IRMÃOS NÃO-IRMÃOS

Sile soltava gritos de alegria e agitava os braços em direção ao pequeno pássaro de papel colorido que balançava pendurado por um fio. Com a mão direita, segurava um coelhinho de vinil verde claro com tons de branco nas covas das orelhas. De quando em quando, aquietava e, segurando o brinquedo com as duas mãos, mordiscava as orelhas de plástico para coçar as gengivas em que os primeiros dentes forçavam saída.

O berço ainda era seu mundo. Passava as horas se entretendo com tudo que se movesse ao alcance de seu olhar. Depois, na escuridão do sono, revia as cores dos brinquedos, as paredes, as frestas de céu e as árvores próximas da janela.

Porém, mais que as imagens, os sons despertavam nela viva curiosidade: vozes conhecidas, como as da mãe e do pai, barulhos que se repetiam diariamente e o gorjeio dos pássaros no quintal. Sentia prazer ao ouvir as cantigas de ninar e até fechava os olhos para escutar melhor.

Pela manhã, quase todos os dias, algumas vozes diferentes entravam pela janela, vindos sempre da mesma direção; menos harmoniosas e muito mais vibrantes que os gorjeios dos pássaros, quase uma gritaria. Um cantar individual, que, às vezes, recebia a companhia de outros cantares, os quais poderiam chegar a uma cantoria com muitos timbres simultâneos e desorganizados. Ouvia essas cantorias pela manhã, algumas durante a tarde e nenhuma durante a noite. Tinha ouvido também vozes semelhantes, porém, muito mais agudas e aceleradas, como se fossem alertas ou pedidos de socorro.

Ao ouvir esses cantares, ficava em silêncio, só escutando, procurando entender.

Do berço, Sile contemplava as paredes, as janelas e as portas sem poder de ir até elas. No entanto, quando conseguiu se manter sentada sem apoiar as costas, foi posta sobre uma manta estendida no assoalho. Então, sem as grades do berço, Sile viu espaços abertos. Aos poucos, começou a explorar a área: se espichou para alcançar um brinquedo que caíra para além do alcance do braço, deitou de bruços, apoiou as mãos no chão, arrastou as pernas, … por enfim, engatinhou.

Sile ampliava o mundo dela. Porém, as paisagens continuavam menores que seus interesses e o canto dos pássaros continuavam vindo de um lugar que não via. Sile se sentia atraída pelas cantorias; principalmente, por aquelas mais fortes, vindas sempre da mesma direção.

No dia em que foi levada no colo a passear pelo quintal, ouviu de perto uma melodia e conseguiu ver quem cantava: era bem parecido com o passarinho dependurado sobre o berço, mas… movia as asas e o bico.

Foram adiante e ela conheceu as galinhas. Soube que eram galinhas porque disseram que eram galinhas. Eram passarinhos muito grandes, que pareciam assustados com a presença dela. Naquele momento, Sile se apaixonou pelas galinhas.

Passaram-se os meses e Sile começou a andar com as próprias pernas. Primeiro, só até a cerca colocada na porta para impedir que ela fugisse para o quintal; depois, quando já conseguia equilibrar o corpo e andar sobre as irregularidades do pátio, até correu na vã ilusão de que poderia pegar os passarinhos.

Sile cresceu e, com liberdade para explorar o quintal, ia até a tela que prendia as galinhas e ficava falando com elas. No início, elas ficavam assustadas e respondiam com gritos muito diferentes dos gritos das pessoas. (Sile nem percebia que ela também só falava repetições de dizeres incompletos…)  Esse passou a ser seu divertimento preferido: a casa das galinhas.

Num final de tarde, foi com a mãe recolher os ovos que estavam nos ninhos e lembrou que, na cozinha, havia muitos ovos semelhantes e quis saber se todos tinham sido levados dali. Daquele dia em diante, galinhas e ovos passaram a ter uma relação entre si.

Quando já corria com desenvoltura, pulava e até subia nas árvores, Sile cismou com uma galinha que passava o dia todo no ninho e, ao invés de cantar, parecia que chorava. Perguntou ao pai, que lhe disse que ela estava choca. O que seria estar choca? Por que ela chorava?

Parecia ser acontecimento muito importante, porque os pais prepararam com esmero um ninho dentro de uma gaiola, com palhas bem limpas e muitos ovos. Além de visitar várias vezes ao dia o cercado e a casa das galinhas, Sile passou a espiar por uma fresta a galinha choca, sempre muito silenciosa e compenetrada.

