FÉLIX APAIXONADO

Félix passava a maior parte do tempo sentado no velho sofá da sala hipnotizado pelas imagens e pelo som da televisão. Os assuntos e os fatos eram sempre novos, porque ele esquecia tudo em minutos. Emocionava-se instantaneamente; esquecia imediatamente. Por isso, tudo era novidade. Até a aparição de um dos netos, que ele olhava com curiosidade, pois, na sua mente, não havia registros daquele personagem. Aliás, poderia ter, porém, o avô não encontrava os registros mnemônicos.

Passava horas babando pelos cantos da boca, agitado, excitado; as emoções estremeciam a velha carcaça a cada nova aparição feminina. As borrachas do sofá sofriam com os corpomotos, sismos intermitentes da tensão corporal. Esquecia do mundo. Aliás, de nada lembrava.

A esposa passava o dia em vigília. Preparava as refeições com um olho nas panelas e o outro no marido desmiolado. A mulher ia ao banheiro na correria, aproveitando os momentos em que ele estava encantado com alguma ninfa virtual. Até para atender quem batesse à porta, caminhava de ré, pois o caminho era mais estável que o pai de seus filhos.

Conceição – por ter concebido os filhos dele – prestava os serviços de esposa, de acompanhante e de enfermeira, sem reclamar e, até, com certo humor. Inicialmente, sofreu ataques de ciúme, como os havia sofrido desde que casara e acompanhava as investidas do farmacêutico, especialmente, quando aplicava injeções nas nádegas de suas vizinhas.

Porém, logo tomou consciência de que Félix nem mesmo sabia o que fazia. Deixou de levar a sério as babações, os acenos e os beijinhos jogados para o aparelho de TV. Às vezes, Conceição entrava na brincadeira, sorria para ele, piscava malícias, jogava beijos e perguntava:

— Qué casá comigo?

E ele, com os olhos vertendo ternuras:

— Pode ser…

OS EXPLORADORES

Muito ativos desde pequenos,

choram por qualquer coisa,

exigem dedicação integral e

conseguem a atenção cobrada.

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Só que começam engatinhar,

exploram o quarto, a casa, o quintal.

Remexem tudo e seguem adiante…

sempre sem limites.

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Da mãe,

exigem alimento,

carinhos, o infinito e a eternidade;

do pai,

cobram trabalho extenuante,

segurança e presentes;

das demais pessoas,

ocupam o centro das atenções.

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Mesmo assim, reclamam de tudo.

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Para ampliar a exploração,

recebem madrinhas e padrinhos,

fontes inesgotáveis

de elogios e de mimos.

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Depois de explorar o pai, a mãe,

a família, os padrinhos, os avós,

os irmãos e os vizinhos, frequentam

creches, escolas e academias, onde

continuam exigindo privilégios:

exploram colegas e professores.

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Crescem explorando pessoas,

comunidades, clientes, governos

e todos os que deles se aproximam.

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Se apossam da natureza

como predadores insaciáveis,

derrubando árvores, matando animais,

queimando os resíduos orgânicos

e, por último, vendem

as pedras que restam no solo.

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Envenenam as lavouras,

as pastagens, os pátios de casa,

os rios, as lagoas, o mar e o ar.

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Seguem explorando os vizinhos,

as terras dos vizinhos,

as matas dos vizinhos,

as criações dos vizinhos,

os transportes dos vizinhos,

a amizade dos vizinhos,

a boa-fé dos vizinhos e

acabam esgotando

a paciência dos vizinhos.

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Depois de sugar a mãe, o pai,

a família, a comunidade,

a natureza e os mananciais de água,

passam a explorar as verbas públicas

e os espaços sociais…

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Como gafanhotos humanos,

vão desfolhando a vida;

por onde passam,

só restarão esqueletos ao vento.

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Exploradores

são pessoas bem atuantes,

que vivem sem limites,

se apossando de tudo

o que estiver disponível,

devorando o que encontram,

exigindo ‘colaboração’ dos outros,

sem nunca colaborar,

e ‘ficam muito brabos’ quando

os desejos e a voracidade deles

não forem atendidos.

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Exploradores desdenham e combatem

a ordem, os limites, as regras,

os valores morais,

as ações comunitárias,

o trabalho coletivo,

a preservação da natureza,

o ajardinamento de ruas e praças,

os cuidados com a casa,

a lealdade com as pessoas e

o respeito com as diferenças.

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Exploradores não perguntam

‘Eu posso entrar?’,

‘Eu posso pegar uma fruta?’,

‘Eu posso ajudar nesse trabalho?’,

‘Como você se sente?’,

‘O que você espera de mim?’, …

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Quando casam,

os exploradores já são

especialistas em exploração

e dominam completamente

as esposas, os sogros, os cunhados,

os filhos, os parentes, as instituições.

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Querem ser servidos,

‘ter tudo à mão’,

sem questionamentos

ou reclamações.

