HIGIENE DA CUECA

   Nasci e cresci imerso na cultura brasileira: machista, reprodutiva, contraditória e simplista; às vezes, simplória e, até, leviana.
Por procura ou por sorte, fui ouvindo vozes dissonantes, indicações de ingenuidades coletivas que se enraizavam em mim também. Sou cientista amador, movido por curiosidade, em busca de atitudes mais coerentes.
   Lá pela terceira década de vida, um comentário, quase um murmúrio, despertou minha mente para as condições higiênicas de minhas cuecas.
   Quando criança, habitante de um cafundó, minha mãe aproveitava panos velhos, restos de camisas ou sobras de retalhos para confeccionar uma roupa íntima elementar. Ainda menino, fui enviado ao seminário para aprender a ler e a escrever. Ela precisa fazer bonito. Afinal, o filho seria alfabetizado. Então, ela aprimorou o modelo, chegando a algo próximo de uma cueca samba-canção. Só passei a usar cuecas compradas em loja quando ganhei algum dinheiro e saí da vila para estudar e trabalhar em uma pequena cidade.
   Paralelamente, a “privada” dos meus tempos na roça evoluiu, nos seminários, para “banheiro coletivo”; para banheiros de pensionatos e para um banheiro adaptado em minha primeira casa; de madeira, mas, “com banheiro”, se bem que ‘adaptado’. Nos seminários, só o nome de “banheiro”, pois, os banhos semanais dependiam das águas – às vezes, barrentas – dos rios.
   E assim fui evoluindo... Mesmo que – hoje, percebo – ainda faltasse muito para poder me vangloriar da higiene pessoal. Aí, ouvi o cochicho a que me referi em alguns parágrafos atrás.
   Desde menino, depois de urinar, toda vez, eu esperava as últimas gotas abandonarem a glande; me demorava... e as pessoas ironizavam esse tempo extra, insinuando malícias ou ironias. Por mais que cuidasse e usasse estratégias para evitar as gotas de urina restantes, a cueca, vez em quando, manifestava o odor de desasseio.
   Perguntei para algumas mulheres como elas faziam para evitar que a calcinha ‘ficasse temperada de urina’. Estranharam a pergunta e demonstraram preocupação com meu comportamento e com minha masculinidade. Ora, usavam papel higiênico...
Pensei: nunca vi meninos, rapazes e homens usando papel absorvente para secar as gotas temporãs... Porém, mesmo que fosse ironizado, decidi experimentar a técnica sanitária.
   Confesso que sofri zombarias e reprimendas. Afinal, estava violando o código do machismo, posto em risco a segurança dos ‘verdadeiramente homens’ e semeando dúvidas sobre minha opção sexual.
   Outra decisão minha: sentar no vaso sanitário para urinar. Afinal, quem convive comigo merece encontrar o assento limpo e inodoro.
   Na Década de 1980, quando passei a trabalhar para uma empresa em que os mictórios se estendiam ao longo de uma parede, às vezes, passava por humilhação, porque algum colega me via a higienizar a glande e o prepúcio e proclamava essa ‘pouca vergonha’ para debochados colegas e clientes na grande sala de trabalho.
   Também sofria escárnios em estações rodoviárias e aeroportos. Os que viam secando os restos de urina riam com complacência, parecendo se apiedarem dos meus desvios ‘morais’. Entretanto, minhas cuecas ficavam quase livres de imundícies e eu sentia o orgulho de romper um preconceito. Por me sentir menos sujo e mais confortável, fiz desse cuidado um hábito.
   No final do Século XX, embarcava mais uma vez para exercer meu trabalho no extremo-norte do país. Depois de encaminhar minha bagagem e meu embarque, fui aos ‘sanitários’, carregando a ‘bagagem de mão’.
   Como sempre se faz, ao adentrar ao ambiente restrito, lancei um olhar estratégico para a parede em frente, onde se alinhavam os mictórios ... e encontrei um rolo de papel higiênico ao lado ‘direito’ de cada urinol de louça.
   Aquela visão me deixou paralisado. E a estátua viva chorou... Inicialmente, um choro manso, lágrimas escorrendo silenciosamente... Os dois passageiros que lá estavam, ao sair, passaram por mim olhando o chão, compadecidos com meu pranto. Os que vinham entrando me olharam com assombro e um deles veio me consolar, pois, então, eu já me sacudia em soluços.
   Me emocionei porque via realizado um sonho evolutivo; um espaço público tinha sido preparado para atender a uma necessidade daqueles que desejavam privilegiar a higiene íntima em detrimento da glória machista de ‘jamais se comportar como mulher’.
   Tenho consciência de que aqueles rolos de papel higiênico foram colocados ali para atender mais da metade dos ‘homens’ que ali urinassem; que, sozinho, nada teria conseguido. Todavia, eu tinha sido um dos que lutaram em silêncio por aquele benefício. Vibrei de alegria por ter participado de um evento social evolutivo; de ter ouvido o Zeitgeist (“o espírito do tempo”) e contribuído para a higiene das cuecas.
                                              Sítio Itaguá, 08.09.2020