Passadas três semanas (Sile aprendera a contar os sábados que passavam…), ela encontrou a choca muito agitada, conversando uma conversa muito estranha e enfiando a cabeça pelo meio das penas, como quem mexe com algo dentro de uma gaveta.

Correu contar aos pais o que vira. Eles disseram que os pintinhos estavam nascendo. Pintinhos? Nunca tinha ouvido essa palavra… O que seriam pintinhos? Naquele dia, Sile soube e foi difícil exigir que se afastasse de perto deles; teve dificuldades para almoçar, para tomar banho e, principalmente, para dormir. Viveu dias de agitação.

Quando conseguiu aquietar, viu que os pintinhos eram muito diferentes uns dos outros; de cores diferentes, alguns eram menores, outros maiores, alguns mais quietos, outros muito agitados, um deles, muito curioso.

Foram dias acompanhando a nova família, os pequenos correndo pela gaiola, aprendendo a comer e, depois, correndo para debaixo da choca, chorando de frio. A choca falava com os filhos e eles pareciam entender. Sile se esforçava para compreender…

Os pintinhos cresceram bem rápido, as penugens foram cobertas por penas mais firmes e as cores foram diferenciando ainda mais um do outro. Sile olhava sem entender: só um se parecia com a mãe, que era preta. Tinha pinto branco, pinto carijó, pinto vermelho, pinto amarelo, pinto de duas cores, pinto de três cores, … Tinha até um sem penas no pescoço e um sem rabo, que o pai chamava de Suro, porque ele não tinha penas grandes no lugar do rabo. Ah! Um deles tinha penas até os pés. “Deveriam ser todos da cor da mãe”, pensava Sile. Perguntou ao pai e perguntou à mãe e eles disseram que era assim mesmo. Não podia ser; deveria haver uma explicação…

Passados seis meses, nenhum deles se parecia com o pintinho do primeiro dia; foram mudando de penas, de tamanho e até de comportamento. Uns ficaram grandões e briguentos; o pai disse que esses eram galos.

Bem mais devagar que os pintinhos, Sile também foi crescendo e, de certa forma, trocando de cor, pois sempre ganhava roupas novas de outras cores e de outros tipos. Começou a frequentar a escola e, depois de se acostumar no meio daquelas crianças, percebeu que elas eram muito diferentes uma da outra, mesmo que o uniforme fosse o mesmo.

Depois do jantar, revelou aos pais a descoberta. Disseram que cada um era parecido com o pai ou com a mãe dele; como não eram irmãos, normal que fossem diferentes. Tudo bem! Os pais deveriam saber mais que ela… Mas… os pintinhos eram irmãos e também eram diferentes um do outro… Os pais sorriram entre si e explicaram: nós escolhemos um ovo de cada galinha que vive no galinheiro e os pintinhos, que hoje já estão bem grandes, ficaram parecidos com a mãe deles. Ué! Então, a choca preta não era a mãe de todos eles?

Sile ficou indecisa e aquietou por uns dias. Observava os galináceos e observava os colegas de escola. Concluiu que não eram irmãos. Todavia, galináceos e crianças se comportavam como se fossem irmãos. Desistiu de interrogar os pais sobre essas grandes dúvidas.

Foi quando ela descobriu que um colega de sala era ‘filho de criação’. Então, pensou muito sobre filhos criados pelos pais e ‘filhos de criação’. Como seria isso? Ficou com vergonha de perguntar para os professores e nem pensava perguntar isso para os pais. Precisava resolver essa questão sem a ajuda de gente grande: uma família poderia ser formada de irmãos e de não-irmãos?

Quanto mais analisava, mais diferenças apareciam. Percebeu que mesmo irmãos poderiam ser bem diferentes entre si.

Você quer ajudar Sile a resolver esses enigmas?

Escrito das 18 às 20 horas do dia 17.04.2023 e reescrito em julho/23.

ESPÍRITOS

ÁDVENA

A fruta estava madura, no ponto. A polpa estava deliciosa. E as sementes, muito semelhantes entre si, despertaram no homem a vontade de plantar, de ver as pequenas folhas emergirem, de admirar a planta tenra, de apreciar a folhagem juvenil e de saborear novos frutos, quem sabe?

Movido pelo impulso vital e revivendo sua infância na roça, contemplou as sementes e cedeu ao impulso de colocar algumas para germinar. Durante dias, aguardou a germinação dos óvulos, que iam rompendo os tegumentos até as radículas e a plúmulas surgirem dos embriões. A seguir, acalentou o desenvolvimento das plântulas.