A DIALÉTICA DA VIDA

A manhã, ao fornecer a luz,

rompe o repouso da noite;

desperta o aconchego do sono.

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A alegria da primavera

está impregnada de dor,

porque a flor que abre

e o ramo que cresce

precisam romper a si mesmos

para superar o corpo que foram

durante o tempo de recolhimento,

tempo de hibernação.

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O despertar da vida,

de aparente alegria,

traz em si

o rompimento do próprio ser

para que ele possa ser mais…

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A magia da vida está

em entender os ciclos vitais,

a alternância das estações,

a importância própria de cada momento,

que é único e necessário para o seguinte,

que não consegue ser mágico por si só,

por ser apenas um passo a mais

no caminho do todo indivisível

prazer de viver como pessoa feliz.

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A própria morte

traz dentro de si a vida,

pois, a saudade que nos invade

vem grávida da sabedoria de quem se foi,

da consciência de que tudo é efêmero

e de que precisamos viver intensamente

o momento presente,

valorizando as coisas simples e as pessoas,

porque, da vida, só lembraremos

da magia dos encontros humanos.

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A alegria e a dor são

partes de um todo perfeito,

que alterna sofrimento e prazer,

na construção da vida.

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A consciência dessa lógica

nos faz artífices do dia que nasce

e da primavera que floresce.

CÂNCER EM MAMA

Comandantes de instituições religiosas criam interdições (muitas vezes, incompreensíveis), que colocam névoas intelectuais entre as pessoas, dificultando a comunicação e criando o obscurantismo. Somos vítimas, “… seres humanos sacrificados a uma divindade ou em algum rito sagrado.”¹ Vivemos sob os constrangimentos morais dos “bons costumes” decorrentes de estratégias de dominação dos humildes por líderes ‘bondosos’, espertos e prepotentes.

Os dogmas e os mitos descrevem eventos metafísicos, criados por discursos da classe dominante e perpetuados pela oralidade plebeia ágrafa e subservil. As elites governantes inventam categorias sobrenaturais para justificar as transgressões às regras morais usadas para subjugar os súditos. Ou seja, controlam o povo com normas que se permitem burlar para dar plena vazão à corrupção, à devassidão, à libertinagem, à perversão e à exploração de seus semelhantes, como escravos ou fregueses de “determinada paróquia ou freguesia”¹.

Os semideuses da mitologia grega (satiros) e romana (faunos), como os demais semideuses em todos os impérios, leigos ou religiosos, permitiam a si o que proibiam aos comandados. Homens com cabeça de bode (que pensavam como um bode de alta potência sexual) que se permitiam a si mesmos (apenas a si mesmos…) dispensar o bom senso e, sem escrúpulos, liberar os instintos animalescos para praticar vícios e abusos.

A dominação masculina começa ao anexar as mulheres pela linguagem: a palavra ‘homens’ designando mulheres e homens, as fêmeas e os machos da espécie Homo Sapiens. Mitos e regras impostas por homens (masculinos, não-femininos) que, em casos extremos, transformam meninas, moças e mulheres em animais domésticos. O machismo permeia a cultura colonial europeia. (Desconheço os comportamentos de gênero nas demais culturas. E, como não conheci e nem convivi com sociedades matriarcais, fico curioso sobre os comportamentos do femealismo.)

Os tabus influenciam os costumes e, consequentemente, a linguagem.  O uso de eufemismos e de jargões camufla a realidade objetiva (camuflar = disfarçar, enganar), gerando escrúpulos infundados, inquietação mental, subserviência, constrangimento e interdição cultural ou religiosa. A hipocrisia imposta pela língua condena, por tabuísmo, palavras comuns, triviais e vulgares. Ou seja, demonializa objetos naturais e ações corriqueiras do nosso cotidiano.

Podemos tomar como exemplo o generalizado uso da expressão “câncer de mama”.

O tabu exige que, ao falarmos de mamas, usemos o ‘bom senso’, eufemismos, palavras não interditadas pela MORAL: ‘peito’ ou ‘seio’. “Deu o peito ao bebê.” “Tem o peito pequeno.” “Estava com o seio à mostra.” “Machucou o seio.”

Em anatomia, identificamos ‘peito’ como “porção anterior ou ventral do tórax”¹. Daí decorre o absurdo de afirmar que a mulher tem dois peitos. (E as porcas, então, teriam entre doze e dezesseis peitos???) Os rapazes também têm um único peito e duas mamas, em geral, pouco desenvolvidas.

No mesmo dicionário, podemos encontrar que ‘seio’ significa “parte do pescoço e do peito feminino que pode ficar descoberto”¹. (Os humanos machos e machos ‘humanos’ permitem essa sedução…) Ou “parte interna”¹, “cavidade”¹. Nas aulas de Anatomia, aprendi que o ‘seio’ de qualquer pessoa estava localizado sobre o osso esterno, entre as duas mamas. De homens e de mulheres.

