é dos outros, não devo mexer.
Mas, também, pode significar ‘ação de olhar para trás’. Então, respeitar deveria ser aceitar o limite dos outros, sem abrir mão dos próprios limites.
A convivência entre seres vivos será sempre uma relação de poder. Para nós seres humanos, poderá ser um conjunto de relações pacíficas, mediadas por comportamentos éticos.

REMISSÃO DE CULPA

Você pede desculpas.

Eu não tenho poderes para anular tuas culpas e, muito menos, poder para remir teus crimes. Não há como emendar bananeiras ou desfazer os cortes, os ferimentos e a morte de árvores; não consigo ressuscitar vegetais. Seria utópico (e é) se livrar das agressões apenas confessando as culpas.

Você veio reaver as armas do crime, sem trazer de volta os objetos que sumiram, destruídos ou jogados para o fundo do lago do esquecimento. Você não consegue devolver as horas de sono consumidas pela dúvida e pela insegurança decorrente da tua maldade ingênua. Você não consegue devolver a confiança em humanos; você não consegue remendar a paz dilacerada e, muito menos, restituir vida.

HIGIENE DA CUECA

   Nasci e cresci imerso na cultura brasileira: machista, reprodutiva, contraditória e simplista; às vezes, simplória e, até, leviana.
Por procura ou por sorte, fui ouvindo vozes dissonantes, indicações de ingenuidades coletivas que se enraizavam em mim também. Sou cientista amador, movido por curiosidade, em busca de atitudes mais coerentes.
   Lá pela terceira década de vida, um comentário, quase um murmúrio, despertou minha mente para as condições higiênicas de minhas cuecas.
   Quando criança, habitante de um cafundó, minha mãe aproveitava panos velhos, restos de camisas ou sobras de retalhos para confeccionar uma roupa íntima elementar. Ainda menino, fui enviado ao seminário para aprender a ler e a escrever. Ela precisa fazer bonito. Afinal, o filho seria alfabetizado. Então, ela aprimorou o modelo, chegando a algo próximo de uma cueca samba-canção. Só passei a usar cuecas compradas em loja quando ganhei algum dinheiro e saí da vila para estudar e trabalhar em uma pequena cidade.
   Paralelamente, a “privada” dos meus tempos na roça evoluiu, nos seminários, para “banheiro coletivo”; para banheiros de pensionatos e para um banheiro adaptado em minha primeira casa; de madeira, mas, “com banheiro”, se bem que ‘adaptado’. Nos seminários, só o nome de “banheiro”, pois, os banhos semanais dependiam das águas – às vezes, barrentas – dos rios.
   E assim fui evoluindo... Mesmo que – hoje, percebo – ainda faltasse muito para poder me vangloriar da higiene pessoal. Aí, ouvi o cochicho a que me referi em alguns parágrafos atrás.
   Desde menino, depois de urinar, toda vez, eu esperava as últimas gotas abandonarem a glande; me demorava... e as pessoas ironizavam esse tempo extra, insinuando malícias ou ironias. Por mais que cuidasse e usasse estratégias para evitar as gotas de urina restantes, a cueca, vez em quando, manifestava o odor de desasseio.
   Perguntei para algumas mulheres como elas faziam para evitar que a calcinha ‘ficasse temperada de urina’. Estranharam a pergunta e demonstraram preocupação com meu comportamento e com minha masculinidade. Ora, usavam papel higiênico...
Pensei: nunca vi meninos, rapazes e homens usando papel absorvente para secar as gotas temporãs... Porém, mesmo que fosse ironizado, decidi experimentar a técnica sanitária.
   Confesso que sofri zombarias e reprimendas. Afinal, estava violando o código do machismo, posto em risco a segurança dos ‘verdadeiramente homens’ e semeando dúvidas sobre minha opção sexual.
   Outra decisão minha: sentar no vaso sanitário para urinar. Afinal, quem convive comigo merece encontrar o assento limpo e inodoro.
   Na Década de 1980, quando passei a trabalhar para uma empresa em que os mictórios se estendiam ao longo de uma parede, às vezes, passava por humilhação, porque algum colega me via a higienizar a glande e o prepúcio e proclamava essa ‘pouca vergonha’ para debochados colegas e clientes na grande sala de trabalho.
   Também sofria escárnios em estações rodoviárias e aeroportos. Os que viam secando os restos de urina riam com complacência, parecendo se apiedarem dos meus desvios ‘morais’. Entretanto, minhas cuecas ficavam quase livres de imundícies e eu sentia o orgulho de romper um preconceito. Por me sentir menos sujo e mais confortável, fiz desse cuidado um hábito.
   No final do Século XX, embarcava mais uma vez para exercer meu trabalho no extremo-norte do país. Depois de encaminhar minha bagagem e meu embarque, fui aos ‘sanitários’, carregando a ‘bagagem de mão’.
   Como sempre se faz, ao adentrar ao ambiente restrito, lancei um olhar estratégico para a parede em frente, onde se alinhavam os mictórios ... e encontrei um rolo de papel higiênico ao lado ‘direito’ de cada urinol de louça.
   Aquela visão me deixou paralisado. E a estátua viva chorou... Inicialmente, um choro manso, lágrimas escorrendo silenciosamente... Os dois passageiros que lá estavam, ao sair, passaram por mim olhando o chão, compadecidos com meu pranto. Os que vinham entrando me olharam com assombro e um deles veio me consolar, pois, então, eu já me sacudia em soluços.
   Me emocionei porque via realizado um sonho evolutivo; um espaço público tinha sido preparado para atender a uma necessidade daqueles que desejavam privilegiar a higiene íntima em detrimento da glória machista de ‘jamais se comportar como mulher’.
   Tenho consciência de que aqueles rolos de papel higiênico foram colocados ali para atender mais da metade dos ‘homens’ que ali urinassem; que, sozinho, nada teria conseguido. Todavia, eu tinha sido um dos que lutaram em silêncio por aquele benefício. Vibrei de alegria por ter participado de um evento social evolutivo; de ter ouvido o Zeitgeist (“o espírito do tempo”) e contribuído para a higiene das cuecas.
                                              Sítio Itaguá, 08.09.2020

