INSPIRAÇÃO

   Inspirar pressupõe absorção de algo que estava fora de nós, seja o ar que respiramos ou sensações e/ou imagens que atraem nossa atenção e despertam sentimentos capazes de gerar energia para agir, decidir, registrar, ... (Imagens e sensações podem ser apenas aparências externas do que acreditamos ver...)
   Durante a vida, inspiramos ar, dele, retirando oxigênio para incorporar ao sangue que alimenta as células para produzir energia. Processo mecânico, possível de comprovar e de medir. Para viver, todos os animais dependem do ar que respiram.
   No processo mental, formamos ideias e representações do que percebemos na realidade objetiva. Como não absorvemos os objetos e imagens, só podemos dizer, em sentido figurado, que ‘inspiramos’ ideias. Não inspiramos (puxamos para dentro de nós) percepções ou ideias; formamos, em nossa mente, imagens e representações sobre o que observamos ou recebemos pelos órgãos dos sentidos. Ideia, “representação mental de algo concreto, abstrato ou quimérico” [Houaiss].
   Porém, cada um de nós constrói a sua realidade – realidade subjetiva –, que, raramente, coincide com a realidade objetiva; por isso, sempre será transitória, substituível. Construímos nossas realidades através da intuição, por forças instintivas espontâneas que influenciam nossos pensamentos sem que tenhamos desejado ou planejado. Vemos e interpretamos, revemos e reinterpretamos o mundo, formando conceitos, opiniões e códigos de conduta.
   Por isso, pode parecer estranho o que o outro sente, seus temores, suas ilusões, seus valores, seus julgamentos, ... Nem sempre acreditamos no que o outro acredita e muitas mágoas e muitos traumas podem parecer absurdos para os outros. Eventos similares podem desencadear e manter sofrimento intenso em alguns (por longo período ou, até, por toda vida) e ser irrelevante e, imediatamente, esquecido por outros. Nossas realidades serão sempre ‘realidades relativas’.
   A arte e a criatividade resultam mais do ócio e da transpiração do que de ‘dons sobrenaturais’. Quem vive ‘de rendas’ dispõe de todo seu tempo para se dedicar a exercícios mentais ‘sem fins lucrativos’. Operários que trabalham doze horas por dia terão pouco tempo e pouca disposição para ‘cultivar devaneios’. Embaixadores e afortunados (herdeiros de fortunas) terão maior chance de pintar lindos quadros e de escrever livros excepcionais. Mesmo assim, podem ser exigentes e lapidar e aprimorar suas artes, por determinação e com esforços extras.

SAÚDES

Todas as saúdes
se fundam em relações
humanas cooperativas:
a saúde social.

Quem convive em harmonia
com as pessoas
e com o meio ambiente
vive em paz,
com saúde psicológica.

E o corpo aceito
pela mente terá
saúde física.

Isso, se a Medicina for
considerada Ciência da Saúde,
como opção a nosso alcance.

Se conseguirmos
nos imunizar da
mercantilização das doenças
e do medo de morrer,
teremos, então,
uma morte saudável.

Sítio Itaguá/26.06.22/03:05

FASES: COMUNS OU INFLADAS?