MAU-OLHADO

   Desde criança, ouvi pessoas dizerem que alguém havia colocado mau-olhado nas fronhas, nas dobras da roupa ou nos bolsos. Ouvia mulheres especulando quem teria feito aquele feitiço, quem teria praticado a bruxaria, com que intenção. E sempre citavam alguém da família, alguma vizinha, algum parente, como pessoa perigosa, que poderia fazer grande mal, podendo causar até a morte. Porém, jamais eu tinha visto o mau-olhado em si.
   No início da adolescência, talvez, com mais curiosidade e, sem dúvida, com alguma coragem, quando ouvia uma voz assustada falando que tinha encontrado um mau-olhado, procurava as provas reais do malefício. Deixava passar alguns minutos, observava com cuidado se a denunciante estava ocupada com outro assunto ou estava cuidando de seus afazeres e vasculhava todas as roupas que estivessem penduradas nos varais para secar.
   Demorei para encontrar ‘objetos perigosos’. Saía frustrado; entretanto, ainda mais curioso. Redobrei minha atenção, agucei os ouvidos e preparei os olhos para encontrar ‘o inimigo’. Mesmo assim, não encontrei ‘o monstro’ que poderia destruir a vida de uma pessoa da família ou até a mim mesmo.
   Como dizia Anna Maria, minha mãe, quando desisti de procurar, quando já tinha esquecido das ameaças, alguém me mostrou um mau-olhado. Então, entendi porque não conseguia encontrar os anteriores: eu procurava algo horrível, amedrontador à primeira vista.
   Para poder frequentar a escola (Curso Ginasial), passei meses hospedado na casa de uma família, para a qual prestava serviços. Levantava no final da madrugada para ajudar a filha da dona do botequim a fazer pastel, cavaquinho, bolinho de chuva, cueca-virada e sonho para serem vendidos aos passageiros do ônibus que passava logo após às seis horas.
   Durante uma daquelas empreitadas, a moça soltou um grito medonho, tirou e jogou o casaco através da porta, apesar do frio intenso e da geada sobre as plantas. Parei de sovar a massa e aguardei calado, pois, ela era bem temperamental e poderia reagir agressivamente. Ela era a filha da patroa, mas, queria mandar mais que a mãe.
   Mesmo com medo, ela se encolheu de frio e, em poucos minutos, me mandou buscar o casaco caído logo depois da porta. Obedeci, sem contestar. Quando ofereci a veste, ela, tremendo, se encostou mais ainda contra a parede, com olhos de pavor. E ordenou que eu tirasse o mau-olhado que estava no bolso direito do casaco, já gelado e úmido de sereno.
   Vacilei. Se era perigoso para ela, poderia ser perigoso para mim também. Todavia, tinha que obedecer...
   Abri lentamente o bolso indicado e nada vi de diferente. Apenas, na parte mais funda do bolso, havia um amontoado de fiapos e de finas fibras que tinham se desprendido do tecido. Virei o bolso pelo avesso e ia retirar os fragmentos quando ela gritou ainda mais assustada: “Não põe a mão. Tu tá loco?” 
   Eu, muitas vezes, havia retirado montinhos de pano no fundo dos meus bolsos... Nem por isso, fiquei louco ou senti algum quebranto. No entanto, precisava concordar com a patroazinha. Então, ela ficou mais indecisa que eu: vestir o agasalho com mau-olhado, suportar o frio ou assistir o extermínio de uma superstição. Seria uma vergonha ter mais medo que o adolescente quatro anos mais novo que ela... Foi vencida pelo frio ...
   Nos vinte anos seguintes, desperdicei meu tempo tentando convencer vítimas de quebranto de que aqueles restos de tecido lavado comprovavam, apenas, que as pessoas não costumavam virar a roupa pelo avesso na hora de lavar. Depois, aprendi a cuidar da minha vida, tão somente, e fiquei em silêncio diante de pessoas com medo de mau-olhado.

