Há 9.000 anos (desde 7.000 a.c.), os sapiens consultam oráculos, constroem tabernáculos e seguem profetas que prometem salvação; tudo para fugir da finitude, da consciência de que nada vive para sempre. Temos medo da morte; não queremos morrer. Animais e plantas lutam para não morrer (“impulso primitivo, pulsão vital, quando em risco de morte”); os seres microscópicos, também. O homo sapiens sapiens continua buscando alívios para seus temores ‘mortais’. Preferimos fazer de conta que não sabemos.
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PIOLHENTO
Em Ipoméia, os adultos contavam e repetiam a história da “Véia Pina” e do “Celestino Pancada” toda vez que uma criança insistisse em implicar com os colegas ou na prática de maldades sem nexo. A história era usada como fábula, com função moral de corrigir comportamentos.
Nos tempos atuais, seria preconceito com ela e boas reflexões sobre o nome dele: Celestino, porque ‘merecia o céu’ de tanta pancada que recebeu na vida? Piolhento, dizia ela.
Relatavam um evento fatídico que ficou impresso em nossas memórias. Nunca lembrei de perguntar quem de fato eram, se tiveram filhos, do que viviam. Nem mesmo o nome civil completo dos dois. Lembro apenas que a casa deles ficava na barranca da margem direita do Rio Preto, a meio caminho entre a vila e o moinho. Era uma faixa estreita de chão batido e varrido, com uma casa de madeira escurecida pelas intempéries durante muito tempo.
Diziam que ela vivia implicando com o marido, debicando, enticando e chamando de piolhento. Diziam que a vida conjugal deles sempre teria sido assim: ela depreciando o marido e ele suportando tudo calado.
Naquele dia, ela teria chamado e apontado para a algo invisível no meio do rio. Ele teria olhado o ponto apontado, com atenção, forçando as vistas. E ela, aproveitando a concentração dele no inexistente apontado, embalou carreira pra empurrar o marido pra morte. Ele, porém, escutou os passos acelerados dela e, no momento que seria empurrado, saiu de lado, deixando que a mulher passasse a toda e caísse na água profunda do rio.
Ela, mesmo submersa e se afogando, ainda punha as mãos pra fora da água e fazia o gesto de quem esmaga piolho entre as unhas dos polegares.
REMISSÃO DE CULPA
Você pede desculpas. Eu não tenho poderes para anular tuas culpas e, muito menos, poder para remir teus crimes. Não há como emendar bananeiras ou desfazer os cortes, os ferimentos e a morte de árvores; não consigo ressuscitar vegetais. Seria utópico (e é) se livrar das agressões apenas confessando as culpas. Você veio reaver as armas do crime, sem trazer de volta os objetos que sumiram, destruídos ou jogados para o fundo do lago do esquecimento. Você não consegue devolver as horas de sono consumidas pela dúvida e pela insegurança decorrente da tua maldade ingênua. Você não consegue devolver a confiança em humanos; você não consegue remendar a paz dilacerada e, muito menos, restituir vida.
MAU-OLHADO
Desde criança, ouvi pessoas dizerem que alguém havia colocado mau-olhado nas fronhas, nas dobras da roupa ou nos bolsos. Ouvia mulheres especulando quem teria feito aquele feitiço, quem teria praticado a bruxaria, com que intenção. E sempre citavam alguém da família, alguma vizinha, algum parente, como pessoa perigosa, que poderia fazer grande mal, podendo causar até a morte. Porém, jamais eu tinha visto o mau-olhado em si. No início da adolescência, talvez, com mais curiosidade e, sem dúvida, com alguma coragem, quando ouvia uma voz assustada falando que tinha encontrado um mau-olhado, procurava as provas reais do malefício. Deixava passar alguns minutos, observava com cuidado se a denunciante estava ocupada com outro assunto ou estava cuidando de seus afazeres e vasculhava todas as roupas que estivessem penduradas nos varais para secar. Demorei para encontrar ‘objetos perigosos’. Saía frustrado; entretanto, ainda mais curioso. Redobrei minha atenção, agucei os ouvidos e preparei os olhos para encontrar ‘o inimigo’. Mesmo assim, não encontrei ‘o monstro’ que poderia destruir a vida de uma pessoa da família ou até a mim mesmo. Como dizia Anna Maria, minha mãe, quando desisti de procurar, quando já tinha esquecido das ameaças, alguém me mostrou um mau-olhado. Então, entendi porque não conseguia encontrar os anteriores: eu procurava algo horrível, amedrontador à primeira vista. Para poder frequentar a escola (Curso Ginasial), passei