   Útero: nosso primeiro espaço para habitar e para aprender. Vida boa. Com riscos, óbvio: “Viver é arriscado.” Entretanto, receber alimentos completos através do cordão umbilical, sem precisar mastigar, sem a obrigação de se livrar de urinas e de fezes.
Mesmo sendo o primeiro paraíso, ficar ‘pra sempre’ ali seria um desperdício. Se houvesse a possibilidade de perguntarmos para os fetos qual seria a vontade deles, receberíamos respostas semelhantes às nossas: “Não. Quero ver o mundo, caminhar, correr, comer, abraçar, ... Já tô cansado de ficar preso nessa escuridão.”
Ao ser libertado dessa primeira situação social (de ser invisível, desejado ou rejeitado) o neonato é colocado no berço, a segunda estação vital (estação = onde se está por um tempo...). Bom, também. Mamadas, cafunés, carinhos, palavras infantilizadas, ... Por sorte, não recordamos do desconforto de mijadas e/ou cagadas... 
Nessa fase, podemos ver pessoas, objetos e paisagens; aproveitamos para aprender mais que na fase inicial. Muito bom, mas... melhor crescer logo, se livrar das fraldas, engatinhar, andar, mexer em tudo que alcançar, ...
Ser criança tem muitas vantagens, naturais e/ou culturais: proteção, casa e comida de graça, admiração e elogios, chance de aprender muito mais... Fase de aprender quase tudo; até, de aprender a entender e a falar vários idiomas. No entanto, as crianças querem crescer logo pra poder ir pra escola, andar de bicicleta, jogar bola, subir nas árvores, ...
Seria horrível permanecer criança a vida inteira. 
Terceira estação vital: a escola obrigatória. Poder sair de casa, como, tempos antes, foi desejo fugir do berço. Começam as responsabilidades, alguns colegas belicosos, mas... tem cirandas, brincadeiras, jogos, malandragens, gritarias, ... e o aconchego de uma casa pra voltar quando cansa e/ou sente fome.
Na escola, aprendemos ainda mais que nas fases anteriores. Principalmente, fora da escola, com os amigos, com os livros, com ... Por outro lado, a lei impede que a gente deixe a escola, os pais (e a Sociedade) obrigam estudar coisas chatas, ... há reprovações; às vezes, precisamos trabalhar para sobreviver, ...
Enfim, adultos, senhores de si, com direito de trabalhar, de casar, ... Uma pequena parcela dos adolescentes ou dos neoadultos tem a sorte de poder continuar estudando, antes de se dedicar exclusivamente ao trabalho; de poder ‘cursar uma faculdade’, obter uma ‘graduação’. Quiçá, uma especialização, um mestrado, um doutorado, ...
Fase ótima! Privilégio social, destaque intelectual, melhores oportunidades de emprego... Principalmente, possibilidade de melhores salários, de trabalhar menos e em atividades mais nobres, menos desgastantes.
Apesar de todas essas regalias, os diplomados preferem avançar para a próxima fase de vida: trabalhar, conquistar autonomia: deixar de ser ‘universitário’, para habitar espaços profissionais, empresariais, sociais, ... Espera-se (inclusive os universitários esperam... ) superar a situação formativa para ser um(a) cidadã(o) completa(o).
Desconheço alguém que quis permanecer ‘estudante universitário’ até os noventa anos.
***
A Medicina considera inflamação um “processo patológico fundamental” pelo acúmulo de partículas nocivas ao organismo. Inchar e inflar podem ser palavras com mesmo sentido: aumentar além do normal.
Podemos considerar que pequenas coisas da vida fetal podem saturar o estado saudável, levando ao desejo de avançar para a próxima fase ou abortar, abandonar o lar. O mesmo acontece com os bebês, com as crianças, com os adolescentes, com os jovens e com os universitários. Menos com os que ficam trancados em uma das fases (não conseguem avançar para a próxima): patinam e acumulam ‘partículas nocivas’ que inflamam, incham, saturam o processo, adoecem. Escolhem continuar a viver a fase que deveria ser passada; ficam presos no redemoinho de relações tóxicas.
Comparando com inflamações corpóreas (tendinite, sinusite, apendicite, renite, otite, ...), podemos nomear o acúmulo de manias de cada fase por fetite, bebite, criancite, adolescite, estudantite, academicite, adultite, ... Ou seja, quando acumulamos resistências, evitando avançar e superar o status quo, não conseguimos ultrapassar aquela fase de vida e inchamos de convicções e de covardias, obstáculos para enfrentar os desafios da próxima etapa de vida.
Fetos que continuam considerando suficiente viver passivamente no útero, bebês que se negam a andar e/ou a falar, crianças que preferem permanecer infantilizadas, eternos adolescentes, universitários ‘jubilados’ ou que não conseguem ir além das arcaicas teorias livrescas acumuladas, repetidas, decoradas e defendidas como dogmas, ... Além de conhecer, analisar e selecionar a herança cultural, precisamos e devemos dar o ‘passo adiante’, continuar a construção de saberes ou reformular velhas teorias.
Prender a mente em pensamentos da fase anterior pode ser doença grave. 

Frases 11

  1. Os tolos nos ensinam muita coisa.
  2. Os governantes de uma nação terão sempre as virtudes e os defeitos de seu povo.
  3. Quando o aluno acerta, fico sabendo que ele entendeu o que eu expliquei; quando ele erra, fico sabendo como ele pensa.
  4. A felicidade e a infelicidade andam pelo mesmo caminho; porém, em sentido contrário.
  5. Empatia é o esforço que fazemos para nos colocar no lugar dos outros.