LER O QUE NOS MANDAM LER

No jogo político-social, cada personagem defende a sua trincheira. Os bandidos (que andam em bando…) espertos, os canalhas eficientes, os malvados e os maldosos diplomados exercem funções da Sociedade ‘elevada’ … para a sociedade levada…

Quando o dedo aponta a lua, os idiotas olham o dedo.” Herbert Marshall McLuan

Ou seja, enquanto o povo olha o dedo, o Sistema age livre de análises críticas.

Lendo a reportagem https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2023/05/01/escritor-tem-livro-retirado-de-vestibular-de-universidade-apos-deputado-criticar-obra.ghtml, concluo (talvez, só eu, louco, Lúcifer, …):

Os professores e os reitores ‘responsáveis’ (ir…) pelo ‘vestibular’ não leem os livros que usam como texto-base … que são indicados por professores/atores de ‘cursinhos pré-vestibular’.

Segue a quadrilha educativa (com bem mais que quatro…), não é José Pacheco?

“… Hoje, o tirano governa não pelo cassetete e pelo punho; mas, disfarçado em pesquisador de mercado, ele conduz seu rebanho pelos caminhos da utilidade e conforto.” Herbert Marshall McLuan

É a experiência, e não a compreensão, que influencia o comportamento.” Herbert Marshall McLuan

A esquizofrenia pode ser uma consequência inevitável da alfabetização.” Herbert Marshall McLuan

VIDAS POR ESCOLHER

Dentre os animais,
nós - humanos – podemos fazer
escolhas racionais e construir
um modo cultural de viver.

Podemos escolher
a vontade de cooperar,
a prática da bondade, ...
o dinheiro como deus ou
"a doença como caminho".

Podemos cultivar a avareza,
a gula, a luxúria, o ódio, ...
abusar de mansos, de fracos,
de crianças e de idosos;
ser intolerantes, usar armas,
intimidar pessoas, fazer intrigas,
promover guerras, conquistas, ...

Pessoas simples
– muitas vezes, sem diploma,
com limitações físicas e com
poucos recursos financeiros – 
se unem para ajudar amigos,
desconhecidos e, até, inimigos,
na esperança que mais gente
entre no mutirão do bem.

Por outro lado,
predadores desfaçados
exploram familiares,
vizinhos e governos
para comprar e esbanjar.

Devassos se entregam
a prazeres desenfreados,
abusando dos outros e
desmoralizando a vida.

Quando alguém cai
na escuridão do fanatismo,
segue a voz que arrasta
para o abismo da alienação.

Quem segue leis naturais,
com simplicidade e desapego,
tem maiores chances de 
viver em paz e harmonia.

Alguns fazem escolhas iniciais
na infância ou na adolescência;
outros, escolhem aos poucos,
quando tomam consciência
da própria responsabilidade,
ou ... só na velhice...

Quem nunca escolhe
acaba escolhido e,
alienado e manipulado,
segue o fluxo social,
rumo ao fracasso.

Frases 10

  1. A tolerância é semente de paz.
  2. Quem planta emoções colhe violência.
  3. A vaidade é pedra inútil que carregamos.
  4. Ao invés de viver a própria vida, muita gente quer viver a vida dos outros. Essa é a mais profunda das alienações.
  5. O dialético percebe o mundo como realidade em contínua transformação.

FRASES 9

  1. A maior e a pior violência é a violência étnica: impor aos outros aquilo que chamam de cultura.
  2. Para o pobre, o pouco resolve; para o rico, nem o muito satisfaz.
  3. Ao organizar o ambiente e/ou o tempo, as pessoas estão também organizando a “mente” (inteligência). A desorganização externa (ambiente/tempo) é apenas reflexo da desorganização interna.
  4. A partir da fala surgem a reflexão e a consciência, como capacidades de descrever a si mesmo.
  5. Alguns anos atrás, era suficiente que parte da população passasse pelos bancos escolares para receber apenas informações. As exigências do mundo atual são bem maiores: toda população precisa dominar o conhecimento, desenvolver habilidades e assumir atitudes. É o saber, o saber fazer e ter a consciência do que faz.

