TUMOR DE COLÍRIO

Matusalém Vitalino estendia a vida com medicamentos guardados em duas caixas em vieram acondicionados o último par de sapatos e as botinas para os invernos. Complementava o tratamento com a ingestão de uma jarra de água-benta, acompanhada de rezas santas.

Dentre os medicamentos receitados ‘para o resto da vida’, estava um colírio que manteria a saúde dos olhos, ‘desde que não interrompesse o tratamento’. Inicialmente, o diagnóstico foi ‘glaucoma progressivo’. Com o passar dos muitos anos de ‘cuidados do médico para com o paciente (sic)’, o clínico acrescentou uma catarata reversível, pois o implante de lentes artificiais renderia bem mais que os dividendos distribuídos pela indústria farmacêutica.

A chance de o cirurgião ganhar a bolada de dinheiro dilui-se na visão nítida dos ponteiros do relógio marcando os segundos e das baratas e das formigas que o ‘quase cego’ via andarem pelo assoalho da mesma cor que os semoventes.

Ao médico, restava a fonte de renda auferida com a indicação de venda do colírio e a possibilidade de tratar os efeitos colaterais da medicação.

Demorou o colírio apodrecido durante anos nas covas oculares começar a aparecer por debaixo da pele das pálpebras. Inicialmente, formando pequenas bolotas, identificadas pelo médico como ‘verrugas’ a serem cauterizadas.

As cauterizações rendiam mais que os percentuais recebidos na participação das vendas de medicamentos e contribuíam substancialmente para a manutenção da clínica e dos clínicos. Bastava administrar as doses e as substituições dos quimioterápicos por similares de outras marcas ainda não beneficiadas com a doença cultivada.

Tudo ia muito bem, não fosse aparecer alguém com disposição para ler as bulas e identificar os efeitos colaterais que se manifestavam progressivamente ao redor dos olhos do candidato à eternidade.

Esse alguém agiu em silêncio, trocando o conteúdo do frasco do colírio por soro fisiológico, que continuou a ser administrado com a regularidade costumeira. Os edemas diminuíram em número e tamanho. Os tumores logo desapareceram. Em um mês, o ‘câncer’ sumiu, secando as fontes de renda médica.

Então, os louros (e os lucros) migraram para a Igreja, pois o paciente passou a acreditar que “curou as feridas com muita água-benta e orações” diante da televisão com som em alto volume. Bem-vindos os dízimos de quem sofre!

***

Muitos médicos e todos os sacerdotes cultivam a fé de seus pacientes fieis com ferramentas de mídia e adubos espirituais. Constroem suas lavouras e searas nas mentes ingênuas dos que alimentam esperanças de vida eterna. Para ‘fazer o bem’, cobram dízimos bem mais onerosos que a décima parte dos proventos de aposentadoria. A família complementa a dieta medicamentosa com contribuições financeiras e assistências enfermáticas.

Nota: Os acontecimentos são reais; troquei o nome do protagonista.

CURSO SALUTAR (para nossa saúde)

   Dor no braço? Qual deles? Importa saber qual braço? O nome da doença? Quando começa doer? Quando alivia? Por que?
Isso é um problema? Quem resolve esse problema? O médico? Os medicamentos? Anestesiar a dor ou descobrir e evitar a causa?
Como era aos vinte anos? Como começou? Qual a tendência? Como prevenir? Ou é melhor esperar o braço cair? O que fazer? Cirurgia? Consumir enganadores das doenças? Ou mudar as atitudes? Reconhecer o envelhecimento e os limites físicos e orgânicos? O que o corpo nos fala? Melhor calar as reclamações do corpo ou tomar consciência dos desgastes pelo excesso de trabalho, pelo estresse?
Quem nos aposenta? O Governo, as empresas ou nós é que devemos saber o momento de reduzir a carga, de fazer diferente, de fazer menos, nos aposentar aos poucos e, depois definitivamente? Vamos planejar a aposentadoria ou aguardamos os ‘prazos legais’? Depois de aposentados vamos viver nos aposentos ou vamos manter o corpo e a mente ativos?
Posso fazer sem ajuda ou vou pedir e contar com ajuda? Continuo ‘sabendo tudo’ ou será mais produtivo dialogar, ouvir pessoas? Ideias coletivas, trabalho em equipe? Heroísmo individual ou trabalho feito por muitas mãos, com humildade e vontade de cooperar?