Frases 10

  1. A tolerância é semente de paz.
  2. Quem planta emoções colhe violência.
  3. A vaidade é pedra inútil que carregamos.
  4. Ao invés de viver a própria vida, muita gente quer viver a vida dos outros. Essa é a mais profunda das alienações.
  5. O dialético percebe o mundo como realidade em contínua transformação.

AUTOANÁLISE. AUTOCURA.

   Consigo lidar com os limites da mente, do espírito. Basta uma dose de humildade e a firme decisão de aceitar a realidade. Tenho relativo controle sobre o campo psicológico. Invento esperanças, alimento ilusões, cancelo projetos, reinvento motivos para viver. Leituras e escrituras ajudam a curar feridas emocionais. Meditar, conversar, dialogar, … procedimentos que aliviam as decepções e podem fortalecer meu senso de realidade.
   No mundo físico, os limites são mais persistentes, mais teimosos. Mostram força e colocam as soluções depois do horizonte, além das minhas forças. A chuva, a seca, o calor, o frio, o vento, o corpo, … Os elementos naturais seguem o ritmo eterno e fico à mercê deles. Analiso meu corpo, o transportador de minha mente, o habitat de meu espírito. Tento otimizar os movimentos, administrar o funcionamento. Com dificuldades, porque meu corpo envelhece depressa, degenera. Ao contrário da mente, que se renova a cada incentivo, a cada estímulo, a cada carinho recebido, o corpo definha inexoravelmente.
   Autoanálise. Autopreservação. Autofinamento. A mente ativa governando um corpo em constante redução, enfraquecido. Busco meu fim.
   No fim, serei muitas ideias em um corpo frágil. Essa será a mais perfeita das imperfeições. A perfeição possível.

PARTE DO PROBLEMA

   Eu sofria ataques verbais dos vizinhos, sem compreender a razão de tão intensas e contínuas agressões.
   Conversando com os filhos, um deles afirmou que eu estava provocando a situação.
   No primeiro momento, senti abalo emocional: considerei que até o filho estava contra mim.
   Depois, refleti: ele falou isso por um motivo. Procurei inverter o meu ponto de vista, experimentar outros olhares, tentar ver por outro ângulo. Imaginar o que meu filho via.
   Então, conclui: minha afabilidade, meus sorrisos silenciosos e minha vontade de ajudar criavam barreiras e, até, aversão. Afinal, eu era ‘de fora’; o que estaria querendo? “Ensinar a gente viver do jeito dele?” Minhas palavras eram recebidas como desaprovação do modo de vida dos ‘nativos’. Eu era ‘de fora’, não comungava dos valores deles, como criar bois atados em cordas à beirada de estradas, proliferar cães e gatos, jogar lixo no rio, ... Minhas opiniões, atitudes e crenças causavam desconfortos e desencadeavam reações agressivas.
   Queriam ‘me expulsar’. Assim, eles estariam livres de ‘críticas delicadas’ e de orientações ‘urbanas’ (“pensa que vive na cidade”), como ensinar pessoas a ler e a escrever, aparar a relva, cultivar jardim, plantar flores, construir canteiros na horta em retângulos sob medida, “fazer trabalho de mulher”, perder tempo plantando árvores, ... Como o Plínio Schmidt me alertou: “Andam dizendo por aí que o senhor é um louco. Enquanto todo mundo luta pra limpar os terrenos, o senhor planta mato.” 
Minhas tentativas de conversar, minha disponibilidade, meus desejados diálogos sem entrar no jogo verbal de revidar, sem responder à altura, sem ter uma “atitude de homem”. Meu comportamento cortês agredia as pessoas, minha tolerância com homossexuais e com negros depunha contra valores ‘consagrados’; meu ateísmo assustava.
   Ou seja, eu era parte do meu problema. Ou pior: eu causava problemas.
   Eu escrevia frases filosóficas no quadro pendurado na varanda. E a maioria deles despreza a leitura ou nem sabe ou não quer ler... Eu escrevo livros; “Vai ver que tá escrevendo da gente...”. Meu comportamento, sem que eu tivesse consciência disso, atraia o ódio dos ‘normais’. Ao longo de dezesseis anos, esporadicamente, sofri tempestades de palavrões e de acusações infundadas do vizinho, que, talvez, esteja indignado com meu silêncio complacente, com minha ‘educação exagerada’. “Tem gente que estuda a vida intera e não aprende a ajudá quem percisa.” “Bicha covarde. Froxo. Se iscode atráis da janela e da muié, foge pra banda de lá do rio.”
   Pesquisei e encontrei alguns ensaios sobre a aversão aos benevolentes e aos afáveis. Afável? Uhhhmmmm! Afável... Seria falta de atitudes viris? Falta de capacidade de enfrentamento? Covardia? Enfim, um ‘homem frouxo’... Então, querer a paz, querer viver em harmonia, seria agressivo aos belicosos? Fugir das competições, das encrencas e dos riscos sociais seria uma provocação para os empreendedores, para os destemidos? Sou um franguinho manso que se encolhe a cada bicada? Meu desejo de ‘ficar quieto no meu canto’ agride os competidores? Meu silêncio incomoda os que gritam? Percebo que essa minha afabilidade ofende as pessoas... que me atacam... e eu me encolho... Ao fugir de polêmicas, de confusões e de brigas, eu provoco a ira deles. Escolhi me retrair, abdicar da convivência comunitária e permanecer calado, sem contextualizar situações e sem relatar meus sentimentos.
   Convicto de que sou parte dos problemas que causo, passei a usar essa dúvida em minhas análises de conjuntura e nas solicitações de aconselhamento.
   Por esse ponto de vista, vejo que a maioria dos problemas persiste porque as pessoas se sentem vítimas condescendentes; não se veem como parte do problema e continuam agindo de boa-fé, crentes que ‘fazem o bem’.
   Acredito que o reconhecimento de que somos parte dos problemas pode contribuir na solução das nossas dificuldades afetivas e nas melhorias de nossas relações sociais.

