Cada um é louco do seu jeito.
E ri das loucuras dos outros.
Cada um é louco do seu jeito.
E ri das loucuras dos outros.
Nada lembramos do que vivemos inconscientemente quando bebês. Durante a infância e a adolescência, agimos mais por impulso que por raciocínio lógico. Aos poucos, fomos tomando consciência de nossos acertos e de nossos erros. Passamos a pensar antes de fazer e a acreditar que nossas vivências são construídas por nossas escolhas e não pelo azar ou pela sorte.
À medida que envelhecemos, passamos a pensar mais sobre o cada vez menos que fazemos; substituímos a ingenuidade e a espontaneidade por responsabilidade crítica.
Se analisarmos o que formos fazer ou o que fizemos, poderemos reduzir o volume de decepções e de fracassos, bem como, viver sem tantos sobressaltos e sofrimentos.
Quem escreve pode registrar, no mesmo formato, diferentes acontecimentos ou, de forma diferente, os mesmos acontecimentos. A primeira afirmação se refere ao estilo e/ou à formatação do texto sobre uma ideia inédita; a segunda admite possibilidades de versões diferentes para a mesma ideia.
Podemos escrever fatos, acontecimentos, notícias, reportagens (que nos reportam a algo), fórmulas, receitas, hipóteses, teses, teorias, interpretações, poemas, crônicas, contos, romances ou ficções.
Apesar de parecer que só algumas da lista sejam invenções literárias, todos os textos registram o que o escritor imagina (imagem mental apresentada). Mentiras e verdades são frutos da imaginação humana. Mesmo as fórmulas e as teorias. Todo texto escrito tem alguma base ou destino no mundo real e diferentes doses de invencionice para preencher lacunas, chamar a atenção ou convencer o leitor.
Realidade, fantasia e intencionalidade são usadas na produção de textos literários. As doses de cada componente serão determinadas de acordo com o objetivo do autor. Às vezes, de forma inconsciente, os escritores deixam a subjetividade mascarar o objeto para atender aspectos técnicos ou interesseiros.
O léxico informa que ficção é “ato ou efeito de fingir; formação, criação, suposição, ...” Imagino que seja recriar os fatos, reconstruir a narrativa histórica, “com intenção objetiva, mas que resulta de uma interpretação subjetiva de um acontecimento, fenômeno, fato etc”. (Dicionário Eletrônico Houaiss)
Os historiadores – do gênero masculino, raramente do feminino – advogavam autoridade histórica, convencidos de que, ao escrever livros de História (com H maiúsculo), prestavam importante contribuição acadêmica à Humanidade.
A maioria advogava, pois, muitos deles já passam a admitir que a História possa ser considerada uma obra de ficção, mesmo que seja de ficção parcial: meias-verdades e meias-mentiras, baseadas em fontes ausentes e interpretações convencionais.
Historiadores opinam sobre fatos históricos. Escrevem e reescrevem a História, interpretando informações alheias; raríssimas vezes, presenciaram algum dos fatos narrados. Em geral, reescrevem, em outro estilo e segundo ideologias atuais, o que autores anteriores registraram como dado histórico, em condições similares.
Os documentos históricos são fragmentos da História: textos que foram gerados e publicados dentro de contextos pouco conhecidos ou, até mesmo, camuflados.
Portanto, o documento histórico é apenas a síntese oficial de um evento muito maior, mais amplo e mais complexo que a coleção de palavras que sobreviveu.
Além do que, as análises e as interpretações posteriores podem reinventar o fato histórico, possivelmente, com grandes distorções em relação ao que de fato aconteceu.
Quais os objetivos e quais as forças sociais que nortearam a edição do documento? Mesmo os verdadeiros. Há provas de que muitos documentos antigos são textos falsos inventados séculos depois para justificar arbitrariedades.
