MUNDOS

Cada um cria o seu mundo.

Há quem viva entre as paredes de um apartamento, apartado dos vizinhos e a salvo de bichos intrusos. Outros, apenas dormem em apartamento e passam o dia perambulando pelas ruas da cidade.

Quem queira ainda mais mobilidade, compra um apartamento com rodas ou remos e percorre o mundo em busca de novidades.

Os naturistas se refugiam em área rural para viver em contato com a vida selvagem, cultivar hortas, pomares e jardins, e dormir no silêncio das noites enluaradas.

A população urbana se alimenta às pressas, em restaurantes ou compra, por telefone, lanches, comida pronta e iguarias.

Há quem prefira cultivar a horta, plantar e colher chás, hortaliças e legumes, e preparar a alimentação que consome.

São mundos bem diversos, antagônicos, até.

Sobre a Terra, há – por enquanto – espaço para esses humanos esquisitos realizarem seus diferentes projetos individuais, de acordo com seus modos de viver.

Cada um com sua loucura, podemos ser todos felizes.

MENOS AMIGOS, MAIS AMIZADE

A certeza de que a vida é curta
aumenta com a idade.

Até os quatro anos,
nem sabemos que pensamos.
Até a adolescência,
carecemos de consciência moral.

As primeiras décadas
transcorrem sem economia de tempo,
pois, parece que seremos eternos.
No entanto, a meia-idade vem
nos avisar de que a manhã já se foi
e que a tarde se esvai:
o vigor físico cede lugar à debilidade.

Tomamos consciência de que
o aclive chegou ao fim e que a
‘melhor idade’ escorre cachoeira a baixo.
Se na juventude esbanjamos energia
e corremos atrás de aventuras,
na maturidade, passamos a escolher
com cuidado os encontros e as companhias.

RECREIO: espaço para crer, imaginar e inventar.

Por opção, Maria Alfabetizadora passava os intervalos entre as aulas com os alunos. Aproveitava esse tempo para descontrair, conhecer melhor as ideias e os hábitos dos jovens e, principalmente, aproveitava essa convivência para rejuvenescer o espírito e para atualizar as visões de mundo.

Esses momentos de convívio destituído de hierarquias favoreciam as trocas de informações, autorizavam os alunos a ensinar o que sabiam e, consequentemente, a se abrirem para a aprendizagem. Com ganhos relacionais decentes e discentes, todos voltavam para suas salas com outro ânimo.

Os demais professores não compartilhavam dessa opção e mesmo a consideravam ‘esquisita’. Por isso, ela pouco se encontrava com os colegas ou com eles conseguia conversar. A maioria deles se refugiava na Sala dos Professores, onde as conversas giravam em torno de assuntos sociais, futebolísticos e/ou políticos; preferencialmente, futilidades que os ajudassem a esquecer dos ‘suplícios’ em sala de aula. Para eles e para alguns alunos, o recreio era um momento de folga, em que comemoravam o prazer do ócio.

Nos dois primeiros anos de trabalho, Maria Alfabetizadora exerceu o magistério em escola rural, onde era a única professora, lecionando para duas séries matutinas e duas séries vespertinas, em sala mutisseriada. A escola, a igreja, o cemitério e o campo de futebol formavam a sede do distrito. O relvado se estendia por entre os prédios até o bosque que abrigava a fonte d’água. Havia muita sombra, além de flores, frutos silvestres e uma passarada tagarela.

Nos horários de aula, a mestra e os estudantes conversavam em voz baixa, sem grandes intercalações; se alguém passasse pela estrada em frente, teria muita dificuldade para entender o que falavam. O mesmo acontecia no início do recreio, quando cada qual mastigava seu lanche, sem tempo para conversas. Porém, rapidamente, as frutas, os pães e os bolos eram devorados e as crianças se levantavam e começavam as brincadeiras de roda. Aos poucos, a algazarra ecoava pelos morros e matarias.

Maria Alfabetizadora aproveitava esse início de intervalo para organizar a sala, preparar alguma atividade ou resolver alguma pendência administrativa. Mas, só enquanto os alunos consumiam os lanches, porque, tão logo as cirandas subiam ao céu, a professora deixava as obrigações e se juntava à brincadeira. Roda-cotia, joão-bobo, ciranda-cirandinha, peteca, bambolê, pula-corda, esconde-esconde, cabra-cega e pegador. As cantigas eram compartilhadas em igualdade de condições: ali Maria Alfabetizadora era uma criança a mais a cantar, a correr, a rir e a gritar. Apesar do dinamismo e da alegria, tudo transcorria de forma harmoniosa, sem excessos e sem agressões.