ADMIRAÇÃO

   Eu admiro o voo dos pássaros. Posso passar horas, no templo da floresta, con-templando os pássaros em suas ousadias e em suas habilidades voláteis, que representam a real liberdade. Admiro, apenas... não quero estar com eles no ar, não pretendo imitar.
   Admiro os heróis; fujo de heroísmos. Prefiro ser normal, passageiro, substituível e livre de idolatrias. Jamais eterno. Meu corpo e minha mente são finitos. Talvez, minhas ideias se propaguem e sobrevivam ao meu sopro vital...
   Admiro os vizinhos. Admiro apenas. Prefiro ser plateia e auditório dos projetos e das realizações deles, enquanto continuo silvestre, como elemento da Natureza, convivendo com os bichos e plantando sementes.
   Admiro a Primavera. Todavia, o encanto dela está – exatamente – na impermanência, na fugidade das estações e dos ciclos cósmicos. Se, o tempo todo, fosse primavera, já estaríamos cansados do eterno florir. A beleza das flores começa na esperança, no saber esperar, que inclui semear, plantar, regar, cuidar e imaginar. E as esperanças vegetam durante os invernos.
   Procuro saber o que admiro; prefiro ter consciência do que vivo, do que quero continuar vendo de longe, do que quero viver integralmente no dia-a-dia. A beleza e a funcionalidade da vida estão na diversidade, na compreensão dos ciclos... semelhantes, porém, sempre modificados, diferentes em detalhes que fogem ao nosso entendimento. Depois de séculos, identificamos mudanças significativas.
   Se chovesse o tempo todo ou se nunca chovesse, as plantas seriam extintas. A monotonia mata. A monocultura se autodestrói. Inclusive, a monocultura literária.
   Viver para sempre seria a ‘morte de novas vidas’. A soberba humana pode pretender ser eterna; há quem acredite que sua estupidez seja insubstituível.
   O inverno e o morrer são tão importantes quanto a primavera e o nascimento. A ressurreição, então, seria a arrogância de renascer em detrimento de outras vidas, de se intrometer nas gerações futuras.
   O mundo já está superlotado de homo-deuses; para sobreviver, o Planeta Terra precisa que ocorram muitas mortes definitivas, para dar espaço a novas existências.
   Quero viver plenamente o meu agora com o máximo senso de realidade: essa consciência de que sou único, limitado e efêmero.
                                      ***
O prefixo latino ‘ad’ indica “movimento para, movimento em direção de, aproximação, diante de, junto a, ...”
Ad-miror, atus, sum: ad-mirar, intenção e ação consciente de mirar, de “fixar os olhos em, olhar longamente à distância, fazer pontaria”, se esforçar para atingir o ponto central, desenvolver acuidade, ...
                                               8 de setembro de 2020 11:19