AUTOANÁLISE. AUTOCURA.

Consigo lidar com os limites da mente, do espírito. Basta uma dose de humildade e a firme decisão de aceitar a realidade. Tenho relativo controle sobre o campo psicológico. Invento esperanças, alimento ilusões, cancelo projetos, reinvento motivos para viver. Leituras e escrituras ajudam a curar feridas emocionais. Meditar, conversar, dialogar, … procedimentos que aliviam as decepções e podem fortalecer meu senso de realidade.

No mundo físico, os limites são mais persistentes, mais teimosos. Mostram força e colocam as soluções depois do horizonte, para além das minhas forças. A chuva, a seca, o calor, o frio, o vento, o corpo, … Os elementos naturais seguem o ritmo eterno e fico à mercê deles. Analiso meu corpo, o transportador de minha mente, o habitat de meu espírito. Tento otimizar os movimentos, administrar o funcionamento. Com dificuldades, porque meu corpo envelhece depressa, degenera. Ao contrário da mente, que se renova a cada incentivo, a cada estímulo, a cada carinho recebido, o corpo definha inexoravelmente.

Autoanálise. Autopreservação. Autofinamento. A mente ativa governando um corpo em constante redução, enfraquecido. Busco meu fim.

No fim, serei muitas ideias em um corpo frágil. Essa será a mais perfeita das imperfeições. A perfeição possível.

ADMIRAÇÃO

O prefixo latino ‘ad’ indica “movimento para, movimento em direção de, aproximação, diante de, junto a, ...” [Houaiss] 
Ad-miror, atus, sum: ad-mirar, intenção e ação consciente de mirar, de “fixar os olhos em, olhar longamente à distância, fazer pontaria”, se esforçar para atingir o ponto central, desenvolver acuidade, ... [Houaiss] 
*** 
     Eu admiro o voo dos pássaros. Posso passar horas, no templo da floresta, con-templando os pássaros em suas ousadias e em suas habilidades voláteis, que representam a real liberdade. Admiro, apenas... não quero estar com eles no ar, não pretendo voar. 
     Admiro os heróis; fujo de heroísmos. Prefiro ser normal, passageiro, substituível e livre de idolatrias. Jamais eterno. Meu corpo e minha mente são finitos. Talvez, minhas ideias se propaguem e sobrevivam ao meu sopro vital... 
     Admiro o circo que está (des)armado aqui em frente. Admiro apenas. Por enquanto, sou plateia e auditoria. Logo, o circo seguirá seu espetáculo e eu permanecerei silvestre, parte da Natureza, convivendo com os bichos, plantando sementes. 
     Admiro a Primavera. Todavia, o encanto dela está – exatamente – na impermanência, na fugidade das estações e dos ciclos cósmicos. Se, o tempo todo, fosse primavera, já estaríamos cansados do eterno florir. A beleza das flores começa na esperança, no saber esperar, que inclui semear, plantar, regar, cuidar e imaginar. E as esperanças vegetam durante os invernos. 
     Procuro saber o que admiro; prefiro ter consciência do que vivo, do que quero continuar vendo de longe, do que quero viver integralmente no dia-a-dia. A beleza e a funcionalidade da vida estão na diversidade, na compreensão dos ciclos... semelhantes, porém, sempre modificados, diferentes em detalhes que fogem ao nosso entendimento. Depois de séculos, identificamos mudanças significativas. 
     Se chovesse o tempo todo ou se nunca chovesse, as plantas seriam extintas. A monotonia mata. A monocultura se autodestrói. Inclusive, a monocultura literária. 
     Viver para sempre seria a ‘morte de novas vidas’. A soberba humana pode pretender ser eterna; há quem acredite que sua estupidez seja insubstituível. 
     O inverno e o morrer são tão importantes quanto a primavera e o nascimento. A ressurreição, então, seria a arrogância de renascer em detrimento de outras vidas, de se intrometer nas gerações futuras. A Terra já está superlotada de homo-deuses; para sobreviver, o planeta precisa que ocorram muitas mortes definitivas, para dar espaço a novas existências. 
     Quero viver plenamente o meu agora com o máximo senso de realidade: essa consciência de que sou único, limitado e efêmero. 
08.09.2020 – 15:41 