Porém, ao derredor da morada humana, a terra e a Terra haviam sido dominadas e subjugadas por alvenarias e por asfaltos, sem um palmo de solo natural para receber árvores em crescimento.

Da janela, ele contemplava a rua quando percebeu um pequeno buraco ainda não cimentado após o conserto da calçada. Sorrateiro, a olhar para os lados temendo policiamento, ele cavou a terra e, em meio à esterilidade urbana, plantou uma das pequenas árvores.

A partir desse dia, sua função principal era vigiar e regar a árvore-criança com desejos de vicejamento. Temia que os cães satisfizessem as necessidades fisiológicas em cima e ao redor, que as formigas atacassem as folhas tenras, que algum funcionário público ou algum vizinho ‘limpasse’ a calçada. Fatal seria se um pneu esmagasse a vida em seu início.

Vencidos todos esses ‘inimigos’, ele e a árvore comemoraram a preservação da vida. Aos poucos, o arbusto solitário passou a ser ponto de referência, para a família e para os vizinhos. Todos amavam e defendiam a arvoreta, dos perigos da poluição, dos vândalos, das bicicletas e dos pisões. Confiavam que a vida venceria a esterilidade.

Iniciava um longo período de cultivo para que a árvore crescesse livre e sadia. Mesmo com toda a atenção e o carinho do homem, havia dificuldades. Enegrecidas pela fuligem oleosa dos motores e pela poeira dos pneus, as folhas tentavam respirar o gás carbônico liberado pelos pulmões dos estressados que corriam atrás de prazeres imediatos e totais. Poderiam assim contribuir para a redução do ‘efeito estufa’ E as pessoas poderiam sentar à sombra refrescante.

Os cães depositavam líquidos e sais alimentares. Entretanto, os excrementos liberavam odores desagradáveis. A árvore precisava de calor para seu metabolismo; porém, o sol escaldante cozinhava suas raízes sob as lajes de concreto.

Para viver, as plantas se renovam, soltando as folhas caducas e produzindo ramos e folhas novas, uma ressureição cotidiana e contínua. Então, as pessoas esqueciam ‘do grande amor pela Natureza’ e maldiziam as folhas caídas, elementos estranhos naquela perfeição urbana. Desconheciam (ou já tinham esquecido) que as folhas mortas podem virar alimento para as plantas vivas. As pessoas preferiam controlar a harmonia visual.

E mesmo os frutos incomodavam; os humanos preferiam devorar guloseimas açucaradas e bebidas energéticas, turbinadas. Por isso, os frutos amadureciam e caiam ao pé da árvore solitária, atraindo moscas. Havia também, o risco de quem passasse escorregar, cair, se sujar, sofrer fraturas. E as sementes, inconscientes da indignação do povo, começavam a germinar nas gretas das pedras e dos blocos de concreto, ameaçando entupir os bueiros e causar transtornos. A germinação das novas sementes preocupava os humanos que teriam de trabalhar muito trabalho para vigiar, cuidar, arrancar, limpar.

A árvore espalhava ‘problemas’ ao derredor. Então, as intrigas cresceram em volume e acidez contra quem encontrou, cuidou e plantou a semente. Acionados os ‘órgãos públicos’, a ‘Justiça’ montou o competente processo jurídico e os políticos ‘da oposição’ aproveitaram o alarido da mídia para fomentar a campanha eleitoral. Diversas polícias precisariam agir.

A árvore tinha ganho aversão comunitária e precisava ser erradicada, porque desassossegava a urbe. Nada mais incômodo que a ‘vida selvagem’ ocupando os exíguos e caríssimos espaços civilizados, sobrecarregando os serviços públicos e atrapalhando ‘a mobilidade urbana’.

Por mais lógico e simples que fosse arrancar uma árvore, fez-se uma guerra, com os ‘defensores da Natureza’ agredindo a todos que pretendessem ‘limpar a cidade’. Ecologistas que jamais haviam plantado uma semente invadiram as redes sociais e as ruas para vociferar contra os ‘agressores da Vida’. Paradoxalmente, ambos os lados da contenda gritavam ameaças de mortes. Todos tinham razão e ninguém tomava uma gota de senso de realidade.

Foram mobilizados os tribunais supremos e os exércitos policiais. Os julgamentos, transmitidos em tempo real, entretinham a multidão esquecida de seus afazeres e de seus problemas pessoais. Então, não mais a árvore e, muito menos, a semente, eram o foco do problema. A importância da árvore passou a ser as funções sociais que ela sustentava: os tribunais, as câmaras, as assembleias, as ONGs, os influenciadores, os jornalistas e os sindicatos.