A Bíblia talvez seja uma antologia que reúne um conjunto de interpretações de fragmentos da oralidade e das escritas ideográficas ou pictográficas. A oralidade agrega subjetividades a cada transmissão; ideogramas e pictogramas são linguagens abertas a interpretações sérias, ingênuas ou tendenciosas.
No Curso de História, no início da Década 1970, tentaram me convencer que Heródoto – o “Pai da História” – comparecia a todas as batalhas com o objetivo de narrar com fidelidade as guerras gregas. Será? Viajava de helicóptero? Por sorte, jamais saiu ferido... Cabeça de Vaca e Karl May descreveram minúcias de suas viagens imaginárias pelas américas. Como que uma comitiva, no Século XVI, teria ido a pé pela mata da foz do Itapocu (Atlântico) a Asunción (Paraguai) em dezenove dias??? Escreveram com convicção. Talvez, baseados em relatos de outros que – de fato – estiveram no continente americano... Cabeça de Vaca convenceu reis a entregarem dinheiro e Karl May vendeu muitas cópias de suas histórias fantásticas. Cabeça de Vaca e Karl May forneceram fantasias terrenas para os cristãos europeus.
E, no Curso de Psicologia, no início do Século XXI, tentaram me convencer que a anamnese desvenda o passado; que as anamneses são fatográficos dos acontecimentos pessoais: que as anamneses são registros gráficos de fatos concretamente vividos.
Anamnese, na filosofia platônica, seria “rememoração gradativa através da qual o filósofo redescobre dentro de si as verdades essenciais latentes que remontam a um tempo anterior ao de sua existência empírica”. Consistiria em “esforço progressivo pelo qual a consciência individual remonta, da experiência sensível, para o mundo das ideias”. (Dicionário Básico de Filosofia, Hilton Japiassú e Danilo Marcondes)
Remonta: re-monta, junta os cacos, reconstrói a história. Reinventa a realidade. Realidade que, segundo algumas teorias, já é invenção individual. Como arqueólogos que reconstroem o corpo ancestral com base na anatomia e nos desgastes de um dente e, em seguida, baseados no espectro que eles mesmos criaram, ‘reconstroem’ toda uma civilização. Generalizam as anatomias e as culturas pré-históricas a partir de um fragmento.
Pura ilusão pensar que, ao ouvir uma regressão, estamos visitando o passado autêntico. Do grego, amnésia, ausência de memória. No entanto, psicanalistas e ‘pacientes’ acreditam. Ainda bem que os psicanalisados têm paciência... e fé.
Meu senso de realidade alerta que dezesseis jornalistas, ao relatarem um acontecimento, escreverão dezesseis reportagens diferentes, colorindo os fatos com seus pontos de vista. Contemplarão as cenas da posição em que estiverem, baseados em crenças pessoais, atendendo convenções sociais e regras de grupos interativos, guiados por convicções políticas, em busca de objetivos imprecisos: o futuro desejado. A maioria deles mencionará o que ouviu dizer, o que as fontes informaram... por critérios outros, quase sempre, subjetivos.
Na meia-idade, passei uma década sem revisitar minha Terra Natal. Quando regressei, ‘as curvas do rio estavam diferentes, com tamanhos, dimensões e direções que contrariavam minhas propaladas lembranças. Apenas o sentido da correnteza era o mesmo.’ Porque, meus sentidos mostravam que o que eu havia sentido, guardado e contado a tantos ... era o que eu sentia ao contar o passado, ao descrever o ausente. Ao falar para quem nunca esteve lá, eu descrevia minhas nostalgias e não as situações e os acontecimentos reais vividos no passado.
Minha mente – sem más intenções ou segundas intenções – contava meias-verdades, verdades parciais ou, até mesmo, inventava histórias, interpretava cenários e fatos, procurando dar veracidade e brilho às minhas ingênuas lembranças.