RECONHECIMENTO

   Desconheço as razões pelas quais escrevo; apenas, escrevo.
   Ler e escrever foram desejos gerados por meus pais, Anna Maria e Vitorino, bem antes de "deus lhes dar um filho". (Nem imaginavam existir óvulos e espermatozoides...) Devo a eles muito do que sou. Além de me darem corpo, cultivaram minha mente e forjaram valores que prezo e procuro praticar.
   Escrevi literariamente a partir da adolescência. O primeiro poema, que guardo por escrito, foi dedicado a meu pai, matado anos antes. Durante o Ensino Médio, a professora de Língua Portuguesa, Irmã Maria Rosa, como avaliação escrita, determinou: “Escreva uma redação sobre o tema: RUAZINHA DA MINHA INFÂNCIA”. Escrevi um soneto, contemplado com nota dez e estrelinhas. O poema está na página 9 do livro Ipoméia. Segundo poema, logo a seguir do poema-título.
   À medida que o tempo passava, mais e melhor fui escrevendo. Escrevi e escrevo por escrever, para ajudar pessoas a escreverem, para organizar meu código de valores, para construir vida intelectual e como possibilidade pós-morte.
   Alguns mestres escolares me incentivaram e orientaram. Quando ganhei dinheiro, comprei uma máquina de escrever e papel em resma. Montei livros datilografados... O primeiro computador, a primeira ferramenta de digitação eletrônica (o aplicativo Fácil), depois, o Windows e o Word.
   Em 1977, as senhoras luteranas da OASE, de Canoinhas SC, estavam organizando um grande evento cultural e Ederson Luis Matos Mota, diretor da EEB Almirante Barroso, propôs que fosse lançado um livro e que poderia ser um livro com poemas do Mario Tessari. O Ederson selecionou trinta e um poemas que receberam capa e ilustrações de Maria de Lourdes Brehmer e formaram o pequeno livro Ipoméia.
   A partir dessa publicação, recebi convite de jornais e de revistas, onde pratiquei as artes poéticas, narrativas, cronicontadas, ...
   Aos dezesseis anos, tive a sorte de conviver com um homem culto, que colocou à minha disposição sua biblioteca e que me propunha desafios todos os dias. Eu admirava imensamente o casal e considerava a história do amor deles algo com direito a ser narrado; iniciei as escrituras de SUÇURÊ.
   Depois de aposentado, voltei à UFSC como aluno do Curso de Psicologia. Como participante daquele centro cultural, me senti no direito de publicar um livro pela EdUFSC. O poeta que presidia a Editora, me tratou com desdém e encaminhou a negativa com o conselho de que aguardasse alguns anos 'para amadurecer' e reescrever os poemas. Eu estava com cinquenta e três anos... E os leitores poderão avaliar a 'maturidade' dos poemas que compõe o livro MOMENTOS, publicado em 2004.
   Essa publicação foi o desencadear de muitas outras publicações. E não por acaso: a partir desse ano passei a conviver dia-e-noite com Maria Elisa Ghisi.
   Além de parceiros nas lidas cotidianas, domésticas e profissionais, unimos nossas mentes em leituras compartilhadas e no esforço para bem escrever.
   A Elisa tem ótimas ideias. Porém, as ideias dela permanecem orais, ágrafas. Apenas anota e registra pensamentos ... em letra cursiva; tudo manuscrito.
No entanto, sem ela, não haveria tantos ‘livros do Mario Tessari’, nem tantos textos publicados no blogue. Ela também é a principal divulgadora de minhas obras.
   Todavia, a maior contribuição dela sempre foi e continua sendo a leitura atenta, as críticas assertivas e acertivas, a indicação da presença de obscuridade ou de ideias confusas (falta de clareza ou ambiguidade), a denúncia de incoerências, vazios ou absurdos, o questionamento das construções frasais, o apontamento da necessidade de coerência ética, os alertas sobre estética e fluência e a exigência de responsabilidade sobre o que se escreve. 
   Sem ela, a qualidade dos meus livros (conteúdo e redação) estaria bem abaixo.
   No início do ano 2022, fui movido pelo desejo de escrever estórias para meus netos. As ideias foram surgindo em minha mente e transformadas em textos digitais. Porém, dependeria de alguém que conseguisse desenhar melhor do que eu, que consigo apenas rabiscar...
   Com auxílio da WEB, encontrei a ilustradora Renata Ramos e iniciamos uma parceria literária. Além de criar imagens lindas e comunicativas para cada ideia escrita, ela trabalhou bastante e conseguiu publicar nosso primeiro livro para crianças de alguns países.