meses hospedado na casa de uma família, para a qual prestava serviços. Levantava no final da madrugada para ajudar a filha da dona do botequim a fazer pastel, cavaquinho, bolinho de chuva, cueca-virada e sonho para serem vendidos aos passageiros do ônibus que passava logo após às seis horas. Durante uma daquelas empreitadas, a moça soltou um grito medonho, tirou e jogou o casaco através da porta, apesar do frio intenso e da geada sobre as plantas. Parei de sovar a massa e aguardei calado, pois, ela era bem temperamental e poderia reagir agressivamente. Ela era a filha da patroa, mas, queria mandar mais que a mãe. Mesmo com medo, ela se encolheu de frio e, em poucos minutos, me mandou buscar o casaco caído logo depois da porta. Obedeci, sem contestar. Quando ofereci a veste, ela, tremendo, se encostou mais ainda contra a parede, com olhos de pavor. E ordenou que eu tirasse o mau-olhado que estava no bolso direito do casaco, já gelado e úmido de sereno. Vacilei. Se era perigoso para ela, poderia ser perigoso para mim também. Todavia, tinha que obedecer... Abri lentamente o bolso indicado e nada vi de diferente. Apenas, na parte mais funda do bolso, havia um amontoado de fiapos e de finas fibras que tinham se desprendido do tecido. Virei o bolso pelo avesso e ia retirar os fragmentos quando ela gritou ainda mais assustada: “Não põe a mão. Tu tá loco?” Eu, muitas vezes, havia retirado montinhos de pano no fundo dos meus bolsos... Nem por isso, fiquei louco ou senti algum quebranto. No entanto, precisava concordar com a patroazinha. Então, ela ficou mais indecisa que eu: vestir o agasalho com mau-olhado, suportar o frio ou assistir o extermínio de uma superstição. Seria uma vergonha ter mais medo que o adolescente quatro anos mais novo que ela... Foi vencida pelo frio ... Nos vinte anos seguintes, desperdicei meu tempo tentando convencer vítimas de quebranto de que aqueles restos de tecido lavado comprovavam, apenas, que as pessoas não costumavam virar a roupa pelo avesso na hora de lavar. Depois, aprendi a cuidar da minha vida, tão somente, e fiquei em silêncio diante de pessoas com medo de mau-olhado.
FASES: COMUNS OU INFLADAS?
Útero: nosso primeiro espaço para habitar e para aprender. Vida boa. Com riscos, óbvio: “Viver é arriscado.” Entretanto, receber alimentos completos através do cordão umbilical, sem precisar mastigar, sem a obrigação de se livrar de urinas e de fezes. Mesmo sendo o primeiro paraíso, ficar ‘pra sempre’ ali seria um desperdício. Se houvesse a possibilidade de perguntarmos para os fetos qual seria a vontade deles, receberíamos respostas semelhantes às nossas: “Não. Quero ver o mundo, caminhar, correr, comer, abraçar, ... Já tô cansado de ficar preso nessa escuridão.” Ao ser libertado dessa primeira situação social (de ser invisível, desejado ou rejeitado) o neonato é colocado no berço, a segunda estação vital (estação = onde se está por um tempo...). Bom, também. Mamadas, cafunés, carinhos, palavras infantilizadas, ... Por sorte, não recordamos do desconforto de mijadas e/ou cagadas... Nessa fase, podemos ver pessoas, objetos e paisagens; aproveitamos para aprender mais que na fase inicial. Muito bom, mas... melhor crescer logo, se livrar das fraldas, engatinhar, andar, mexer em tudo que alcançar, ... Ser criança tem muitas vantagens, naturais e/ou culturais: proteção, casa e comida de graça, admiração e elogios, chance de aprender muito mais... Fase de aprender quase tudo; até, de aprender a entender e a falar vários idiomas. No entanto, as crianças querem crescer logo pra poder ir pra escola, andar de bicicleta, jogar bola, subir nas árvores, ... Seria horrível permanecer criança a vida inteira. Terceira estação vital: a escola obrigatória. Poder sair de casa, como, tempos antes, foi desejo fugir do berço. Começam as responsabilidades, alguns colegas belicosos, mas... tem cirandas, brincadeiras, jogos, malandragens, gritarias, ... e o aconchego de uma casa pra voltar quando cansa e/ou sente fome. Na escola, aprendemos ainda mais que nas fases anteriores. Principalmente, fora da escola, com os amigos, com os livros, com ... Por outro lado, a lei impede que a gente deixe a escola, os pais (e a Sociedade) obrigam estudar coisas chatas, ... há reprovações; às vezes, precisamos trabalhar para sobreviver, ... Enfim, adultos, senhores de si, com direito de trabalhar, de casar, ... Uma pequena parcela