No entanto, bastava o relógio indicar o fim do recreio, todos retornavam às atividades escolares, deixando o silêncio campestre reinar novamente. Entravam com uma alegria diferente da alegria dos folguedos, sem resmungos ou queixas, porque eles continuariam se divertindo, mesmo que tivessem dificuldades para aprender. Para eles, aprender era um desafio semelhante aos desafios do jogo ou da brincadeira.

Nos anos seguintes, já nas escolas da cidade, Maria Alfabetizadora acompanhava os recreios das turmas dela, como se ainda estivesse na sua escola rural. Lanchava com os alunos e com eles se divertia. É óbvio que causava estranheza ao restante do corpo docente, que preferia ficar confinado na Sala dos Professores. Além disso, Maria Alfabetizadora percebia que os alunos dela eram menos agitados e mais cooperativos. Formavam uma ‘lagoa’ naquele ‘mar revolto’.

De forma semelhante, mesmo no Ensino Universitário, Maria Alfabetizadora continuou a passar os recreios com os alunos dela. Passava na Sala de Professores apenas para assinar o ‘ponto’. De certa forma, essa passou a ser uma das características que faziam dela uma educadora diferente. É claro que, também em sala de aula e no processo ensino-aprendizagem, as atitudes dela destoavam da maioria.

Quando passou a atuar como consultora pedagógica, foi convidada a visitar uma escola em que havia muitas queixas dos pais e dos professores sobre a excessiva agitação das crianças, antes do início das aulas, nas saídas da escola e durante os recreios.

De fato, a gritaria invadia os quarteirões mais próximos e, mesmo visto da rua, o espetáculo assustava um pouquinho. As crianças corriam atabalhoadamente, sem que se pudesse identificar quem brincava com quem. O tumulto era tanto que os choques frontais e os tropeços se sucediam, levando muitas crianças a rasgarem as roupas e a se esfolarem no chão irregular e áspero.

Maria Alfabetizadora ficou em pé diante do portão trancado a cadeado. Não havia adultos no pátio, as crianças ignoraram a presença dela e ninguém a esperava, apesar de ser sido convidada para chegar naquele horário.

Quando a sirene sinalizou o fim da ‘guerra’, a gritaria alcançou os maiores – e piores – níveis auditivos. Momento também para pequenas vinganças e para provocações violentas. As portas foram abertas e as ‘autoridades’ saíram com voz de comando. Aos poucos, foram organizadas as filas que levavam cada turma para sua sala. Então, a diretora percebeu que tinha visita à espera e veio abrir o portão.

Depois das conversas protocolares, Maria Alfabetizadora foi conduzida em turnê pelas salas de aula, onde os alunos cumpriam silêncio absoluto para receber a visitante. Ao entrar, Maria Alfabetizadora avaliava os espaços exíguos, repletos de carteiras pouco confortáveis e os alunos amontoados sob iluminação escassa, de braços cruzados e com olhos de assustados. Pareciam estátuas.

Em cada sala, Maria Alfabetizadora solicitava que a professora continuasse sua aula como se nada de diferente estivesse acontecendo e que os alunos se comportassem normalmente. E ela observava, construía leituras e ia montando um ‘mapa mental’ da situação. Depois desses rápidos diagnósticos, foi conversar com a diretora da escola e com os seus conselheiros; todos aguardavam ansiosos pelo veredicto.

No entanto, antes da esperada resposta, a consultada tinha muitas perguntas. Foi perguntando que ela encaminhou o relatório do que viu. Questionou o que eles entendiam por ‘recreio’, por atividade, por passividade e por trabalho coletivo. Indagou qual o método que escolheram para educar as crianças e qual o papel dos alunos na avaliação do processo educativo. Perguntou ainda pela participação dos pais na vida escolar.

Como era de se esperar, a equipe demonstrou grande decepção com o interrogatório, afinal, justamente eles é que tinham as dúvidas e esperavam dela todas as soluções. Apesar da insinuação da pedagoga de que eles não se colocavam como parte do problema e de que se negavam a refletir sobre as próprias práticas, eles continuaram a esperar uma resposta mágica que transformasse a fracassada instituição em uma referência educacional.

