Por opção, Maria Alfabetizadora passava os intervalos entre as aulas com os alunos. Aproveitava esse tempo para descontrair, conhecer melhor as ideias e os hábitos dos jovens e, principalmente, aproveitava essa convivência para rejuvenescer o espírito e para atualizar as visões de mundo.
Esses momentos de convívio destituído de hierarquias favoreciam as trocas de informações, autorizavam os alunos a ensinar o que sabiam e, consequentemente, a se abrirem para a aprendizagem. Com ganhos relacionais decentes e discentes, todos voltavam para suas salas com outro ânimo.
Os demais professores não compartilhavam dessa opção e mesmo a consideravam ‘esquisita’. Por isso, ela pouco se encontrava com os colegas ou com eles conseguia conversar. A maioria deles se refugiava na Sala dos Professores, onde as conversas giravam em torno de assuntos sociais, futebolísticos e/ou políticos; preferencialmente, futilidades que os ajudassem a esquecer dos ‘suplícios’ em sala de aula. Para eles e para alguns alunos, o recreio era um momento de folga, em que comemoravam o prazer do ócio.
Nos dois primeiros anos de trabalho, Maria Alfabetizadora exerceu o magistério em escola rural, onde era a única professora, lecionando para duas séries matutinas e duas séries vespertinas, em sala mutisseriada. A escola, a igreja, o cemitério e o campo de futebol formavam a sede do distrito. O relvado se estendia por entre os prédios até o bosque que abrigava a fonte d’água. Havia muita sombra, além de flores, frutos silvestres e uma passarada tagarela.
Nos horários de aula, a mestra e os estudantes conversavam em voz baixa, sem grandes intercalações; se alguém passasse pela estrada em frente, teria muita dificuldade para entender o que falavam. O mesmo acontecia no início do recreio, quando cada qual mastigava seu lanche, sem tempo para conversas. Porém, rapidamente, as frutas, os pães e os bolos eram devorados e as crianças se levantavam e começavam as brincadeiras de roda. Aos poucos, a algazarra ecoava pelos morros e matarias.
Maria Alfabetizadora aproveitava esse início de intervalo para organizar a sala, preparar alguma atividade ou resolver alguma pendência administrativa. Mas, só enquanto os alunos consumiam os lanches, porque, tão logo as cirandas subiam ao céu, a professora deixava as obrigações e se juntava à brincadeira. Roda-cotia, joão-bobo, ciranda-cirandinha, peteca, bambolê, pula-corda, esconde-esconde, cabra-cega e pegador. As cantigas eram compartilhadas em igualdade de condições: ali Maria Alfabetizadora era uma criança a mais a cantar, a correr, a rir e a gritar. Apesar do dinamismo e da alegria, tudo transcorria de forma harmoniosa, sem excessos e sem agressões.
No entanto, bastava o relógio indicar o fim do recreio, todos retornavam às atividades escolares, deixando o silêncio campestre reinar novamente. Entravam com uma alegria diferente da alegria dos folguedos, sem resmungos ou queixas, porque eles continuariam se divertindo, mesmo que tivessem dificuldades para aprender. Para eles, aprender era um desafio semelhante aos desafios do jogo ou da brincadeira.
Nos anos seguintes, já nas escolas da cidade, Maria Alfabetizadora acompanhava os recreios das turmas dela, como se ainda estivesse na sua escola rural. Lanchava com os alunos e com eles se divertia. É óbvio que causava estranheza ao restante do corpo docente, que preferia ficar confinado na Sala dos Professores. Além disso, Maria Alfabetizadora percebia que os alunos dela eram menos agitados e mais cooperativos. Formavam uma ‘lagoa’ naquele ‘mar revolto’.
De forma semelhante, mesmo no Ensino Universitário, Maria Alfabetizadora continuou a passar os recreios com os alunos dela. Passava na Sala de Professores apenas para assinar o ‘ponto’. De certa forma, essa passou a ser uma das características que faziam dela uma educadora diferente. É claro que, também em sala de aula e no processo ensino-aprendizagem, as atitudes dela destoavam da maioria.
Quando passou a atuar como consultora pedagógica, foi convidada a visitar uma escola em que havia muitas queixas dos pais e dos professores sobre a excessiva agitação das crianças, antes do início das aulas, nas saídas da escola e durante os recreios.
De fato, a gritaria invadia os quarteirões mais próximos e, mesmo visto da rua, o espetáculo assustava um pouquinho. As crianças corriam atabalhoadamente, sem que se pudesse identificar quem brincava com quem. O tumulto era tanto que os choques frontais e os tropeços se sucediam, levando muitas crianças a rasgarem as roupas e a se esfolarem no chão irregular e áspero.
Maria Alfabetizadora ficou em pé diante do portão trancado a cadeado. Não havia adultos no pátio, as crianças ignoraram a presença dela e ninguém a esperava, apesar de ser sido convidada para chegar naquele horário.