Se até eu mesmo me assusto com variantes, atalhos, desvios e volteios que, involuntariamente, crio, vamos imaginar as possíveis transigências de um repórter que se reporta a lugar que nunca esteve e a experiência que nunca viveu... Mesmo que o jornalista esteja presente em todo o transcurso, sempre descreverá as impressões e as intenções pessoais ou os mandados do editor, do dono do jornal, do dono da revista, chefe do partido político, do comitê científico, ...
Os historiadores registram ‘oficialmente’ as opiniões deles sobre o que aconteceu no passado; alinhavam as informações que coletaram, preenchendo os vazios do quebra-cabeça com suposições de enredo histórico. Como meteorologistas que tentam prever as variações climáticas, sem jamais se reportarem às previsões erradas...
Todos os textos escritos contêm doses de ficção; quanto mais convincentes, mais fictícios podem ser. O perigo do convencimento está em encantar o leitor com aparências de realidade. Basta recortar e comparar afirmações de um mesmo livro de História para encontrar discrepâncias e, até, contradições.
Quando leio poemas, contos e romances escritos por pessoas com quem convivi, percebo a distância entre o que eles dizem que viveram (e escrevem em seus livros e autobiografias) e o que de fato aconteceu. (Ou eu também estarei divagando?) Se eu fosse louco de tomar como realidade o que escrevem meus colegas escritores, estaria corroborando e colaborando para convencer os leitores de que aquilo foi – de fato – o que aconteceu e que, naquela época, as pessoas viviam daquela forma. Que o mundo teria sido aquele. Sim. Em parte, pode ter sido. Os floreios são fantasias.
Se não devo confiar nem na minha memória do que vivi, como vou confiar no que os outros escrevem do que os nossos ancestrais viveram? Se minha memória trai a mim mesmo, quanto posso enganar a quem lê o que escrevo?
Então, nas redes sociais ... precisamos ler com espírito crítico.
livrosdomariotessari.me/Vamos Pensar?
Pedro participava das atividades da Associação consciente de que poderia evoluir e contribuir para as melhorias educacionais.
Além das reuniões mensais para estudo de alternativas didáticas a serem testadas nas práticas pedagógicas, uma vez por ano, acontecia o grande evento, para os quais eram convidados palestrantes titulados de renome nacional, com trabalhos publicados sobre novas teorias de ensino-aprendizagem.
Para o IX Seminário de Ideias Inovadoras, foi convidado um professor catedrático da mais afamada universidade do País, pós-doutor em instituição norte-americana e autor de um trabalho científico com o sugestivo título: OS DETALHES PODEM MUDAR A EDUCAÇÃO.
Porém, o preço da palestra abarcava valores acima de qualquer detalhe. Por isso, os associados buscaram patrocínios e desembolsaram parte de suas economias para poder contar com informações que poderiam mudar as perspectivas salariais deles.
Como pessoa importante, o intelectual exigiu tratamento principesco e impôs condições adicionais: o espaço reservado ao público deveria estar completamente tomado e todos deveriam ouvir a exposição erudita no mais completo silêncio.
Depois de lida a extensa lista de títulos e de qualidades do palestrante, ele iniciou a explanação do tema contratado: INFLUÊNCIAS DO PROFESSOR NAS DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM DO ALUNO.
Imaginava-se que ele fosse revelar soluções para os desafios escolares daquela época.
No entanto, o pós-doutor divagou sobre as ideias brilhantes desenvolvidas durante o período em que ‘esteve no exterior fazendo o pós-doutorado’. O monólogo desfaleceu a curiosidade dos silenciosos espectadores, que já lutavam contra os cochilos. Então, minúsculos bilhetes começaram a circular, encaminhados ao mais ousado daquela plateia, sugerindo que ele interrompesse o solilóquio monocórdio com alguma pergunta ácida.
Inicialmente, evitando aceitar o papel de algoz, o instigado conteve-se. Entretanto, o palestrante apenas preenchia o tempo com palavras descompromissadas e o porta-voz eleito por unanimidade também perdeu a paciência, ergueu a mão e solicitou o direito de interromper a cantilena.