MORTE CONSCIENTE

   Morremos no momento que tomamos consciência da morte. A falência dos órgãos vitais determina o término do processo biofísico; apenas, o desligar da máquina humana.
   Hoje (20.01.2023), eu morri. Isto é, tomei consciência da minha morte: da inutilidade de meus esforços, durante décadas, para construir estruturas habitacionais e estruturas culturais. Eu sou nada. Nada ficará. A floresta será derrubada, as aves silvestres serão presas ou abatidas, as fontes voltarão a secar, o dinheiro será gasto e as palavras serão dispersas ao vento.
   Eu é que, fantasma de mim mesmo, sobrevivi à minha morte, para contemplar a dissipação no meu mundo idílico. Como fantasma, me sinto bem mais leve...
   Viver é acreditar nas próprias ilusões.

LEIS DA NATUREZA

   Duas borboletas azuis, grandes e reluzentes, movidas pelas energias da juventude, voejavam acrobaticamente em todas as direções. Envolvidas no prelúdio pré-nupcial, alheias ao mundo, seguiam os instintos juvenis, sem rota, sem lógica e sem termo.
   As árvores, passivamente, aceitavam que as duas pousassem sobre elas e depositassem ovos que, em breve, serão lagartas em desenvolvimento no interior da casca, onde devorarão o felogênio, ganhando forças para furar o tronco e matar as plantas.
   Lembrei das borboletas humanas que voam ao meu redor...
   Talvez, também eu seja suporte para outras vidas...

OUVIDOS CANSADOS

Andando pela floresta, ouvimos os sons da Natureza como vozes que nos saúdam e nos acolhem. Intercalados com pequenos intervalos de silêncio. Se tivermos sorte, seremos surpreendidos por melodias de pássaros; apresentações individuais, sinfonias, corais, orquestras ou jograis. Sabiás, bem-te-vis, pombas, canários, tico-ticos, coleirinhas, curiós, trinca-ferros, ...

Essas alegrias também podem ser vividas em parques, praças e calçadas arborizadas. Os pássaros chegam, pousam em uma árvore, cantam, mudam de árvore, vão embora. Por serem imprevisíveis e por nos alegrarem por instantes, mais fundo gravam os sons em nossas memórias. Levamos conosco a lembrança das melodias e o desejo de ali voltar a ouvir.

A surpresa desperta nossa mente; a monorritmia vira ruído... inaudível.

Algumas pessoas prendem pássaros em gaiolas exíguas, penduradas em paredes sombrias ou expostas ao sol e ao vento. Ao ver a chuva (se da prisão puder ver...), o prisioneiro abre as penas, recordando dos bons banhos nos tempos de liberdade, se, antes de ser preso, teve essa felicidade... Porque, quando chove, a passarada se alegra com um banho natural.

Parodiando Otto Lara Resende em Vista Cansada, podemos dizer que a repetição invariável e jamais ausente nos suja os ouvidos e causa surdez. Um pássaro preso em uma gaiola, presa à parede de barbearia, de oficina, de apartamento ou de sala, ao repetir, do amanhecer ao anoitecer, o mesmo canto, no mesmo lugar, vira monotonia, barulho, falência dos tímpanos.

HUMILDADE E ESPERANÇA

Na floresta, os sons dos espaços naturais,
a sensação de privacidade e de paz.

Silêncio relativo.
Orquestra da Natureza, melodias
coletivas, harmoniosas e surpreendentes;
coro multissom: animais, folhas, vento, chuva,
murmúrio do riacho, algazarra da cachoeira.

Sinfonias interrompidas quando
um bicho entoa sua apresentação solo;
os demais silenciam para escutar
gorjeios, pios, trinados, assobios ou
o cantar de bugios, capivaras, cobras,
gambás, graxains, lagartos, lontras,
maracajás, ouriços, ratos ou tatus.


Floresta... Flores? Abelhas...
Flores no chão e flores nas copadas das árvores.
Poucas flores à altura de olhos humanos;
privilégio dos répteis e das aves, tatus e de sabiás.