Decepcionada também ficou Maria Alfabetizadora, pois foi condenada a um monólogo. Esperava trabalhar coletivamente, mas esperava demais, dado que ali nenhum trabalho era realizado daquela forma; tudo ali era feito individual e competitivamente, seguindo uma disciplina militar. Os superiores mandavam e, nos recreios, sem os superiores, as crianças tentavam mandar umas nas outras.

Mais uma vez, a diretora perguntou por que as crianças corriam tanto pelo pátio. E Maria Alfabetizadora ponderou:

-Nos momentos livres, elas entram em atividade, já que nas salas estão condenadas à passividade. São crianças ativas, precisam agir; criar situações e soluções objetivas. Se divertem fazendo isso. Gostariam de fazer algo semelhante durante as aulas, porém são proibidas de falar e de agir espontaneamente; devem apenas reproduzir trabalhos ou cruzar os braços. Foi assim que as crianças foram preparadas para minha visita: mandaram calar a boca e cruzar os braços.

Os ouvintes empalideceram. Estavam pedindo ajuda e Maria Alfabetizadora ‘se voltava contra eles’, como se eles fossem a causa da violência durante os recreios escolares.

E, de certa forma, os professores poderiam ser a causa da violência nos pátios da escola. Não só eles, mas também os pais que passavam o dia trabalhando e sem as mínimas condições de assumirem as responsabilidades inerentes às formações intelectual, espiritual e social de seus filhos.

Mais precisamente: os métodos e os procedimentos de pais e professores se mostravam inadequados para organizar as aprendizagens necessárias e esperadas. Ao contrário: a violência simbólica caracterizada pela negação do diálogo e pela imposição de regras arbitrárias e absurdas produzia reações agressivas que podiam extravasar nos recreios escolares e nas ruas em que as crianças transitavam ou brincavam.

Maria Alfabetizadora via naquela situação mais um exemplo da situação nacional: nas famílias de todas as classes sociais, os pais investem cada vez menos tempo para conviverem com os filhos, os quais vivem no abandono afetivo e na liberalidade moral ou a cargo de babás e bedéis igualmente autoritários e insensíveis. E, como a escola é uma extensão do lar, os diretores, orientadores e professores dão continuidade ao processo de militarização do ensino. Para isso, são usadas as provas, as coerções e as reprovações. As autoridades escolares exercem o poder para ‘manter a disciplina’.

Em consequência do ambiente escolar desfavorável, poucos alunos conseguem bom desempenho estudantil, porque o aluno do professor autoritário usa, continuamente, estratégias para se defender das arbitrariedades e agressões, não sobrando o tempo para brincar, conversar, ler, pensar, escrever, inventar, estudar e aprender. A tensão, a vergonha e o medo impedem que ele se concentre nas tarefas escolares. Em consequência, ele pode ser acusado de desinteresse, desleixo e apatia. A segurança e a motivação são fundamentais para o desenvolvimento da mente e das habilidades. Uma pessoa insegura e acuada pode parecer indiferente, aversiva e, até, rebelde. Esses comportamentos permitem que o professor insensível classifique os alunos como ‘burros’ e incompetentes para aprender. Fecha-se assim o ciclo vicioso da educação ditatorial.

Do livro Maria Alfabetizadora, páginas 67 a 70.

https://livrosdomariotessari.wordpress.com/maria-alfabetizadora/

PEDOFILIA HUMANA

À medida que sobrevivo por sete décadas, percebo que meu olhar alcança outros níveis, outros horizontes ou que eu consigo visualizar o que estava perto (porém, em segundo plano) e permanecia ‘invisível’. Talvez, minha mente envelhecida, com melhores configurações, consiga ultrapassar o imediato e penetrar através das frestas do senso comum.

Durante a gestação, os meus olhos e a minha mente em construção devem ter visto, inicialmente, escuridões e, gradualmente, penumbras. Na primeira infância, reconheceram rostos familiares, objetos coloridos e fontes de alimentos, como mamas e mingaus? Até os três anos, dispensado de análises éticas e/ou filosóficas, devo ter visto o mundo apenas como paisagem dinâmica.

A ‘idade da razão’ surgiu aos sete anos? Talvez, por aí. Quais as análises que eu fazia aos dez anos? E aos quinze? O que o Mario neo-adulto passou a pensar? Quais os critérios éticos do Mario quarentão? Em que fase radicalizei minhas visões de mundo? (aprofundei raízes…)

Justificadas as minhas idiossincrasias (predisposição do organismo que leva o indivíduo a reagir de maneira peculiar à influência de agentes exteriores/Houaiss), vamos ao tema proposto.