dos adolescentes ou dos neoadultos tem a sorte de poder continuar estudando, antes de se dedicar exclusivamente ao trabalho; de poder ‘cursar uma faculdade’, obter uma ‘graduação’. Quiçá, uma especialização, um mestrado, um doutorado, ... Fase ótima! Privilégio social, destaque intelectual, melhores oportunidades de emprego... Principalmente, possibilidade de melhores salários, de trabalhar menos e em atividades mais nobres, menos desgastantes. Apesar de todas essas regalias, os diplomados preferem avançar para a próxima fase de vida: trabalhar, conquistar autonomia: deixar de ser ‘universitário’, para habitar espaços profissionais, empresariais, sociais, ... Espera-se (inclusive os universitários esperam... ) superar a situação formativa para ser um(a) cidadã(o) completa(o). Desconheço alguém que quis permanecer ‘estudante universitário’ até os noventa anos. *** A Medicina considera inflamação um “processo patológico fundamental” pelo acúmulo de partículas nocivas ao organismo. Inchar e inflar podem ser palavras com mesmo sentido: aumentar além do normal. Podemos considerar que pequenas coisas da vida fetal podem saturar o estado saudável, levando ao desejo de avançar para a próxima fase ou abortar, abandonar o lar. O mesmo acontece com os bebês, com as crianças, com os adolescentes, com os jovens e com os universitários. Menos com os que ficam trancados em uma das fases (não conseguem avançar para a próxima): patinam e acumulam ‘partículas nocivas’ que inflamam, incham, saturam o processo, adoecem. Escolhem continuar a viver a fase que deveria ser passada; ficam presos no redemoinho de relações tóxicas. Comparando com inflamações corpóreas (tendinite, sinusite, apendicite, renite, otite, ...), podemos nomear o acúmulo de manias de cada fase por fetite, bebite, criancite, adolescite, estudantite, academicite, adultite, ... Ou seja, quando acumulamos resistências, evitando avançar e superar o status quo, não conseguimos ultrapassar aquela fase de vida e inchamos de convicções e de covardias, obstáculos para enfrentar os desafios da próxima etapa de vida. Fetos que continuam considerando suficiente viver passivamente no útero, bebês que se negam a andar e/ou a falar, crianças que preferem permanecer infantilizadas, eternos adolescentes, universitários ‘jubilados’ ou que não conseguem ir além das arcaicas teorias livrescas acumuladas, repetidas, decoradas e defendidas como dogmas, ... Além de conhecer, analisar e selecionar a herança cultural, precisamos e devemos dar o ‘passo adiante’, continuar a construção de saberes ou reformular velhas teorias. Prender a mente em pensamentos da fase anterior pode ser doença grave.
PEDOFILIA HUMANA
À medida que sobrevivo por sete décadas, percebo que meu olhar alcança outros níveis, outros horizontes ou que eu consigo visualizar o que estava perto e permanecia ‘invisível’, em segundo plano. Talvez, minha mente envelhecida, com melhores configurações, consiga ultrapassar o imediato e penetrar através das frestas do senso comum. Durante a gestação, os meus olhos e a minha mente em construção devem ter visto, inicialmente, escuridões e, gradualmente, penumbras. Na primeira infância, reconheceram rostos familiares, objetos coloridos e fontes de alimentos, como mamas e mingaus. Até os três anos, dispensado de análises éticas e/ou filosóficas, devo ter visto o mundo apenas como paisagem dinâmica. A ‘idade da razão’ surgiu aos sete anos? Talvez. Quais as análises que eu fazia aos dez anos? E aos quinze? O que o Mario recém-adulto passou a pensar? Quais os critérios éticos do Mario quarentão? Em que fase radicalizei minhas visões de mundo? Quando comecei a me aprofundar nas raízes das questões? Justificadas as minhas idiossincrasias (predisposição do organismo que leva o indivíduo a reagir de maneira peculiar à influência de agentes exteriores/Houaiss), vamos ao tema proposto. Até envelhecer, lutei para acomodar a ideia de pedofilia como vício de “perversão que leva o indivíduo adulto a se sentir sexualmente atraído por crianças/Houaiss”. Apenas de adultos humanos? Esparramei minha atenção para o reino vegetal e procurei por eventos em que uma planta adulta tivesse tentado atos reprodutivos com uma planta recém-nascida, com brotos tenros ou com plantas sexualmente imaturas. Nada. Nenhum indício... Concluo que faltam evidências de pedofilia vegetal. Haveria pedofilia entre os seres microscópicos? Está