Como foi escrito acima, não interromper o palestrante estava entre as condições exigidas por ele. Por isso, exasperou-se; quase enfureceu-se. O corajoso psicopedagogo aproveitou o silêncio da autoridade autoritária para perguntar: “Qual o título da sua tese de pós-doutorado?”
A fúria saltou pelos olhos do palestrante. Fúria que encorajou ainda mais o inquiridor: “Qual o título da sua tese de pós-doutorado?”
Talvez temendo maiores terremotos ou na esperança de esmagar o insignificante professor com o peso de seu trabalho científico, o palestrante remexeu os papeis sobre a mesa e, depois de olhar energicamente para o interlocutor, leu o que estava escrito na capa do documento:
Função da ducentésima vigésima sétima letra da página trezentos e doze do quinto livro da Enciclopédia Universal no contexto das ideias desenvolvidas no capítulo dezessete do livro dois, que trata da síntese epistemológica das hipóteses de universalização dos conhecimentos do ser humano a respeito da formação geológica do período interglacial.
Dentro das condições contratadas, o restante do público manteve o mais absoluto silêncio. O que favoreceu ao porta-voz emitir uma segunda pergunta: “O senhor está falando da sua tese de pós-doutorado ou do tema que consta aqui na programação do evento?” (E mostrava o prospecto.)
Aí, já era demais! Um professorzinho insignificante questionar os caminhos usados para se chegar às causas das dificuldades de aprendizagem...
O palestrante buscou com os olhos o apoio da Presidenta da Associação para rebater a arrogância do insolente, que continuou a molestar: “Pelas suas próprias palavras, fica evidente a distância entre o que esperávamos ouvir como ferramenta para nossas ações educativas e as profundezas do foco de sua tese de pós-doutorado.”
A situação gerou profundo mal-estar na plateia. Apesar da evidente distância entre o tema contratado e a autopromoção do docente da famosa universidade, a maioria dos psicopedagogos reagiu com indignação. Os mesmos que mandaram bilhetes instigando o desmascaramento do convidado bem-pago sem proveito pedagógico se levantaram contra Pedro, como se fosse ele o único insatisfeito com a nulidade da palestra.
A unanimidade mudou de lado. De repente, a plateia levantou-se em defesa da honra do palestrante e exigiu que o insolente se retirasse, em silêncio. Antes de tudo o respeito à hierarquia dos títulos acadêmicos; logo em seguida, a benevolência para com o convidado.
Pedro pôs-se em pé, passou pela mesa oficial, e, com olhar cínico, varreu os colegas psicopedagogos. Carregando sua pasta recebida na inscrição para o IX Seminário de Ideias Inovadoras, caminhou resoluto para a porta, chegou ao estacionamento, embarcou no automóvel e foi para casa.
No dia seguinte, recebeu o comunicado de que fora banido da Associação.
As palavras e as ideias são de domínio público, sem direitos autorais. O direito autoral é do texto, que pode ser uma leitura ou releitura, escritura ou reescritura. Há, também, textos totalmente inéditos, cuja autoria deve ser reconhecida.
As aves e as árvores não se preocupam com a ‘maternidade/paternidade’ das sementes; elas apenas contribuem para a continuidade da vida.
Os seres humanos, com suas imbecilidades, é que lutam e brigam por vitrines, palcos, passarelas, aparências e vaidades.
Livre arbítrio é ilusão; somos seres circunstanciados, influenciados e pressionados por condições externas e por vontades dos outros. Às vezes, somos cobrados por quem desconhece a realidade íntima em que vivemos; de forma similar, todo texto é escrito dentro de um contexto e lido no contexto de cada leitor, podendo ser incompreendido e depreciado.