Até envelhecer, lutei para acomodar a ideia de pedofilia como vício de “perversão que leva o indivíduo adulto a se sentir sexualmente atraído por crianças”. Apenas de seres humanos?

Esparramei minha atenção para o reino vegetal e procurei por eventos em que uma planta adulta teria tentado atos reprodutivos com uma planta recém-nascida, com brotos tenros ou com plantas sexualmente imaturas. Nada. Nenhum indício… Concluo que faltam evidências de pedofilia vegetal.

Haveria pedofilia entre os seres microscópicos? Está lançado o desafio…

Entre humanos existe. Humanos são animais. E os outros animais? Vasculhei as prateleiras mais antigas de minha memória, catalogando imagens registradas durante a infância, quando adolescente, durante a juventude e depois de adulto.

Galos, galinhas, pintos; cachaços, porcas, leitões; baguais, éguas e potrinhos; cães, cadelas e filhotes; gatos, gatas, gatinhos; patos, patas, patinhos; marrecos, marrecas e marrequinhos; perus, peruas, peruzinhos; … Nunca vi machos adultos dessas linhagens assediando os recém-nascidos, os desmamados ou os jovens. Pelas minhas interpretações, as danças sensuais animalescas iniciavam depois da maturidade dos animais domésticos.

Os pássaros machos assediam os filhotes nos ninhos? Os passarinhos em treinamento de voo são perseguidos por machos tarados? Quem já presenciou alguma cena comprometedora? Existe pedofilia entre tatus, capivaras, cotias, gambás, lebres, veados, quatis, onças, leões, girafas, elefantes, cobras, baleias, avestruzes, hienas, chipanzés, gorilas ou micos?

Os animais selvagens seriam mais éticos que os humanos? Mas, a ética e a moral não são preceitos humanos? Pedofilia seria um ‘efeito colateral’ da ‘inteligência superior’ do Homo Sapiens? Os seres humanos seriam mais animalescos e selvagens que os ‘animais inferiores’?

VÍTIMA DA HOSPITALIDADE

Quando menino, minha mãe me mandou levar alguma coisa para a casa de uma família de descendentes de alemães. Como minha mãe ganhava dinheiro costurando, deve ter sido para entregar algum vestido, camisa ou calça encomendada. Fui um pouco antes do meio-dia.

Eu conhecia ‘de longe’ a família de tons meio dourados, na pele e nos cabelos. As sardas – ilhas de pigmento mais adensado que, agora, o dicionário me conta que são ‘efélides’ ou lentigos’ – cobriam parte dos rostos, com maior concentração nas áreas mais expostas à luz solar, e cabelos entre louros e ruivos cobriam as cabeças. Os sotaques pronunciadamente germânicos completavam as nossas disparidades.

Ah! E eles costumavam almoçar cedo. E estavam almoçando. E minha timidez não encontrou palavras para me livrar do convite quase autoritário.

Mais uma diferença cultural. Os meninos De Negri se serviam do que escolhessem à mesa e nas quantidades desejadas; a mamãe loura serviu o prato de cada menino. Inclusive, o meu.

A bondosa mulher colocou diante de mim um pouco de arroz e diversas bolas de sangue brilhante, que ia tingindo o prato, o garfo e o arroz. Me senti encurralado. Meus pais nos disciplinaram a sermos muito corteses, afáveis, até. Entretanto, aquele sangue vermelho vivo trancava de náuseas a minha garganta.

Depois de um longo exercício mental – que eles tomaram como tempo em que eu rezava em silêncio… – garfei a primeira bola rubra, me concentrei, fechei os olhos e enchi a boca… com um gosto desconhecido, mais desconhecido ainda que o sabor que eu imaginava ser o de sangue cru. Ainda bem que era macia e meio adocicada… Mastiguei com os olhos fixos num retrato de família pendurado na parede em minha frente.

Não doeu. Mais uma, mais uma, mais uma, … Ufa!!! Sobrou o arroz com as beiradas ‘ensanguentadas’. Porém, nem deu tempo de avançar nos grãos; a mulher, contente ‘por eu ter gostado tanto das beterrabas’, depositou no meu prato mais uma farta remessa…

O GOSTO DO MAR

Antônio nasceu na serra, numa casa construída pela família, com a ajuda de outras pessoas dali. Logo que cresceu um pouco, ele também passou a ajudar as pessoas construírem suas casas. Fazia isso com prazer, porque seu corpo e seu espírito gostavam de atividade e de coisas novas, de coisas por aprender.