HIGIENE DA CUECA

   Nasci e cresci imerso na cultura brasileira: machista, reprodutiva, contraditória e simplista; às vezes, simplória e, até, leviana.
Por procura ou por sorte, fui ouvindo vozes dissonantes, indicações de ingenuidades coletivas que se enraizavam em mim também. Sou cientista amador, movido por curiosidade, em busca de atitudes mais coerentes.
   Lá pela terceira década de vida, um comentário, quase um murmúrio, despertou minha mente para as condições higiênicas de minhas cuecas.
   Quando criança, habitante de um cafundó, minha mãe aproveitava panos velhos, restos de camisas ou sobras de retalhos para confeccionar uma roupa íntima elementar. Ainda menino, fui enviado ao seminário para aprender a ler e a escrever. Ela precisa fazer bonito. Afinal, o filho seria alfabetizado. Então, ela aprimorou o modelo, chegando a algo próximo de uma cueca samba-canção. Só passei a usar cuecas compradas em loja quando ganhei algum dinheiro e saí da vila para estudar e trabalhar em uma pequena cidade.
   Paralelamente, a “privada” dos meus tempos na roça evoluiu, nos seminários, para “banheiro coletivo”; para banheiros de pensionatos e para um banheiro adaptado em minha primeira casa; de madeira, mas, “com banheiro”, se bem que ‘adaptado’. Nos seminários, só o nome de “banheiro”, pois, os banhos semanais dependiam das águas – às vezes, barrentas – dos rios.
   E assim fui evoluindo... Mesmo que – hoje, percebo – ainda faltasse muito para poder me vangloriar da higiene pessoal. Aí, ouvi o cochicho a que me referi em alguns parágrafos atrás.
   Desde menino, depois de urinar, toda vez, eu esperava as últimas gotas abandonarem a glande; me demorava... e as pessoas ironizavam esse tempo extra, insinuando malícias ou ironias. Por mais que cuidasse e usasse estratégias para evitar as gotas de urina restantes, a cueca, vez em quando, manifestava o odor de desasseio.
   Perguntei para algumas mulheres como elas faziam para evitar que a calcinha ‘ficasse temperada de urina’. Estranharam a pergunta e demonstraram preocupação com meu comportamento e com minha masculinidade. Ora, usavam papel higiênico...
Pensei: nunca vi meninos, rapazes e homens usando papel absorvente para secar as gotas temporãs... Porém, mesmo que fosse ironizado, decidi experimentar a técnica sanitária.
   Confesso que sofri zombarias e reprimendas. Afinal, estava violando o código do machismo, posto em risco a segurança dos ‘verdadeiramente homens’ e semeando dúvidas sobre minha opção sexual.
   Outra decisão minha: sentar no vaso sanitário para urinar. Afinal, quem convive comigo merece encontrar o assento limpo e inodoro.
   Na Década de 1980, quando passei a trabalhar para uma empresa em que os mictórios se estendiam ao longo de uma parede, às vezes, passava por humilhação, porque algum colega me via a higienizar a glande e o prepúcio e proclamava essa ‘pouca vergonha’ para debochados colegas e clientes na grande sala de trabalho.
   Também sofria escárnios em estações rodoviárias e aeroportos. Os que viam secando os restos de urina riam com complacência, parecendo se apiedarem dos meus desvios ‘morais’. Entretanto, minhas cuecas ficavam quase livres de imundícies e eu sentia o orgulho de romper um preconceito. Por me sentir menos sujo e mais confortável, fiz desse cuidado um hábito.
   No final do Século XX, embarcava mais uma vez para exercer meu trabalho no extremo-norte do país. Depois de encaminhar minha bagagem e meu embarque, fui aos ‘sanitários’, carregando a ‘bagagem de mão’.
   Como sempre se faz, ao adentrar ao ambiente restrito, lancei um olhar estratégico para a parede em frente, onde se alinhavam os mictórios ... e encontrei um rolo de papel higiênico ao lado ‘direito’ de cada urinol de louça.
   Aquela visão me deixou paralisado. E a estátua viva chorou... Inicialmente, um choro manso, lágrimas escorrendo silenciosamente... Os dois passageiros que lá estavam, ao sair, passaram por mim olhando o chão, compadecidos com meu pranto. Os que vinham entrando me olharam com assombro e um deles veio me consolar, pois, então, eu já me sacudia em soluços.
   Me emocionei porque via realizado um sonho evolutivo; um espaço público tinha sido preparado para atender a uma necessidade daqueles que desejavam privilegiar a higiene íntima em detrimento da glória machista de ‘jamais se comportar como mulher’.
   Tenho consciência de que aqueles rolos de papel higiênico foram colocados ali para atender mais da metade dos ‘homens’ que ali urinassem; que, sozinho, nada teria conseguido. Todavia, eu tinha sido um dos que lutaram em silêncio por aquele benefício. Vibrei de alegria por ter participado de um evento social evolutivo; de ter ouvido o Zeitgeist (“o espírito do tempo”) e contribuído para a higiene das cuecas.
                                              Sítio Itaguá, 08.09.2020