O modo como vivemos decorre de escolhas. E nossas escolhas dependem de outras escolhas. Somos pouco autônomos; dependemos dos outros… que, sem essas análises filosóficas, sem diálogo franco, colaboram ou cobram.
Longe de ser classificação entre o bem e o mal, entre o que é bom e o que é ruim, entre acertar e errar. São apenas encruzilhadas, dilemas. Nossas escolhas geram desesperanças (Soren Kiekegard), pois, ao escolher um dos caminhos, não mais esperamos benefícios dos caminhos não escolhidos.
Escolher é impreciso, aleatório. Ou seja, escolhas são atitudes subjetivas; às vezes, até irracionais. Todavia, as escolhas alinhavam nossas vidas.
Para evitar esses ‘jogos’, há algum tempo, deixei – intencionalmente – de ser reativo, de agir conforme as ações dos outros; passei a agir de acordo com meus princípios éticos.
Quando compramos o direito de habitar o Sítio Itaguá, em 2005, havia uma ‘casa de madeira de lei’, assoalho de tábuas alternadas de canela-preta e de peroba-rosa; lindo de se ver! Toda a armação do telhado em peroba-rosa, com ‘tesouras’ encaixadas no capricho e telhado do tempo das sesmarias, de telhas-calhas feitas a mão. Com janelas e a porta da frente “fabricadas em marcenaria”, porém, as portas internas foram “feitas em casa”.
Casa construída em 1977, pelo Antônio Vieira e pela Helena Felisbino, irmã do Lauro, casado com Maria Jovina da Cruz.
A água potável descia da montanha, descansava numa caixa sobre uma torre de tijolos cimentados em cruz até a altura de três metros e meio, assentada sobre uma grande pedra firme. Descia dali por canos de PVC para abastecer a cozinha e o banheiro. A torre original, em tijolos irregulares ‘de quatro furos’, recebeu ao lado, colada a ela com massa de cimento, uma torre mais recente (2003?), de tijolos ‘com seis furos’, assentada em parte (só em parte…) sobre uma pedra menor, talvez colocada ali. Nunca entendemos o porquê dessa maracutaia.
Uma das dificuldades que enfrentávamos com a casa de madeira era o pretume sobre a tinta que cobria as tábuas das paredes. Renovamos a pintura e a situação piorou, até. As portas internas, maciças, estavam revesadas, além de vários problemas no banheiro. A ameaça de cupins também assustava. Por isso, dois anos depois, construímos uma casa totalmente em alvenaria e com janelas de vidros temperados, com exceção das portas internas.
Iniciamos reformando o capril construído pelo Gasparino de Souza Mateus, onde foi instalado um vaso sanitário para o uso dos construtores contratados. Com a inauguração da ‘casa nova’, em 2007, a velha caixa d’água passou a servir apenas para essa latrina e para a torneira do tanque ‘de fora’. A partir dessa data, durante dezessete anos, cuidamos dessa caixa d’água antiga e alta; alta para que, entre 1977 e 2003, a água chegasse com pressão à casa antiga, distante quinze metros.
Em 2024, percebemos que a torre ‘nova’ estava descolando da torre velha, ameaçando desabar com a caixa d’água. Inicialmente, pensamos que teria sido a força do vento. Depois, percebemos que a base havia se soltado da pequena pedra e afundava o lado oposto na terra.
Colocamos uma escorra provisória e, em seguida, colhemos um bambu-chinês bem maduro para garantir a sustentação. Estávamos nessa lida quando me ocorreu que as saídas de água em uso estavam dois metros abaixo; estávamos mantendo um ‘monstro’ desnecessário e perigoso. Então, deixamos a água escorrer, retiramos a torre em queda, cortamos a outra pela metade e, sobre ela, recolocamos a caixa d’água sobre essa base baixa.
Com essa modificação, aproveito aprender sobre as dinâmicas existenciais. Ou, antes, sobre as dificuldades de ver o óbvio, de mudar na mudança. Durante dezessete anos, enfrentamos dificuldades por algo desnecessário, perigos e trabalhos que poderiam ter sido evitados desde aquela época. Trabalheira, acidentes, riscos.