Da primeira vez, viu a casa como um todo e a construção como um trabalho só. Depois, percebeu que a casa está dividida em partes, que são construídas numa determinada sequência, durante determinado tempo. Assim, começou a pensar nas dimensões, na qualidade e no custo.

Antônio aprendia tudo sem esforço, porque entendia a razão de se construírem casas, porque sabia da necessidade de portas e de janelas e porque estava consciente da importância do alicerce. Mas, não aprendia apenas o que via.

Maria, moradora do lugar, teve oportunidade de viajar para o litoral e conheceu o mar. De volta, contou: O MAR É SALGADO. E todos, crianças e adultos, puseram-se a pensar: Porque o mar é salgado? Quem teria jogado sal no mar? Quanto sal foi necessário? Há quanto tempo isso ocorreu?

Ao ver Maria, todos se lembravam do mar e dessas questões todas. Ela se tornou um SÍMBOLO de O MAR É SALGADO. Não foi preciso decorar, aprenderam isso naturalmente. Mas, havia muita curiosidade e nasceram muitas dúvidas. Planejavam ir até a praia, procurar respostas para suas perguntas. Passaram ainda a provar as coisas para ver se havia mais coisas SALGADAS ou, até mesmo, com outros sabores.

Porém, passou-se muito tempo – gerações inteiras – e o conjunto de casas tornou-se uma cidade grande, onde as pessoas não se conheciam e as casas eram construídas por empresas e não mais por pessoas. As crianças não mais ajudavam construir casas e, delas, não mais sabiam distinguir as partes, o início e o tempo de construção. Também, não pensavam mais por que eram construídas, de onde veio o material e quem o produziu.

Na escola, ensinavam outra lição invariável: O MAR É SALGADO. E, nas provas, perguntavam sempre: “Que gosto tem o mar?” e “Quem é salgado?” E, como ninguém conheceu Maria, a escola também ensinava que foi ela quem descobriu, em determinada data, que O MAR É SALGADO. Por isso, essas informações também faziam parte do estudo; parte da História do Lugar, que era preciso decorar e saber de cor.

As demais perguntas estavam proibidas e seria um sacrilégio alguém tentar separar o sal da água. Os conhecimentos do Livro Didático eram considerados suficientes. Para se estudar mais, bastava repetir várias vezes a mesma lição.

Foi então que, cansadas de decorebas, as crianças perderam o gosto pela escola e, não tendo interesse no sabor de um mar que não conheciam, não conseguiam aprovação, repetindo, além das lições, o ano letivo. A maioria desistia da escola, porque ela não tinha vida, tratando apenas de coisas sem uso no dia-a-dia.

Nessa escola, as crianças só aprendiam a verdade dos outros; ficavam alienadas.

Esse texto nasceu após a leitura da “SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO”, de SONIA M. P. KRUPPA. FPOLIS25SET95

CASAMENTO PERCENTUAL

Alice é 100% solteira? Pedro está 100% casado? Cristina pode ser 75% viúva? As separações conjugais podem ultrapassar o 100%? Ex-cônjuges que se odeiam podem estar separados 202%? Alguém pode estar minimamente casado? É horrível ser filho de pais solteiros? Os traidores traem o quê? Um homem apaixonado ama sua esposa? É possível estar completamente apaixonada sem jamais ficar casada?

Em que proporção eu estou casado? Em que proporção você está separada? Em que medida somos felizes? Beatriz pode ser aparentemente feliz? Ou feliz só nas aparências? Ou só para aparecer? Fazemos de conta que estamos casados? Ou nosso casamento é um faz-de-conta? Quais os elementos fundamentais do amor? É possível pesar a intensidade do amor?

Se o casamento for totalidade de sentimentos complementares ou recíprocos, a partir de que percentual sentimental poderemos nos considerar casados? Um casamento pode ser total ou, por mais que nos esforcemos, sempre será uma união parcial? Com mais de 90% ou podemos chegar a 98%? Quanto, infinitamente e decrescentemente, ainda restará para alcançar a totalidade?