O PORVIR E O POR VIR

Vivo uma vida singela, entre árvores e pássaros, ouvindo a música das cachoeiras, cultivando a horta e o jardim, usufruindo uma aposentadoria tranquila, que possibilita passar algumas horas lendo ou escrevendo. Partilho com a Elisa a parceria nos projetos e o apoio recíproco nas dificuldades. Nada será ‘pra sempre’, por isso, renovamos todos os dias nossas práticas de convivência.

Amanhã …?

Viverei como escritor-sitiante até quando perder o domínio sobre o corpo e sobre a mente; por enquanto, cuido da casa e do corpo e, com a ajuda do Vanderlei, consigo dar conta dos trabalhos de manutenção do Sítio Itaguá. Depois… quem sabe alguém que ame a natureza queira continuar a obra? Acredito que sempre haverá utópicos dispostos a ‘dar a vida pela natureza’.

Morrer…

Se a morte repentina me apagar, minha velhice será breve…. Caso tenha uma morte longa, dependerei de cuidadores que caibam no meu orçamento e de alguém que administre a situação.

Prefiro morrer ‘na luta’, peleando, de pé. Se acaso as pernas fraquejarem, continuarei a caminhar sobre muletas, rodas ou esteiras, pois, enquanto vivo, quero andar.

Pode a mente sofrer períodos de descontinuidade ou ser desligada definitivamente; sei que pode ocorrer. Quando isso acontecer, peço o favor: desliguem o corpo também. Quando perder o ‘eu’ existencial, nada mais terei para pensar, ler ou escrever e a vida corporal será inútil para mim e um estorvo para as pessoas próximas.

Espero que mente e corpo morram simultaneamente; se um tiver que morrer primeiro, que seja o corpo. Quando a mente morrer, o corpo não saberá o que fazer.

SAÚDES

Todas as saúdes
se fundam em relações
humanas cooperativas:
a saúde social.

Quem convive em harmonia
com as pessoas
e com o meio ambiente
vive em paz,
com saúde psicológica.

E o corpo aceito
pela mente terá
saúde física.

Isso, se a Medicina for
considerada Ciência da Saúde,
como opção a nosso alcance.

Se conseguirmos
nos imunizar da
mercantilização das doenças
e do medo de morrer,
teremos, então,
uma morte saudável.

Sítio Itaguá/26.06.22/03:05

AUTOANÁLISE. AUTOCURA.

   Consigo lidar com os limites da mente, do espírito. Basta uma dose de humildade e a firme decisão de aceitar a realidade. Tenho relativo controle sobre o campo psicológico. Invento esperanças, alimento ilusões, cancelo projetos, reinvento motivos para viver. Leituras e escrituras ajudam a curar feridas emocionais. Meditar, conversar, dialogar, … procedimentos que aliviam as decepções e podem fortalecer meu senso de realidade.
   No mundo físico, os limites são mais persistentes, mais teimosos. Mostram força e colocam as soluções depois do horizonte, além das minhas forças. A chuva, a seca, o calor, o frio, o vento, o corpo, … Os elementos naturais seguem o ritmo eterno e fico à mercê deles. Analiso meu corpo, o transportador de minha mente, o habitat de meu espírito. Tento otimizar os movimentos, administrar o funcionamento. Com dificuldades, porque meu corpo envelhece depressa, degenera. Ao contrário da mente, que se renova a cada incentivo, a cada estímulo, a cada carinho recebido, o corpo definha inexoravelmente.
   Autoanálise. Autopreservação. Autofinamento. A mente ativa governando um corpo em constante redução, enfraquecido. Busco meu fim.
   No fim, serei muitas ideias em um corpo frágil. Essa será a mais perfeita das imperfeições. A perfeição possível.