Cada ser vivo estabelece seu espaço vital, conforme o poder que tem de restringir o espaço dos outros. Se sozinho no mundo, provavelmente, o indivíduo estabeleça seus limites no limiar de suas necessidades de espaço.
No entanto, cada vez mais, aumenta a densidade de seres vivos, diminuindo a fatia que corresponde a cada um. Por isso, como algumas plantas e alguns animais, sobrepujam os mais fracos, invadindo os espaços vitais deles. Excedem aos seus limites, exatamente porque os vizinhos carecem de forças e de agressividade para defenderem os próprios limites.
Por outro lado, alguns dos invadidos utilizam justamente a inércia individual para provocar piedade, reivindicando direitos iguais.
A palavra respeito é aglutinação portuguesa da expressão latina ‘res pectus’, significando coisa alheia. Ou seja, se é dos outros, não devo mexer.
Mas, também, pode significar ‘ação de olhar para trás’. Então, respeitar deveria ser aceitar o limite dos outros, sem abrir mão dos próprios limites.
A convivência entre seres vivos será sempre uma relação de poder. Para nós seres humanos, poderá ser um conjunto de relações pacíficas, mediadas por comportamentos éticos.
“— Ele parecia temeroso com alguma situação...
— Você é ainda muito jovem para entender as redes de intrigas políticas... Podemos considerar que, para atender o pedido do deputado, o Coronel teria de se expor para o Juiz de Paz, pedindo favores que poderiam custar caro mais tarde.
— Quanto devo cobrar para ler e para escrever?
— Icobé, o preço das coisas depende mais da necessidade de quem paga do que do esforço despendido. Você pode carregar pedras para quem não precisa e, é claro, não vai te pagar por isso. No entanto, a carreira política do Coronel depende de um bom secretário.
— Mas, eu tenho apenas catorze anos...
— A qualidade do serviço independe da idade. O valor de teu trabalho será proporcional à utilidade dele; será tão importante quanto o problema que ele resolver. Nós nos fazemos profissionais ao resolver problemas. Mesmo sendo um menino, você pode resolver um grande problema do Coronel.
Icobé tomava consciência das responsabilidades da vida adulta e das complexas relações sociais, políticas e econômicas que se estabelecem mesmo que as pessoas não assumam o controle dos eventos. O livre arbítrio será sempre relativo: se a pessoa escolhe uma profissão e se prepara para ela, poderá exercer com maior competência a sua participação comunitária; se não assume as escolhas e não planeja as ações, acaba sendo escolhido e manipulado por outras pessoas e, até, pelas suas próprias necessidades.”
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Nasci e cresci imerso na cultura brasileira: machista, reprodutiva, contraditória e simplista; às vezes, simplória e, até, leviana.
Por procura ou por sorte, fui ouvindo vozes dissonantes, indicações de ingenuidades coletivas que se enraizavam em mim também. Sou cientista amador, movido por curiosidade, em busca de atitudes mais coerentes.
Lá pela terceira década de vida, um comentário, quase um murmúrio, despertou minha mente para as condições higiênicas de minhas cuecas.
Quando criança, habitante de um cafundó, minha mãe aproveitava panos velhos, restos de camisas ou sobras de retalhos para confeccionar uma roupa íntima elementar. Ainda menino, fui enviado ao seminário para aprender a ler e a escrever. Ela precisa fazer bonito. Afinal, o filho seria alfabetizado. Então, ela aprimorou o modelo, chegando a algo próximo de uma cueca samba-canção. Só passei a usar cuecas compradas em loja quando ganhei algum dinheiro e saí da vila para estudar e trabalhar em uma pequena cidade.