Para ver flores,
precisamos olhar pra baixo e olhar pra cima.

Um exercício que pode ser útil na Sociedade:
olhar pra baixo e olhar pra cima;
aceitar os pequenos e os grandes;
perceber as dificuldades da pobreza
e temer o poder da riqueza;
rever o passado e mirar o futuro.

HOMO SAPIENS SAPIENS FUTURUS

     A Medicina e os profissionais ‘da saúde’ atendem doentes e combatem doenças. As pessoas enfermas vão (ou são encaminhadas) ao Sistema de Saúde: consultórios, médicos e hospitais. Paradoxal. “A realidade está grávida de seu contrário.”*
     Se uma pessoa saudável, em pleno exercício de sua saúde, chega a um consultório, clínica ou hospital, será considerada ingênua e corre o risco de ser ridicularizada em seus temores ou, bem possível, de ser explorada emocional e financeiramente. O mercado clínico explora, lucrativamente, o nosso medo de adoecer e o nosso pavor diante da certeza de que vamos morrer.
     Além do interesse profissional e financeiro da Indústria Clínica, agora, pessoas sadias, que gozam até de saúde invejável, desejam ser ainda mais saudáveis: SUPERsaudáveis ou mais, HIPERsaudáveis. Possivelmente, na esperança de fazer parte de uma nova espécie humana que viveria trezentos anos, com possibilidade de viver ‘para sempre’.
     Mesmo que inconsciente ou de forma disfarçada, talvez, já exista um grupo humano sonhando com a construção de uma elite de gigantes, como há uma elite capitalista, que acredita na importância de ficarem cada vez mais ricos, para que os riquíssimos consigam amealhar ainda mais riqueza, formando uma casta que se afastará ainda mais da pobreza popular. Essa elite quer criar um ‘mundo à parte’, distante da miséria e da possibilidade de morrer de fome...
     Chega, agora, a notícia de que um inglês insatisfeito com o corpo dele pagou mais que R$ 800.000,00 para um cirurgião enxertar ossos nas pernas ... e ele “cresceu 8 cm”.** Imagino que o ego do homem tenha crescido muito mais... Será que ficará mais saudável? Será que estará mais feliz?
     Na minha terceira passagem como estudante da UFSC, aos cinquenta e três anos, muitos colegas ainda meio adolescentes olhavam com compaixão para o grupo de ‘velhos’ da turma, porque a “Matrix” estava se realizando aos poucos: que eles, SUPERjovens e SUPERinteligentes, seriam os primeiros pós-sapiens-sapiens e que nós éramos bichos do passado, hominídeos a serem usados como serviçais deles, para resolver pequenos problemas que ainda não eram resolvidos pela inteligência artificial e pela automação total.
     Nesses tempos antropocêntricos e de reinvenção do homem, ressurgem células de fascismo e de nazismo, adeptos da eugenia, e as escolas trabalham na formação de SUPERdotados, a partir da seleção de alunos SUPERinteligentes que possam construir um mundo virtual, espaços cibernéticos ... nas nuvens, residência de semideuses...
     Lembro que, ao final do Século XX, durante um dos muitos trabalhos meus na Amazônia, me contaram que, em uma aldeia próxima, estava surgindo “uma nova ‘raça’ de índios, índios gigantes”. Isso acontecia em uma única aldeia daquela tribo que habitava uma vasta região. Antropólogos, sertanistas, biólogos, sociólogos e cientistas de ‘instituições superiores’ haviam estudado o fenômeno sob todos os aspectos, sem, porém, encontrar “evidências científicas” que explicassem ‘a boa nova’.
     Passados alguns anos, um viajante, leigo e despretensioso, perguntou, a um caçador que conhecia quase todas as aldeias, em quantas delas atracava esse barco com câmara frigorífica. “Só nesse”, afirmou ele. Ou seja, os ‘frangos de granja’, com altos níveis de somatotropina (hormônio do crescimento) só chegavam a essa aldeia e os resíduos continuavam agindo naqueles índios ‘privilegiados’.
     Décadas depois, uma pesquisa acadêmica ‘descobriu’ que, naquela aldeia, as doenças desenvolvidas pelo próprio corpo matavam antes e mais que as doenças transmissíveis.

*Princípio fundamental da Filosofia Dialética.
**https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2022/11/21/homem-gasta-mais-de-r-800-mil-para-fazer-cirurgia-e-crescer-8-centimetros.htm