Quantas dimensões pode ter um casamento? É possível estabelecer categorias casamentais? Vamos fazer um exercício de categorização? Quais os aspectos sexuais de um casamento? Quais os critérios para indicar as medidas mínimas de carícias, de carinhos e de ternuras? Como medir os dados sexuais de um casamento? Um casal que pode ser feliz sem praticar atividades sexuais? Qual o regime anual de relações sexuais? Prazer a dois? Ou cada um visita o seu motel? Em diferentes continentes?

Cada um tem seu lazer? Quais as diversões e os entretenimentos que vocês partilham? Cada um tem sua praia, seus passeios e suas viagens? Nadam juntos? Ou na mesma piscina, na mesma lagoa, no mesmo rio? Viajam juntos? Riem juntos e choram em comunhão?

Nós mantemos contabilidades individuais? Ou nada contabilizamos? Temos um orçamento participativo? Dividimos as despesas? Ou só acumulamos prejuízos? E os lucros? Será fácil tabular os dados financeiros das participações societárias conjugais?

Documentos garantem casamentos? Quais? Qualquer um? É possível se sentir casado sem ‘documento passado’? Ou estar casados só no papel? Ser casada pressupõe gerar filhos? É permitida a geração independente? O que garante um casamento é a existência contínua de filhos por criar? Os filhos unem ou separam os pais? Quem sabe netos, bisnetos e tataranetos?

Casais que residem no mesmo endereço estão casados 100%? Ou cada um tem seu chuveiro, seu fogão e seu quarto? Ou, no mesmo quarto, em camas separadas? Preparam as refeições em conjunto ou cada um se vira como pode? Ou cada qual vai a seu restaurante?

Banho a dois? Ou privacidade total? Cada qual com sua banheira? A toalha de rosto é usada pelo casal? Ou cada um seca o rosto e as mãos com pano próprio? Cada um tem o seu tubo de creme dental? Mesmo que seja da mesma marca?

E a roupa? Cada qual lava a sua? Ou cada qual tem sua lavanderia e sua máquina de lavar roupas? Se o cônjuge estiver no trabalho e a chuva ameaçar, o outro recolhe as vestes secas que estão estendidas nos varais? Ou os dois fingem não ver, nem a roupa nem a chuva?

Vocês usam o mesmo aparelho de telefone? O mesmo celular? O mesmo endereço na Internet? O mesmo Watsapp? Cada um tem o seu aparelho de TV, com senha encriptada?

Cada um tem seu automóvel? Cada qual tem dois ou três? Em garagens separadas? Pedalam na mesma bicicleta? Ou os dois andam a pé e utilizam o transporte coletivo?

Cada um tem sua religião e respeita a opção do outro? Ou os dois rezam na mesma fé? Ou os dois se atacam religiosamente? Quantos deuses cada um criou? Para quantos deles cada um reza? Ao divino Sexo? Ao divino Sucesso? Ao divino Poder? Ao divino Dinheiro? Ao divino Capital? Ou praticam egolatria?

O espectro casamental abrange que categorias? Sexual, sentimental, financeira, residencial, religiosa, profissional, …? Qual a participação de cada uma dessas categorias no mapa casamental?

Qual o percentual de envolvimento de cada um de nós?

OPINIÃO DE ESPECIALISTA

Todos nós temos opiniões. Os especialistas têm muito mais. E mais imponentes. Basta analisar as opiniões de juízes, de médicos e de vendedores. Para navegar a salvo desses impositores, precisamos ouvir e analisar com discernimento, sem sucumbir a argumentos cristalizados.

Como pretenso escritor, sei que exagero na insistência de que todos devem escrever, pois, me sinto vivendo plenamente a era da experiência e dos sentimentos.  Acredito que ser espontâneo, comunicativo e autor da própria história possa contribuir para que todos vivam melhor.

Sei que a tecnologia quer me livrar das tarefas repetitivas e/ou cansativas, como controlar as etapas da lavação de roupas na máquina, empurrar o cortador de grama, recolher as folhas caídas ou dirigir o automóvel.

Se, por um lado, isso pode me livrar dos encargos, por outro lado, posso ficar à mercê das ‘inteligências artificiais’. Todas as máquinas de lavar roupas disponíveis no mercado são ‘completas’, para ‘facilitar’ nosso trabalho. São todas inteligentes e automáticas.