Paralelamente, a “privada” dos meus tempos na roça evoluiu, nos seminários, para “banheiro coletivo”; para banheiros de pensionatos e para um banheiro adaptado em minha primeira casa; de madeira, mas, “com banheiro”, se bem que ‘adaptado’. Nos seminários, só o nome de “banheiro”, pois, os banhos semanais dependiam das águas – às vezes, barrentas – dos rios.
E assim fui evoluindo... Mesmo que – hoje, percebo – ainda faltasse muito para poder me vangloriar da higiene pessoal. Aí, ouvi o cochicho a que me referi em alguns parágrafos atrás.
Desde menino, depois de urinar, toda vez, eu esperava as últimas gotas abandonarem a glande; me demorava... e as pessoas ironizavam esse tempo extra, insinuando malícias ou ironias. Por mais que cuidasse e usasse estratégias para evitar as gotas de urina restantes, a cueca, vez em quando, manifestava o odor de desasseio.
Perguntei para algumas mulheres como elas faziam para evitar que a calcinha ‘ficasse temperada de urina’. Estranharam a pergunta e demonstraram preocupação com meu comportamento e com minha masculinidade. Ora, usavam papel higiênico...
Pensei: nunca vi meninos, rapazes e homens usando papel absorvente para secar as gotas temporãs... Porém, mesmo que fosse ironizado, decidi experimentar a técnica sanitária.
Confesso que sofri zombarias e reprimendas. Afinal, estava violando o código do machismo, posto em risco a segurança dos ‘verdadeiramente homens’ e semeando dúvidas sobre minha opção sexual.
Outra decisão minha: sentar no vaso sanitário para urinar. Afinal, quem convive comigo merece encontrar o assento limpo e inodoro.
Na Década de 1980, quando passei a trabalhar para uma empresa em que os mictórios se estendiam ao longo de uma parede, às vezes, passava por humilhação, porque algum colega me via a higienizar a glande e o prepúcio e proclamava essa ‘pouca vergonha’ para debochados colegas e clientes na grande sala de trabalho.
Também sofria escárnios em estações rodoviárias e aeroportos. Os que viam secando os restos de urina riam com complacência, parecendo se apiedarem dos meus desvios ‘morais’. Entretanto, minhas cuecas ficavam quase livres de imundícies e eu sentia o orgulho de romper um preconceito. Por me sentir menos sujo e mais confortável, fiz desse cuidado um hábito.
No final do Século XX, embarcava mais uma vez para exercer meu trabalho no extremo-norte do país. Depois de encaminhar minha bagagem e meu embarque, fui aos ‘sanitários’, carregando a ‘bagagem de mão’.
Como sempre se faz, ao adentrar ao ambiente restrito, lancei um olhar estratégico para a parede em frente, onde se alinhavam os mictórios ... e encontrei um rolo de papel higiênico ao lado ‘direito’ de cada urinol de louça.
Aquela visão me deixou paralisado. E a estátua viva chorou... Inicialmente, um choro manso, lágrimas escorrendo silenciosamente... Os dois passageiros que lá estavam, ao sair, passaram por mim olhando o chão, compadecidos com meu pranto. Os que vinham entrando me olharam com assombro e um deles veio me consolar, pois, então, eu já me sacudia em soluços.
Me emocionei porque via realizado um sonho evolutivo; um espaço público tinha sido preparado para atender a uma necessidade daqueles que desejavam privilegiar a higiene íntima em detrimento da glória machista de ‘jamais se comportar como mulher’.
Tenho consciência de que aqueles rolos de papel higiênico foram colocados ali para atender mais da metade dos ‘homens’ que ali urinassem; que, sozinho, nada teria conseguido. Todavia, eu tinha sido um dos que lutaram em silêncio por aquele benefício. Vibrei de alegria por ter participado de um evento social evolutivo; de ter ouvido o Zeitgeist (“o espírito do tempo”) e contribuído para a higiene das cuecas.
Sítio Itaguá, 08.09.2020