A fruta estava madura, no ponto. A polpa estava deliciosa. E as sementes, muito semelhantes entre si, despertaram no homem a vontade de plantar, de ver as pequenas folhas emergirem, de admirar a planta tenra, de apreciar a folhagem juvenil e de saborear novos frutos, quem sabe?
Movido pelo impulso vital e revivendo sua infância na roça, contemplou as sementes e cedeu ao impulso de colocar algumas para germinar. Durante dias, aguardou a germinação dos óvulos, que iam rompendo os tegumentos até as radículas e a plúmulas surgirem dos embriões. A seguir, acalentou o desenvolvimento das plântulas.
Porém, ao derredor da morada humana, a terra e a Terra haviam sido dominadas e subjugadas por alvenarias e por asfaltos, sem um palmo de solo natural para receber árvores em crescimento.
Da janela, ele contemplava a rua quando percebeu um pequeno buraco ainda não cimentado após o conserto da calçada. Sorrateiro, a olhar para os lados temendo policiamento, ele cavou a terra e, em meio à esterilidade urbana, plantou uma das pequenas árvores.
A partir desse dia, sua função principal era vigiar e regar a árvore-criança com desejos de vicejamento. Temia que os cães satisfizessem as necessidades fisiológicas em cima e ao redor, que as formigas atacassem as folhas tenras, que algum funcionário público ou algum vizinho ‘limpasse’ a calçada. Fatal seria se um pneu esmagasse a vida em seu início.
Vencidos todos esses ‘inimigos’, ele e a árvore comemoraram a preservação da vida. Aos poucos, o arbusto solitário passou a ser ponto de referência, para a família e para os vizinhos. Todos amavam e defendiam a arvoreta, dos perigos da poluição, dos vândalos, das bicicletas e dos pisões. Confiavam que a vida venceria a esterilidade.
Iniciava um longo período de cultivo para que a árvore crescesse livre e sadia. Mesmo com toda a atenção e o carinho do homem, havia dificuldades. Enegrecidas pela fuligem oleosa dos motores e pela poeira dos pneus, as folhas tentavam respirar o gás carbônico liberado pelos pulmões dos estressados que corriam atrás de prazeres imediatos e totais. Poderiam assim contribuir para a redução do ‘efeito estufa’ E as pessoas poderiam sentar à sombra refrescante.
Os cães depositavam líquidos e sais alimentares. Entretanto, os excrementos liberavam odores desagradáveis. A árvore precisava de calor para seu metabolismo; porém, o sol escaldante cozinhava suas raízes sob as lajes de concreto.
Para viver, as plantas se renovam, soltando as folhas caducas e produzindo ramos e folhas novas, uma ressureição cotidiana e contínua. Então, as pessoas esqueciam ‘do grande amor pela Natureza’ e maldiziam as folhas caídas, elementos estranhos naquela perfeição urbana. Desconheciam (ou já tinham esquecido) que as folhas mortas podem virar alimento para as plantas vivas. As pessoas preferiam controlar a harmonia visual.
E mesmo os frutos incomodavam; os humanos preferiam devorar guloseimas açucaradas e bebidas energéticas, turbinadas. Por isso, os frutos amadureciam e caiam ao pé da árvore solitária, atraindo moscas. Havia também, o risco de quem passasse escorregar, cair, se sujar, sofrer fraturas. E as sementes, inconscientes da indignação do povo, começavam a germinar nas gretas das pedras e dos blocos de concreto, ameaçando entupir os bueiros e causar transtornos. A germinação das novas sementes preocupava os humanos que teriam de trabalhar muito trabalho para vigiar, cuidar, arrancar, limpar.
A árvore espalhava ‘problemas’ ao derredor. Então, as intrigas cresceram em volume e acidez contra quem encontrou, cuidou e plantou a semente. Acionados os ‘órgãos públicos’, a ‘Justiça’ montou o competente processo jurídico e os políticos ‘da oposição’ aproveitaram o alarido da mídia para fomentar a campanha eleitoral. Diversas polícias precisariam agir.
A árvore tinha ganho aversão comunitária e precisava ser erradicada, porque desassossegava a urbe. Nada mais incômodo que a ‘vida selvagem’ ocupando os exíguos e caríssimos espaços civilizados, sobrecarregando os serviços públicos e atrapalhando ‘a mobilidade urbana’.
Por mais lógico e simples que fosse arrancar uma árvore, fez-se uma guerra, com os ‘defensores da Natureza’ agredindo a todos que pretendessem ‘limpar a cidade’. Ecologistas que jamais haviam plantado uma semente invadiram as redes sociais e as ruas para vociferar contra os ‘agressores da Vida’. Paradoxalmente, ambos os lados da contenda gritavam ameaças de mortes. Todos tinham razão e ninguém tomava uma gota de senso de realidade.
Foram mobilizados os tribunais supremos e os exércitos policiais. Os julgamentos, transmitidos em tempo real, entretinham a multidão esquecida de seus afazeres e de seus problemas pessoais. Então, não mais a árvore e, muito menos, a semente, eram o foco do problema. A importância da árvore passou a ser as funções sociais que ela sustentava: os tribunais, as câmaras, as assembleias, as ONGs, os influenciadores, os jornalistas e os sindicatos.
Apesar de todos os transtornos para a perfeição urbana, a árvore teria de permanecer incomodando, porque um vegetal perdido na aridez urbana conseguia manter, em equilíbrio dinâmico, uma rede de descontentamentos úteis e lucrativos para os dois lados da contenda. As ‘graves consequências’ de um louco que fez germinar as sementes de uma fruta saborosa mantinham as pessoas vivas e orgulhosas de suas importâncias.