Nós não usamos alvejantes, amaciantes e perfumantes. Entretanto, a máquina está programada para direcionar jatos d’água, na quantia e na velocidade projetada pelos especialistas, para os diferentes recipientes onde deveríamos depositar os produtos químicos. No nosso caso, só perda de tempo e exercício de paciência. Todos os dias… até a maldita máquina inteligente parar de vez… e comprarmos outra ainda mais inteligente que essa, que mude também a hora do computador da máquina para o horário de verão, que nem foi promulgado neste ano. Viramos escravos da máquina de lavar roupas; impedidos de lavar roupas do nosso jeito. Além do que, nossa máquina inteligente não informa em qual etapa se acha o processo de lavação. Isso tudo, para ‘nos ajudar’.

Os nutricionistas, os médicos e os psiquiatras condicionam o restabelecimento de nossa saúde a uma infinidade de exames laboratoriais, os advogados nos submetem à burocracia sufocante e os vendedores querem nos cobrir com negras liquidações. Com a autoridade de especialistas…

A maioria dos pais entrega os filhos às inteligências artificiais para que robotizem suas mentes. Alguns pais são ‘especialistas’ e impõem aos filhos as verdades ancestrais. Muitos pais dialogam com os filhos e interagem como seres sensíveis que têm mais experiência que os jovens. Pais e filhos podem pensar de forma diversa e até divergentes.

Um pai despretensioso de filhos normais. Sei que penso diferente que meus filhos e que eles têm opiniões mais diferentes ainda. Se perguntarem sobre minhas opiniões, serei solícito. No entanto, permito que façam suas escolhas. Dentre elas, lacrar todos os canais de comunicação.

Sou pai natural, genérico; sem especialização em paternidade.

ENTIDADES DE RUA

O vocábulo ‘entidade’, designando estruturas sociais criadas por leis ou por estatutos, passou a dominar a linguagem dos meios de comunicação. De certa forma, uma palavra-ônibus que carrega o descompromisso das pessoas que virtualizam as instituições, como se fossem essências descoladas do mundo real: virtuais, etéreas, ideais, intangíveis e inatingíveis. Coisa do outro mundo. Espíritos puros despidos de qualquer vestígio de realidade existencial.

Essa, a primeira repugnância minha ao ouvir que “as entidades estão oferecendo abrigo aos moradores de rua”. Aí, um segundo sintoma de alienação; o de se esconder atrás de ‘termos politicamente corretos’, de fugir de supostos ‘preconceitos’, como usar as palavras pedintes, indigentes ou mendigos. Hipocrisia praticante.

Sim. Mesmo que “Graças aos deuses!!!”, enfim, um gesto humano de solidariedade. Louvável a compaixão para com os absolutamente pobres; para com os enjeitados pela sociedade de consumo. Partilhar o pão e oferecer abrigo. Alimentos que estão sobrando e hospedagem em prédios pouco usados ou, até, abandonados.

As igrejas e os clubes esportivos podem recolher os ‘moradores de rua’ nas noites geladas dos invernos sulinos. Entretanto, ‘ajudar os pobres’ tem um custo burocrático: dispor de banheiros e água potável em volume adequado ao contingente que se quer abrigar, instalar sistemas de proteção contra incêndios, garantir segurança, prevenir surtos de doenças contagiosas, tratar com dignidade os sem-teto e requerer alguns alvarás da prefeitura, dos bombeiros e da vigilância sanitária. As mesmas obrigações legais de outras ‘entidades’. Obrigações legais? Das organizações da sociedade civil? Iguais às dos governos municipais?

Moradores de rua, moradores de debaixo da ponte, moradores de viadutos, moradores de prédios abandonados, moradores de barrancas de rio, moradores de marquises, moradores de rodovias, moradores de parques, … não são responsabilidade do governo? O governo instala sistemas de prevenção a incêndios e garante segurança em ruas, pontes, viadutos, prédios abandonados, matas ciliares, marquises, rodovias e parques? O governo mantém banheiros funcionando e oferece água potável e alimentação para os que residem em locais públicos? Quais as ações de governo para evitar os surtos de fome e a propagação de doenças entre os desajustados? Os moradores em espaços públicos são tratados com dignidade pelo governo?

 

FIGURANTES POLÍTICOS

Em 1988, foi promulgada a Constituição Cidadã da (Nova ou Sexta) República Federativa do Brasil, assim denominada por apresentar avanços significativos nos direitos civis, individuais e sociais. Dentre eles, o direito de participar de conselhos de políticas públicas em que seriam analisados e debatidos projetos e ações dos governos municipais, estaduais e federais.