Por outro lado, deslembro de ter ouvido expressões como ‘espinho de pé’, ‘câncer de cabeça’, ‘câimbra de perna’, ‘dor de coluna’, ‘cólica de rim’, ‘cólica de útero’, ‘afta de boca’, … Em geral, ouço falar ‘espinho no pé’, ‘câncer na cabeça’, ‘câimbra na perna’, ‘dor na coluna’, ‘cólica nos rins’, ‘cólica no útero’, ‘afta na boca’.

Então, talvez, o mais correto (e menos dissimulado) seria dizer ‘câncer em uma mama’, ‘câncer nas mamas’ ou ‘câncer nas duas mamas’.

Mesmo assim, lamentável que as mamas só possam vir a público quando a mulher já está doente.

¹ Dicionário Eletrônico Houaiss

LIBERDADE INDIVIDUAL E ORDEM PÚBLICA

Há pessoas de todos os tipos…

E, ainda, serão inventados outros…

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Algumas pessoas conseguem viver

desestruturadas, soltas no espaço,

livres, originais, inéditas, sem limites.

A desordem organiza o mundo delas.

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No outro extremo, identificamos

pessoas agoniadas com a perfeição,

que surtam diante de qualquer

imprevisto que ameace a rotina.

Seguindo um trilho, vivem em paz.

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Há quem prefira conhecer

os seus próprios limites

e os limites morais e sociais,

para poder respeitar

e, sempre que for possível,

tentar ampliar seus espaços.

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A sociedade humana

e as coletividades nacionais

estabelecem padrões sociais

de ordem comunitária,

para relações afetivas e

para condutas morais.

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Cabe a cada um de nós escolher

entre seguir as leis e as normas

ou assumir a liberdade absoluta.

Recontagem de ÚLTIMA TRAVESSIA

Ouvi como anedota. Entretanto, o cenário, o tema e a insolência para com o homem humilde provocaram em mim uma reação ética e uma reflexão filosófica.

Um barqueiro ganhava seu sustento transportando pessoas para a outra margem do imenso rio. Não havia pontes. Era o único meio de transporte disponível. Em geral, transportava pessoas conhecidas, moradores das redondezas ou alguém que queria visitar algum familiar que morava além da outra margem.

Porém, num final de tarde, um homem com aspecto muito diferente dos ribeirinhos contratou uma travessia. As roupas e a pasta demonstravam ser uma pessoa da cidade. Mais que isso, cheio de si, parecia orgulhoso, cheio de si, semostrador.

Logo que a canoa saiu do embarcadouro, perguntou:

– Você conhece a Grécia?

– Grécia? Ela mora por aqui?

– Não, não. Não é uma mulher. A Grécia é um país distante e muito importante, porque foi lá que nasceu a Filosofia. Você deveria conhecer. Você não sabe o que está perdendo…

O humilde barqueiro baixou a cabeça. O objetivo dele era bem simples: levar pessoas de uma margem à outra.

– Você sabe Filosofia?

O barqueiro continuou remando, desinteressado dessa outra… possível … Seria outra nação? Seria uma mulher? Uma cidade?

Mesmo entendendo o silêncio e percebendo a inutilidade de lições, o homem explicou:

– A Filosofia investiga os princípios, os fundamentos e as essências da realidade imanente. Você não sabe o que está perdendo…

O barqueiro nem deu ouvidos; permaneceu atento à força da correnteza e aos movimentos arriscados do passageiro que podiam jogar água pra dentro da embarcação.

– Você sabe por que o avião consegue voar?

Pobre homem!!! Nem sabia da existência de aviões… Via muitos pássaros voarem… Até as folhas secas voam levadas pelo vento… Mas… avião… nem imaginava…

– Não. Não sei, não.

– Você não sabe o que está perdendo…

O barqueiro se sentiu mais pobre ainda… Nada possuía e ainda estava perdendo muita coisa…

– Você já leu Lucas Visentini?

– Lucas, eu conheço. Mas, ler o Lucas… Lá isso eu não sei.

– Você não sabe o que está perdendo…

O homem estava mesmo espezinhando o seu transportador.

– Qual a voltagem da energia elétrica por aqui?

O barqueiro ficou ainda mais confuso. Energia, ele até sabia o que era… Voltagem? Seria a volta de alguém? De dona Elétrica, talvez… Tem cada nome por aí…

– Nunca ouvi falar…

– Você não sabe o que está perdendo…

E assim, enquanto o barquinho singrava as turbulentas e agressivas águas do imenso rio, seguiu o desdenhoso interrogatório.

Além dos perigos naturais de se navegar a imensidão do rio em uma minúscula canoa, um iminente naufrágio ameaçava a vida de ambos, por causa da imprudência do passageiro.

No limite de sua paciência, o barqueiro perguntou agressivamente:

– O senhor sabe nadar?

– Nunca precisei aprender… – ironizou.

– Se continuar enchendo a igara de sabença e saracoteando sem parar, a canoa vai virar e o senhor vai perder tudo o que sabe. Até a própria vida…