lançado o desafio... Entre humanos existe. Humanos são animais. E os outros animais? Vasculhei as prateleiras mais antigas de minha memória, catalogando imagens registradas durante a infância, quando adolescente, durante a juventude e depois de adulto. Galos, galinhas, pintos; cachaços, porcas, leitões; baguais, éguas e potrinhos; cães, cadelas e filhotes; gatos, gatas, gatinhos; patos, patas, patinhos; marrecos, marrecas e marrequinhos; perus, peruas, peruzinhos; ... Nunca vi machos adultos dessas linhagens assediando os recém-nascidos, os desmamados ou os jovens. Pelas minhas interpretações, as danças sensuais animalescas iniciam com a maturidade dos animais domésticos. Os pássaros machos assediam os filhotes nos ninhos? Os passarinhos em treinamento de voo são perseguidos por pássaros tarados? Quem já presenciou alguma cena comprometedora? Existe pedofilia entre tatus, capivaras, cotias, gambás, lebres, veados, quatis, onças, leões, girafas, elefantes, cobras, baleias, avestruzes, carrapatos, bagres, hienas, chipanzés, gorilas ou micos? Os animais selvagens seriam mais éticos que os humanos? Mas, a ética e a moral não são preceitos humanos? Pedofilia seria um ‘efeito colateral’ da ‘inteligência superior’ do Homo Sapiens? Os seres humanos seriam mais animalescos e selvagens que os ‘animais inferiores’?
Nome de estradas, ruas, pontes, túneis, …
Em rodovias, os políticos colocam o nome de líderes paternalistas para que possamos transitar sobre eles; pisar, escarrar e jogar lixo neles. Menos mal que a maioria das pessoas logo esquece quem foi o laureado, ignora a fama concedida e passa a ver os letreiros das placas como símbolo grafado, pouco importando se com letras, algarismos ou desenhos. O vocábulo ‘homenagem’ deriva de homem, autoridade masculina, que concede às mulheres raras exceções, em espaços desprezados, temidos por eles. Assim, por obscura ironia vaginal, os homens nomeiam túneis e pontes em homenagem a mulheres idôneas, dignas e castas, para que sejam penetradas ou para que possam passar por cima delas. Para evitar e estar a salvo de reações dos violentados, estabeleceram em lei que só podem ser usados, nas placas informativas, nomes de pessoas mortas. São vinganças póstumas.
OS EXPLORADORES
Muito ativos desde pequenos,
choram por qualquer coisa,
exigem dedicação integral e
conseguem a atenção cobrada.
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Só que começam engatinhar,
exploram o quarto, a casa, o quintal.
Remexem tudo e seguem adiante…
sempre sem limites.
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Da mãe,
exigem alimento,
carinhos, o infinito e a eternidade;
do pai,
cobram trabalho extenuante,
segurança e presentes;
das demais pessoas,
ocupam o centro das atenções.
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Mesmo assim, reclamam de tudo.
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Para ampliar a exploração,
recebem madrinhas e padrinhos,
fontes inesgotáveis
de elogios e de mimos.
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Depois de explorar o pai, a mãe,
a família, os padrinhos, os avós,
os irmãos e os vizinhos, frequentam
creches, escolas e academias, onde
continuam exigindo privilégios:
exploram colegas e professores.
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Crescem explorando pessoas,
comunidades, clientes, governos
e todos os que deles se aproximam.
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Se apossam da natureza
como predadores insaciáveis,
derrubando árvores, matando animais,
queimando os resíduos orgânicos
e, por último, vendem
as pedras que restam no solo.
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Envenenam as lavouras,
as pastagens, os pátios de casa,
os rios, as lagoas, o mar e o ar.
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Seguem explorando os vizinhos,
as terras dos vizinhos,
as matas dos vizinhos,
as criações dos vizinhos,
os transportes dos vizinhos,
a amizade dos vizinhos,
a boa-fé dos vizinhos e
acabam esgotando
a paciência dos vizinhos.
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Depois de sugar a mãe, o pai,
a família, a comunidade,
a natureza e os mananciais de água,
passam a explorar as verbas públicas
e os espaços sociais…
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Como gafanhotos humanos,
vão desfolhando a vida;
por onde passam,
só restarão esqueletos ao vento.
