Os velhos troncos, só no cerne, aprenderam a resistir às ventanias, aos temporais e às enxurradas. Viveram muito; porém, também eles cairão um dia. O cerne representa a solidez vegetal. Como os velhos troncos, fui perdendo o vigor aparente, as partes macias, a elasticidade tecidual. Vou me reduzindo, cada vez mais, à essência de mim mesmo. Sempre procuro e pratico a verdade, mesmo que demore a encontrar. As aparências e as gentilezas cederam lugar à objetividade, ao pragmatismo, ao essencial. Meus olhos ainda veem e, com calma, podem enxergar realidades; meus ouvidos ainda funcionam e a mente ainda elabora mapas de meus entornos sociais. Ainda consigo analisar o que acorre e posso prever, em parte, o que poderá acontecer. Tenho consciência de que o amanhã está mergulhado na dúvida. Atento, sem pressa e agindo conscientemente, ainda posso controlar meu corpo, administrar meu dinheiro, trabalhar e tomar decisões. Eu ainda percebo as possibilidades e sei o que quero. Às vezes, as tempestades testam minha estabilidade. Porém, as ameaças passam e, por enquanto, continuo no controle de minha vida.
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INSATISFEITOS
Somos compostos de matéria e espírito. Nem sempre os dois caminham juntos: às vezes, o corpo quer o que a mente nega; outras, a mente quer o que o corpo não pode. Vivemos assim entre o sonho e a realidade. A realidade nos parecendo sempre limitada, com urgente necessidade de ampliação; o sonho se colocando tão além, longe do alcance das nossas mãos. Queremos o abraço, o carinho, o afeto... Sem abrir mão de nossas regras, de nossas vontades, de nossos desejos. Queremos o conforto e a segurança de uma família, mas, também, a liberdade e a intimidade negadas pelos familiares. Queremos a autonomia, a independência, o poder... Porém, com eles, perdemos a fragilidade, a ajuda, o mimo, o aconchego, a proteção. Queremos silêncio ou música, jejum ou extravagância, abstinência ou luxuria, distância ou abraços, sol ou chuva... conforme nossa mente ou conforme nosso corpo alternem nossos desejos. Estamos eternamente insatisfeitos, somos completamente incompletos. Por isso, a vida é bela: sempre há o que fazer, sempre há pelo que lutar.
O PORVIR E O POR VIR
Vivo uma vida singela, entre árvores e pássaros, ouvindo a música das cachoeiras, cultivando a horta e o jardim, usufruindo uma aposentadoria tranquila, que possibilita passar algumas horas lendo ou escrevendo. Partilho com a Elisa a parceria nos projetos e o apoio recíproco nas dificuldades. Nada será ‘pra sempre’, por isso, renovamos todos os dias nossas práticas de convivência.
Amanhã …?
Viverei como escritor-sitiante até quando perder o domínio sobre o corpo e sobre a mente; por enquanto, cuido da casa e do corpo e, com a ajuda do Vanderlei, consigo dar conta dos trabalhos de manutenção do Sítio Itaguá. Depois… quem sabe alguém que ame a natureza queira continuar a obra? Acredito que sempre haverá utópicos dispostos a ‘dar a vida pela natureza’.
Morrer…
Se a morte repentina me apagar, minha velhice será breve…. Caso tenha uma morte longa, dependerei de cuidadores que caibam no meu orçamento e de alguém que administre a situação.
Prefiro morrer ‘na luta’, peleando, de pé. Se acaso as pernas fraquejarem, continuarei a caminhar sobre muletas, rodas ou esteiras, pois, enquanto vivo, quero andar.
Pode a mente sofrer períodos de descontinuidade ou ser desligada definitivamente; sei que pode ocorrer. Quando isso acontecer, peço o favor: desliguem o corpo também. Quando perder o ‘eu’ existencial, nada mais terei para pensar, ler ou escrever e a vida corporal será inútil para mim e um estorvo para as pessoas próximas.
Espero que mente e corpo morram simultaneamente; se um tiver que morrer primeiro, que seja o corpo. Quando a mente morrer, o corpo não saberá o que fazer.
SAÚDES
Todas as saúdes se fundam em relações humanas cooperativas: a saúde social. Quem convive em harmonia com as pessoas e com o meio ambiente vive em paz, com saúde psicológica. E o corpo aceito pela mente terá saúde física. Isso, se a Medicina for considerada Ciência da Saúde, como opção a nosso alcance. Se conseguirmos nos imunizar da mercantilização das doenças e do medo de morrer, teremos, então, uma morte saudável. Sítio Itaguá/26.06.22/03:05
AUTOANÁLISE. AUTOCURA.