Os conselhos sociais deveriam ser espaços democráticos em que representantes das comunidades pudessem propor obras de interesse coletivo, fiscalizar gastos públicos e vetar abusos dos governantes. Porém, exceto os conselheiros tutelares (que recebem salários para executar funções administrativas, judiciais e/ou policiais), os conselheiros são meros fantoches preenchendo vagas em colegiados ‘pro forma’, constituídos apenas para cumprir formalidades legais que garantem verbas para os setores da Saúde, da Assistência Social, … Conselheiros ‘pegos a laço’ ou indicados pelos chefes políticos; conselhos deliberativos constituídos e acionados somente para preencher exigências burocráticas.

Participei de conselhos nas áreas de Cultura, de Educação e de Saúde. Profunda decepção. Muita encenação para colher assinaturas de títeres nas atas que preenchidas antecipadamente. No máximo, as autoridades liam ou falavam algo sobre os assuntos previamente deliberados pelas ‘esferas superiores’; nenhum espaço para reivindicações populares. Os conselheiros deveriam se resignar a ouvir explanações e a assinar atas pré-formatadas.

A criação e as ações efetivas de estâncias deliberativas a partir da base social poderiam contribuir para a melhoria do bem-estar da população, aliviar os quadros do funcionalismo público e reduzir os gastos governamentais. Entretanto, existe um abismo entre as comunidades de bairro e o primeiro degrau da hierarquia deliberativa oficial.


Vez em quando, aparecem divulgações de eventos com ‘vereadores mirins’ ou ‘deputados mirins’; ainda não li ou ouvi a expressão ‘senadores mirins’. Oferecem espaço a quem não tem poder; oferecem passeios para as crianças. Nunca são convidadas pessoas críticas que possam dizer umas verdades aos parlamentares; sempre crianças alegres, faceiras e ingênuas. Se os adultos tivessem oportunidade de avaliar e de afastar os maus legisladores, possivelmente, haveria menos gastos e melhores leis.


A ‘Defesa Civil’ é órgão de governo responsável pela proteção da população, que se mantém alheia, delegando a estâncias superiores a prevenção e os socorros pós-acidentes naturais. A quem serve a Defesa Civil: aos detentores de poder ou ao povo? Como se consolidou o alheamento e a omissão dos cidadãos? Com o distanciamento das esferas de governo da efetiva participação popular? Por que as pessoas negligenciam os cuidados básicos e aguardam passivamente que os políticos resolvam tudo? Além do que a Defesa Civil desenvolve poderes institucionais próprios que manipulam e entravam as ações de auxílio.

Procuro retirar o lixo da boca dos bueiros e abrir as valetas que margeiam a estrada. Pago alto preço por isso… É proibido; a Prefeitura está atenta a quem ‘mexe na estrada’. Não faz, nem deixa fazer. Preserva apenas o direito de exclusividade sobre a via pública, o que garante às autoridades mais poder e bons salários.


No Brasil, a Justiça é uma esfera governamental de poder que detecta e pune as violações das normais estatais; os delitos, as análises e as penas são propriedades do governo. Decreta que os cidadãos são incompetentes para se reconciliarem-se e para reconstruírem a harmonia nas relações interpessoais. Se nós dois nos descuidarmos, dirigirmos mal e amassarmos os para-lamas dos nossos automóveis um contra o outro, quem tomará conta do caso será a Justiça. Ela vai julgar, punir e cobrar os prejuízos, mesmo que eles sejam nossos.

E a (In)Justiça joga nos dois times: mantém equipes para acusar e para defender os infratores. Os promotores da Justiça promovem justiça? E os defensores públicos defendem o povo? Estranho!!! Seria como um clube que mantivesse todas as equipes do campeonato. Ao Judiciário, não basta ganhar dinheiro acusando e julgando os infratores; quer (e ganha) dinheiro também defendendo os ‘pobres’. Ou seja, os ricos podem pagar pela justiça; toda população paga compulsoriamente por aqueles ‘que não podem pagar’.


São muitas instituições públicas e muitos os beneficiados com os cargos públicos.

São muitas e variadas as fôrmas… preenchidas com a mesma massa. Mudam os formatos, as estruturas e as dimensões dos colegiados… compostos por pessoas atreladas aos mesmos mandatários, com características semelhantes e com vantagens recíprocas.