FRASES 8

  1. A paz e a guerra são escolhas.
  2. Não se ama apenas o bem; muitas pessoas amam a guerra, a fofoca, o lucro, a promiscuidade, o vício, o jogo, …
  3. A paz rende mais que a guerra.
  4. O político tira um pouco de todos, distribui um mínimo aos amigos e guarda o resto.
  5. As pequenas ilhas é que são exóticas; paisagens para se olhar de fora e não lugares para se viver. É melhor viver em terra firme do que em ilhas de fantasia.

PARTE DO PROBLEMA

   Eu sofria ataques verbais dos vizinhos, sem compreender a razão de tão intensas e contínuas agressões.
   Conversando com os filhos, um deles afirmou que eu estava provocando a situação.
   No primeiro momento, senti abalo emocional: considerei que até o filho estava contra mim.
   Depois, refleti: ele falou isso por um motivo. Procurei inverter o meu ponto de vista, experimentar outros olhares, tentar ver por outro ângulo. Imaginar o que meu filho via.
   Então, conclui: minha afabilidade, meus sorrisos silenciosos e minha vontade de ajudar criavam barreiras e, até, aversão. Afinal, eu era ‘de fora’; o que estaria querendo? “Ensinar a gente viver do jeito dele?” Minhas palavras eram recebidas como desaprovação do modo de vida dos ‘nativos’. Eu era ‘de fora’, não comungava dos valores deles, como criar bois atados em cordas à beirada de estradas, proliferar cães e gatos, jogar lixo no rio, ... Minhas opiniões, atitudes e crenças causavam desconfortos e desencadeavam reações agressivas.
   Queriam ‘me expulsar’. Assim, eles estariam livres de ‘críticas delicadas’ e de orientações ‘urbanas’ (“pensa que vive na cidade”), como ensinar pessoas a ler e a escrever, aparar a relva, cultivar jardim, plantar flores, construir canteiros na horta em retângulos sob medida, “fazer trabalho de mulher”, perder tempo plantando árvores, ... Como o Plínio Schmidt me alertou: “Andam dizendo por aí que o senhor é um louco. Enquanto todo mundo luta pra limpar os terrenos, o senhor planta mato.” 
Minhas tentativas de conversar, minha disponibilidade, meus desejados diálogos sem entrar no jogo verbal de revidar, sem responder à altura, sem ter uma “atitude de homem”. Meu comportamento cortês agredia as pessoas, minha tolerância com homossexuais e com negros depunha contra valores ‘consagrados’; meu ateísmo assustava.
   Ou seja, eu era parte do meu problema. Ou pior: eu causava problemas.
   Eu escrevia frases filosóficas no quadro pendurado na varanda. E a maioria deles despreza a leitura ou nem sabe ou não quer ler... Eu escrevo livros; “Vai ver que tá escrevendo da gente...”. Meu comportamento, sem que eu tivesse consciência disso, atraia o ódio dos ‘normais’. Ao longo de dezesseis anos, esporadicamente, sofri tempestades de palavrões e de acusações infundadas do vizinho, que, talvez, esteja indignado com meu silêncio complacente, com minha ‘educação exagerada’. “Tem gente que estuda a vida intera e não aprende a ajudá quem percisa.” “Bicha covarde. Froxo. Se iscode atráis da janela e da muié, foge pra banda de lá do rio.”
   Pesquisei e encontrei alguns ensaios sobre a aversão aos benevolentes e aos afáveis. Afável? Uhhhmmmm! Afável... Seria falta de atitudes viris? Falta de capacidade de enfrentamento? Covardia? Enfim, um ‘homem frouxo’... Então, querer a paz, querer viver em harmonia, seria agressivo aos belicosos? Fugir das competições, das encrencas e dos riscos sociais seria uma provocação para os empreendedores, para os destemidos? Sou um franguinho manso que se encolhe a cada bicada? Meu desejo de ‘ficar quieto no meu canto’ agride os competidores? Meu silêncio incomoda os que gritam? Percebo que essa minha afabilidade ofende as pessoas... que me atacam... e eu me encolho... Ao fugir de polêmicas, de confusões e de brigas, eu provoco a ira deles. Escolhi me retrair, abdicar da convivência comunitária e permanecer calado, sem contextualizar situações e sem relatar meus sentimentos.
   Convicto de que sou parte dos problemas que causo, passei a usar essa dúvida em minhas análises de conjuntura e nas solicitações de aconselhamento.
   Por esse ponto de vista, vejo que a maioria dos problemas persiste porque as pessoas se sentem vítimas condescendentes; não se veem como parte do problema e continuam agindo de boa-fé, crentes que ‘fazem o bem’.
   Acredito que o reconhecimento de que somos parte dos problemas pode contribuir na solução das nossas dificuldades afetivas e nas melhorias de nossas relações sociais.