A FORÇA SOCIAL

Há milhares de anos, o hominídeo lutava contra seu vizinho tão naturalmente quanto comia. Ou seja, na luta pela sobrevivência, era normal bater, usar a força para dominar ou, até mesmo, matar o rival. Violência natural. Lutava indivíduo contra indivíduo, família contra família, grupo contra grupo, …

Através dos séculos, a espécie humana usou as mãos e as armas para impor suas ideias e sua vontade, sem ter consciência de que empregava a força física como qualquer outro animal. Os mais fortes dominavam os mais fracos: os adultos dominavam os jovens e os velhos; os machos dominavam as fêmeas – apenas se fossem mais fortes que elas. Quem obedecia era protegido. Por isso, a obediência consagra-se como virtude, do ponto de vista do dominador.

Os fortes podem também dominar pela linguagem. O canto e os gritos conseguem ampliar os espaços vitais de aves e mamíferos. Tomando como exemplo, os galináceos (domésticos ou não) defendem seus espaços pelo cocoricó e os leoninos, pelo rugido.

Se articulassem a linguagem, leões e galos ampliariam seus espaços e a forma de domínio, sobre a própria espécie e sobre outras espécies. Enquanto o grito queria dizer simplesmente “fora daqui, esse pedaço é meu”, a articulação poderia explicar porque tinham direito ao espaço dominado e quais as condições e os limites do domínio.

O poder dos dominantes justificando os argumentos ditatoriais, nas religiões, nas políticas e nas ‘justiças’. Em síntese, as regras oficiais eram (e são) cumpridas porque o bom juízo recomendava obediência. “Manda quem pode; obedece que tem juízo.”

À medida que substituíram o uso da força pelo uso da linguagem articulada, os hominídeos se transformaram em homens. Evolução fundamental para a ampliação e consolidação do domínio humano sobre os demais animais que não desenvolveram a fala. O homem, que, pela força, já dominava outros homens e animais menores, se torna mais eficiente, dominando-os também pela palavra. Inicia, então, a Guerra do Letramento, com o uso da escrita pelas elites cultas para dominar os analfabetos.

Como nos mostra Vigotsky, linguagem e pensamento têm desenvolvimento interdependente e contínuo. Assim, o desenvolvimento linguístico veio acompanhado de desenvolvimento da inteligência. Talvez, se outra espécie animal tivesse articulado a voz, hoje, não seríamos tão soberanos.

A substituição da força pela palavra se dá aos poucos, ao longo de milhares de anos, e ainda não se consumou, coexistindo a democracia com a guerra. O dominador, seja ele indivíduo, grupo ou nação, demonstra civilidade, tentando convencer pela palavra, pelo discurso, pela diplomacia. Porém, se não atingir o objetivo, não vacila em usar a força.

Nesse processo de substituição, se confirma a regra do mais forte: os machos exigem que as fêmeas usem a linguagem em vez de usar a força física para se defenderem ou para atacarem, as obrigando a serem civilizadas. Porém, se as fêmeas não agirem conforme o esperado, os machos, então, se permitem usar a força, porque eles detêm o poder. Poder exercido prioritariamente pela linguagem. Todavia, se elas não tiverem juízo, eles se consideram no direito, segundo o juízo deles, de voltar ao uso da violência física. Essa segunda instância garante que, com o tempo, elas entendam as mensagens.

O mesmo acontece em outras relações sociais: adultos sobre jovens, grupos sobre indivíduos, grupos maiores sobre grupos menores, armados sobre desarmados, ricos sobre pobres, eruditos sobre analfabetos. Surgem alianças de mais fracos para superar o poder de um forte.

A linguagem, a articulação e a força garantem também o domínio do grupo sobre os indivíduos.