Consigo lidar com os limites da mente, do espírito. Basta uma dose de humildade e a firme decisão de aceitar a realidade. Tenho relativo controle sobre o campo psicológico. Invento esperanças, alimento ilusões, cancelo projetos, reinvento motivos para viver. Leituras e escrituras ajudam a curar feridas emocionais. Meditar, conversar, dialogar, … procedimentos que aliviam as decepções e podem fortalecer meu senso de realidade. No mundo físico, os limites são mais persistentes, mais teimosos. Mostram força e colocam as soluções depois do horizonte, além das minhas forças. A chuva, a seca, o calor, o frio, o vento, o corpo, … Os elementos naturais seguem o ritmo eterno e fico à mercê deles. Analiso meu corpo, o transportador de minha mente, o habitat de meu espírito. Tento otimizar os movimentos, administrar o funcionamento. Com dificuldades, porque meu corpo envelhece depressa, degenera. Ao contrário da mente, que se renova a cada incentivo, a cada estímulo, a cada carinho recebido, o corpo definha inexoravelmente. Autoanálise. Autopreservação. Autofinamento. A mente ativa governando um corpo em constante redução, enfraquecido. Busco meu fim. No fim, serei muitas ideias em um corpo frágil. Essa será a mais perfeita das imperfeições. A perfeição possível.
ADMIRAÇÃO
Eu admiro o voo dos pássaros. Posso passar horas, no templo da floresta, con-templando os pássaros em suas ousadias e em suas habilidades voláteis, que representam a real liberdade. Admiro, apenas... não quero estar com eles no ar, não pretendo imitar.
Admiro os heróis; fujo de heroísmos. Prefiro ser normal, passageiro, substituível e livre de idolatrias. Jamais eterno. Meu corpo e minha mente são finitos. Talvez, minhas ideias se propaguem e sobrevivam ao meu sopro vital...
Admiro os vizinhos. Admiro apenas. Prefiro ser plateia e auditório dos projetos e das realizações deles, enquanto continuo silvestre, como elemento da Natureza, convivendo com os bichos e plantando sementes.
Admiro a Primavera. Todavia, o encanto dela está – exatamente – na impermanência, na fugidade das estações e dos ciclos cósmicos. Se, o tempo todo, fosse primavera, já estaríamos cansados do eterno florir. A beleza das flores começa na esperança, no saber esperar, que inclui semear, plantar, regar, cuidar e imaginar. E as esperanças vegetam durante os invernos.
Procuro saber o que admiro; prefiro ter consciência do que vivo, do que quero continuar vendo de longe, do que quero viver integralmente no dia-a-dia. A beleza e a funcionalidade da vida estão na diversidade, na compreensão dos ciclos... semelhantes, porém, sempre modificados, diferentes em detalhes que fogem ao nosso entendimento. Depois de séculos, identificamos mudanças significativas.
Se chovesse o tempo todo ou se nunca chovesse, as plantas seriam extintas. A monotonia mata. A monocultura se autodestrói. Inclusive, a monocultura literária.
Viver para sempre seria a ‘morte de novas vidas’. A soberba humana pode pretender ser eterna; há quem acredite que sua estupidez seja insubstituível.
O inverno e o morrer são tão importantes quanto a primavera e o nascimento. A ressurreição, então, seria a arrogância de renascer em detrimento de outras vidas, de se intrometer nas gerações futuras.
O mundo já está superlotado de homo-deuses; para sobreviver, o Planeta Terra precisa que ocorram muitas mortes definitivas, para dar espaço a novas existências.
Quero viver plenamente o meu agora com o máximo senso de realidade: essa consciência de que sou único, limitado e efêmero.
***
O prefixo latino ‘ad’ indica “movimento para, movimento em direção de, aproximação, diante de, junto a, ...”
Ad-miror, atus, sum: ad-mirar, intenção e ação consciente de mirar, de “fixar os olhos em, olhar longamente à distância, fazer pontaria”, se esforçar para atingir o ponto central, desenvolver acuidade, ...
8 de setembro de 2020 11:19
FRASES
- O amar depende da decisão de aceitar o outro como ele é.
- Economia é a arte de saber gastar.
- A sede ensina a cavar poços.