Quando a sirene sinalizou o fim da ‘guerra’, a gritaria alcançou os maiores – e piores – níveis auditivos. Momento também para pequenas vinganças e para provocações violentas. As portas foram abertas e as ‘autoridades’ saíram com voz de comando. Aos poucos, foram organizadas as filas que levavam cada turma para sua sala. Então, a diretora percebeu que tinha visita à espera e veio abrir o portão.
Depois das conversas protocolares, Maria Alfabetizadora foi conduzida em turnê pelas salas de aula, onde os alunos cumpriam silêncio absoluto para receber a visitante. Ao entrar, Maria Alfabetizadora avaliava os espaços exíguos, repletos de carteiras pouco confortáveis e os alunos amontoados sob iluminação escassa, de braços cruzados e com olhos de assustados. Pareciam estátuas.
Em cada sala, Maria Alfabetizadora solicitava que a professora continuasse sua aula como se nada de diferente estivesse acontecendo e que os alunos se comportassem normalmente. E ela observava, construía leituras e ia montando um ‘mapa mental’ da situação. Depois desses rápidos diagnósticos, foi conversar com a diretora da escola e com os seus conselheiros; todos aguardavam ansiosos pelo veredicto.
No entanto, antes da esperada resposta, a consultada tinha muitas perguntas. Foi perguntando que ela encaminhou o relatório do que viu. Questionou o que eles entendiam por ‘recreio’, por atividade, por passividade e por trabalho coletivo. Indagou qual o método que escolheram para educar as crianças e qual o papel dos alunos na avaliação do processo educativo. Perguntou ainda pela participação dos pais na vida escolar.
Como era de se esperar, a equipe demonstrou grande decepção com o interrogatório, afinal, justamente eles é que tinham as dúvidas e esperavam dela todas as soluções. Apesar da insinuação da pedagoga de que eles não se colocavam como parte do problema e de que se negavam a refletir sobre as próprias práticas, eles continuaram a esperar uma resposta mágica que transformasse a fracassada instituição em uma referência educacional.
Decepcionada também ficou Maria Alfabetizadora, pois foi condenada a um monólogo. Esperava trabalhar coletivamente, mas esperava demais, dado que ali nenhum trabalho era realizado daquela forma; tudo ali era feito individual e competitivamente, seguindo uma disciplina militar. Os superiores mandavam e, nos recreios, sem os superiores, as crianças tentavam mandar umas nas outras.
Mais uma vez, a diretora perguntou por que as crianças corriam tanto pelo pátio. E Maria Alfabetizadora ponderou:
-Nos momentos livres, elas entram em atividade, já que nas salas estão condenadas à passividade. São crianças ativas, precisam agir; criar situações e soluções objetivas. Se divertem fazendo isso. Gostariam de fazer algo semelhante durante as aulas, porém são proibidas de falar e de agir espontaneamente; devem apenas reproduzir trabalhos ou cruzar os braços. Foi assim que as crianças foram preparadas para minha visita: mandaram calar a boca e cruzar os braços.
Os ouvintes empalideceram. Estavam pedindo ajuda e Maria Alfabetizadora ‘se voltava contra eles’, como se eles fossem a causa da violência durante os recreios escolares.
E, de certa forma, os professores poderiam ser a causa da violência nos pátios da escola. Não só eles, mas também os pais que passavam o dia trabalhando e sem as mínimas condições de assumirem as responsabilidades inerentes às formações intelectual, espiritual e social de seus filhos.
Mais precisamente: os métodos e os procedimentos de pais e professores se mostravam inadequados para organizar as aprendizagens necessárias e esperadas. Ao contrário: a violência simbólica caracterizada pela negação do diálogo e pela imposição de regras arbitrárias e absurdas produzia reações agressivas que podiam extravasar nos recreios escolares e nas ruas em que as crianças transitavam ou brincavam.
Maria Alfabetizadora via naquela situação mais um exemplo da situação nacional: nas famílias de todas as classes sociais, os pais investem cada vez menos tempo para conviverem com os filhos, os quais vivem no abandono afetivo e na liberalidade moral ou a cargo de babás e bedéis igualmente autoritários e insensíveis. E, como a escola é uma extensão do lar, os diretores, orientadores e professores dão continuidade ao processo de militarização do ensino. Para isso, são usadas as provas, as coerções e as reprovações. As autoridades escolares exercem o poder para ‘manter a disciplina’.
Em consequência do ambiente escolar desfavorável, poucos alunos conseguem bom desempenho estudantil, porque o aluno do professor autoritário usa, continuamente, estratégias para se defender das arbitrariedades e agressões, não sobrando o tempo para brincar, conversar, ler, pensar, escrever, inventar, estudar e aprender. A tensão, a vergonha e o medo impedem que ele se concentre nas tarefas escolares. Em consequência, ele pode ser acusado de desinteresse, desleixo e apatia. A segurança e a motivação são fundamentais para o desenvolvimento da mente e das habilidades. Uma pessoa insegura e acuada pode parecer indiferente, aversiva e, até, rebelde. Esses comportamentos permitem que o professor insensível classifique os alunos como ‘burros’ e incompetentes para aprender. Fecha-se assim o ciclo vicioso da educação ditatorial.
Do livro Maria Alfabetizadora, páginas 67 a 70.
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