O ser humano talvez seja o único animal a se agrupar para atacar a própria espécie, sejam indivíduos ou sejam outros grupos rivais. De forma arcaica, juntando forças físicas – mãos, braços, pernas, unhas, dentes, pedras, paus, fuzis, misseis, … – ou,  democraticamente, substituindo a força muscular pela força oral, pelo poder da palavra.

Exemplo da força inquestionável da sociedade sobre o indivíduo é a pena de morte: muitos são condenados à morte por terem matado… Por isso, a lei manda matar o matador.

Aceitamos que a sociedade faça justiça com as próprias mãos, condenando a morrer os que mataram menos que ela. Matar na guerra merece condecoração, por ser considerado um gesto nobre, da nobreza instituída … que decreta pena de morte para quem matar sem ordem oficial de um governo.

Usamos a própria linguagem para dizer que mudamos a linguagem. Entretanto, em último caso, usamos a força das mãos e dos artefatos bélicos para garantir que a mudança seja aceita, que nossa verdade seja a única, que nossa regra seja cumprida. Mudamos tanta coisa, mudamos o mundo; só não abrimos mão da lei do mais forte.

As leis proíbem o indivíduo de acusar, de roubar ou de matar. Porém, a sociedade – um ente ideológico e mítico – tem o direito de fazer e de absolver a si mesma desses crimes com toda naturalidade, porque é muito mais forte que os indivíduos. As leis civis foram criadas pelo Homem. Logo, são produto cultural humano; não são leis naturais. No entanto, ao mais forte pode optar entre as leis do legislador e as leis da natureza, se houver vantagens para ele.

Em 10.12.1948, os homens se disseram animais especiais, através da Declaração dos Direitos Humanos. Seria o cultural substituindo o natural, mudando as regras sociais. Porém, ainda os opressores esquecem da linguagem, da diplomacia, do diálogo e usam a força bruta, toda vez que seus interesses não são atendidos.

Ainda não somos totalmente humanos; só o seremos no dia em que, abdicando da irracionalidade, respeitarmos os direitos dos outros. Principalmente quando os outros forem os mais fracos, os sem-poder. É a utopia do educador; o sonho possível.

Entretanto, as regras continuam as mesmas: os fortes dominando os fracos, preferencialmente pela palavra. Caso não haja obediência, aí, se volta ao método anterior, que ainda funciona: homens mandando em mulheres, adultos mandando em jovens, grupos mandando em indivíduos, grupos poderosos mandando em grupos menos poderosos. E quem manda tem o direito de escolher as armas; se a palavra for insuficiente, acrescenta-se o porrete, a faca, o revólver, o canhão, o míssil, … o Pentágono, a OTAN e a ONU.

Tudo muda e evolui, menos a regra fundamental do jogo. Inventamos várias contagens para o tempo, vários calendários. O ocidental, que tem mais poder, diz que estamos na virada do milênio, entrando em uma nova era. Ainda os fortes dominando os fracos; sendo mais ético fazê-lo pela linguagem, criando e impondo a lei, que garante o direito do legislador, com os argumentos de quem tem poder.

Desses argumentos, o mais convincente – e talvez o mais sutil e silencioso – é a nossa consciência de que, se o discurso verbal não for suficiente, o detentor do poder apelará para a violência física ou para a violência simbólica: poder do dinheiro, poder político, poder religioso, empregabilidade, …

Escrito em 1976; reescrito em 14.09.1999; atualizado em 27.03.2022.

Nome de estradas, ruas, pontes, túneis, …

Em rodovias, os políticos colocam
o nome de líderes paternalistas
para que possamos transitar sobre eles;
pisar, escarrar e jogar lixo neles.

Menos mal que a maioria das pessoas
logo esquece quem foi o laureado,
ignora a fama concedida e
passa a ver os letreiros das placas
como símbolo grafado, pouco importando
se com letras, algarismos ou desenhos.

O vocábulo ‘homenagem’
deriva de homem, autoridade masculina,
que concede às mulheres raras exceções,
em espaços desprezados, temidos por eles.

Assim, por obscura ironia vaginal,
os homens nomeiam túneis e pontes
em homenagem a mulheres
idôneas, dignas e castas,
para que sejam penetradas ou
para que possam passar por cima delas.
 
Para evitar e estar a salvo
de reações dos violentados,
estabeleceram em lei
que só podem ser usados,
nas placas informativas,
nomes de pessoas mortas.
 
São vinganças póstumas.