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Exploradores
são pessoas bem atuantes,
que vivem sem limites,
se apossando de tudo
o que estiver disponível,
devorando o que encontram,
exigindo ‘colaboração’ dos outros,
sem nunca colaborar,
e ‘ficam muito brabos’ quando
os desejos e a voracidade deles
não forem atendidos.
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Exploradores desdenham e combatem
a ordem, os limites, as regras,
os valores morais,
as ações comunitárias,
o trabalho coletivo,
a preservação da natureza,
o ajardinamento de ruas e praças,
os cuidados com a casa,
a lealdade com as pessoas e
o respeito com as diferenças.
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Exploradores não perguntam
‘Eu posso entrar?’,
‘Eu posso pegar uma fruta?’,
‘Eu posso ajudar nesse trabalho?’,
‘Como você se sente?’,
‘O que você espera de mim?’, …
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Quando casam,
os exploradores já são
especialistas em exploração
e dominam completamente
as esposas, os sogros, os cunhados,
os filhos, os parentes, as instituições.
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Querem ser servidos,
‘ter tudo à mão’,
sem questionamentos
ou reclamações.
Recontagem de ÚLTIMA TRAVESSIA
Ouvi como anedota. Entretanto, o cenário, o tema e a insolência para com o homem humilde provocaram em mim uma reação ética e uma reflexão filosófica.
Um barqueiro ganhava seu sustento transportando pessoas para a outra margem do imenso rio. Não havia pontes. Era o único meio de transporte disponível. Em geral, transportava pessoas conhecidas, moradores das redondezas ou alguém que queria visitar algum familiar que morava além da outra margem.
Porém, num final de tarde, um homem com aspecto muito diferente dos ribeirinhos contratou uma travessia. As roupas e a pasta demonstravam ser uma pessoa da cidade. Mais que isso, cheio de si, parecia orgulhoso, cheio de si, semostrador.
Logo que a canoa saiu do embarcadouro, perguntou:
– Você conhece a Grécia?
– Grécia? Ela mora por aqui?
– Não, não. Não é uma mulher. A Grécia é um país distante e muito importante, porque foi lá que nasceu a Filosofia. Você deveria conhecer. Você não sabe o que está perdendo…
O humilde barqueiro baixou a cabeça. O objetivo dele era bem simples: levar pessoas de uma margem à outra.
– Você sabe Filosofia?
O barqueiro continuou remando, desinteressado dessa outra… possível … Seria outra nação? Seria uma mulher? Uma cidade?
Mesmo entendendo o silêncio e percebendo a inutilidade de lições, o homem explicou:
– A Filosofia investiga os princípios, os fundamentos e as essências da realidade imanente. Você não sabe o que está perdendo…
O barqueiro nem deu ouvidos; permaneceu atento à força da correnteza e aos movimentos arriscados do passageiro que podiam jogar água pra dentro da embarcação.
– Você sabe por que o avião consegue voar?
Pobre homem!!! Nem sabia da existência de aviões… Via muitos pássaros voarem… Até as folhas secas voam levadas pelo vento… Mas… avião… nem imaginava…
– Não. Não sei, não.
– Você não sabe o que está perdendo…
O barqueiro se sentiu mais pobre ainda… Nada possuía e ainda estava perdendo muita coisa…
– Você já leu Lucas Visentini?
– Lucas, eu conheço. Mas, ler o Lucas… Lá isso eu não sei.
– Você não sabe o que está perdendo…
O homem estava mesmo espezinhando o seu transportador.
– Qual a voltagem da energia elétrica por aqui?
O barqueiro ficou ainda mais confuso. Energia, ele até sabia o que era… Voltagem? Seria a volta de alguém? De dona Elétrica, talvez… Tem cada nome por aí…
– Nunca ouvi falar…
– Você não sabe o que está perdendo…
E assim, enquanto o barquinho singrava as turbulentas e agressivas águas do imenso rio, seguiu o desdenhoso interrogatório.
Além dos perigos naturais de se navegar a imensidão do rio em uma minúscula canoa, um iminente naufrágio ameaçava a vida de ambos, por causa da imprudência do passageiro.
No limite de sua paciência, o barqueiro perguntou agressivamente:
– O senhor sabe nadar?
– Nunca precisei aprender… – ironizou.
– Se continuar enchendo a igara de sabença e saracoteando sem parar, a canoa vai virar e o senhor vai perder tudo o que sabe. Até a própria vida…