- Felicidade é ter o que fazer.
- A morte nos ensina a viver.
Do livro LETRAS, PALAVRAS, FRASES, POEMAS.
Em memória de Júlio Dias de Queiroz.
Bom ler seus escritos. Sempre aprendo e ficam aspirações de desvendar como faz para criar relatos que nos fazem sempre querer chegar ao parágrafo seguinte.
Viver. Morrer. Você divaga e navega nestas correntes difíceis de aceitar ou concordar com tantas indagações, sempre sem respostas convincentes. Mas, na verdade, até me convenceu de que nascemos tantas vezes que, talvez, até possamos continuar vivendo…
Basta ser um bom escritor … talvez, um bom filho … ou (quem sabe?) um bom amigo como o seu velho mestre que faleceu aos mais de noventa anos. Foi seu amigo, seu mestre e seu leitor.
Você teve a humildade e a gentileza filial de reconhecer o saldo positivo das cartas trocadas. Sugestões singelas que o inspiravam a pensar no futuro e no que passou e (o pior) nas duas implacáveis certezas: a existência do nascer e do morrer. Por tantas vezes e por tantas causas.
E, quanto mais vivemos, amigo Mario Tessari, mais fingimos não acreditar no fim.
É alta madrugada. Vamos ao descanso.
Fraterno Abraço
Pedro Paulo Pamplona Vieira Peixoto
A VIDA DE JÚLIO DE QUEIROZ
Nascer e morrer são conceitos subjetivos.
Quando nasceu Júlio Dias de Queiroz? No momento em que saiu do ventre da mãe? Ou a vida biológica começou bem antes, no dia da concepção?
Objetivamente, podemos datar os ritos de passagem: para a família, nasceu no dia do parto; para a Nação, no dia do registro civil; para a Igreja, no dia do batismo; para a Academia Catarinense de Letras, no dia da entronação na cadeira 10.
Para a mente do Júlio, a vida psicológica se efetiva a partir das memórias mais antigas; talvez, lá pelos quatro anos civis. Para mim, Júlio Dias de Queiroz nasceu na véspera de Natal de 1981, quando recebi a carta dele, escrita cinco dias antes. Foi aí que ele passou a existir pra mim. O mestre tinha encontrado três poemas de minha autoria no Varal Literário da Praça XV, que impressionaram “pela intensidade e pela precisão de linguagem”. Por se sentir identificado comigo, propôs “conversar sobre a poesia, sobre o mundo e sobre a gente”.
Durante 34 anos, trocamos cartas e mensagens. E recebi alguns bons puxões de orelha: “Estou fora do linguajar moderno, mas não empregaria “usufruir” para dizer “fruir” ou “gozar”. […] Você é bom demais para cair (três vezes) no linguajar dos ‘cocôs’.”
No dia 24 de janeiro de 2016, o Júlio manifestou seu estado de espírito: “Mario, do pouco do que tenho – e não estou sendo falsamente modesto – tenho a obrigação de dividi-lo antes da partida para a outra dimensão do existir, que está muito próxima.”
Agora, ouvi dizer que ele morreu… Deve ser mais uma das brincadeiras dele, pois, ultimamente, ele vivia dialogando ludicamente com a morte; se tornaram amigos, se entendiam perfeitamente. Talvez, tenham combinado dar uma volta, fazer um passeio ou mesmo uma viagem mais longa.
Depois que ele comemorou o aniversário de noventa anos, foi aos poucos se retraindo, ficando lacônico, trocando nossas conversas por silêncios misteriosos. Talvez, estivesse realizando um dos últimos desejos: “viver o meu morrer”.
Ficaram alguns assuntos pendentes… Ele cobrava meus romances e eu ia mostrar pra ele os rascunhos de Suçurê; o outro está apenas concebido e inicia a gestação… Também ele, nunca me mostrou o livro que estava escrevendo depois dos noventa… Espero que tenha deixado os manuscritos com a Salma ou com o Celestino…
Levando em conta os silêncios dele – ultimamente –, pra mim vai fazer pouca diferença, pois posso conversar com os livros que ele escreveu, ler a lista de obras indicadas por ele e escrever sempre mais e melhor.
Vai ser bastante difícil o Júlio Dias de Queiroz morrer dentro de mim; ele será eterno…
E pra você? Você acredita no que estão dizendo por aí: que ele morreu? Ou dará vida e continuidade às brilhantes ideias dele?