Apesar de todos os transtornos para a perfeição urbana, a árvore teria de permanecer incomodando, porque um vegetal perdido na aridez urbana conseguia manter, em equilíbrio dinâmico, uma rede de descontentamentos úteis e lucrativos para os dois lados da contenda. As ‘graves consequências’ de um louco que fez germinar as sementes de uma fruta saborosa mantinham as pessoas vivas e orgulhosas de suas importâncias.

ARBÍTRIO CONDICIONADO

Livre arbítrio é ilusão; somos seres circunstanciados, influenciados e pressionados por condições externas e por vontades dos outros. Às vezes, somos cobrados por quem desconhece a realidade íntima em que vivemos; de forma similar, todo texto é escrito dentro de um contexto e lido no contexto de cada leitor, podendo ser incompreendido e depreciado.

O modo como vivemos decorre de escolhas. E nossas escolhas dependem de outras escolhas. Somos pouco autônomos; dependemos dos outros… que, sem essas análises filosóficas, sem diálogo franco, colaboram ou cobram.

Longe de ser classificação entre o bem e o mal, entre o que é bom e o que é ruim, entre acertar e errar. São apenas encruzilhadas, dilemas. Nossas escolhas geram desesperanças (Soren Kiekegard), pois, ao escolher um dos caminhos, não mais esperamos benefícios dos caminhos não escolhidos.

Escolher é impreciso, aleatório. Ou seja, escolhas são atitudes subjetivas; às vezes, até irracionais. Todavia, as escolhas alinhavam nossas vidas.

Para evitar esses ‘jogos’, há algum tempo, deixei – intencionalmente – de ser reativo, de agir conforme as ações dos outros; passei a agir de acordo com meus princípios éticos.

ENXERGAR O QUE VÊ

Quando compramos o direito de habitar o Sítio Itaguá, em 2005, havia uma ‘casa de madeira de lei’, assoalho de tábuas alternadas de canela-preta e de peroba-rosa; lindo de se ver! Toda a armação do telhado em peroba-rosa, com ‘tesouras’ encaixadas no capricho e telhado do tempo das sesmarias, de telhas-calhas feitas a mão. Com janelas e a porta da frente “fabricadas em marcenaria”, porém, as portas internas foram “feitas em casa”.

Casa construída em 1977, pelo Antônio Vieira e pela Helena Felisbino, irmã do Lauro, casado com Maria Jovina da Cruz.

A água potável descia da montanha, descansava numa caixa sobre uma torre de tijolos cimentados em cruz até a altura de três metros e meio, assentada sobre uma grande pedra firme. Descia dali por canos de PVC para abastecer a cozinha e o banheiro. A torre original, em tijolos irregulares ‘de quatro furos’, recebeu ao lado, colada a ela com massa de cimento, uma torre mais recente (2003?), de tijolos ‘com seis furos’, assentada em parte (só em parte…) sobre uma pedra menor, talvez colocada ali. Nunca entendemos o porquê dessa maracutaia.

Uma das dificuldades que enfrentávamos com a casa de madeira era o pretume sobre a tinta que cobria as tábuas das paredes. Renovamos a pintura e a situação piorou, até. As portas internas, maciças, estavam revesadas, além de vários problemas no banheiro. A ameaça de cupins também assustava. Por isso, dois anos depois, construímos uma casa totalmente em alvenaria e com janelas de vidros temperados, com exceção das portas internas.

Iniciamos reformando o capril construído pelo Gasparino de Souza Mateus, onde foi instalado um vaso sanitário para o uso dos construtores contratados. Com a inauguração da ‘casa nova’, em 2007, a velha caixa d’água passou a servir apenas para essa latrina e para a torneira do tanque ‘de fora’. A partir dessa data, durante dezessete anos, cuidamos dessa caixa d’água antiga e alta; alta para que, entre 1977 e 2003, a água chegasse com pressão à casa antiga, distante quinze metros.

Em 2024, percebemos que a torre ‘nova’ estava descolando da torre velha, ameaçando desabar com a caixa d’água. Inicialmente, pensamos que teria sido a força do vento. Depois, percebemos que a base havia se soltado da pequena pedra e afundava o lado oposto na terra.

Colocamos uma escorra provisória e, em seguida, colhemos um bambu-chinês bem maduro para garantir a sustentação. Estávamos nessa lida quando me ocorreu que as saídas de água em uso estavam dois metros abaixo; estávamos mantendo um ‘monstro’ desnecessário e perigoso. Então, deixamos a água escorrer, retiramos a torre em queda, cortamos a outra pela metade e, sobre ela, recolocamos a caixa d’água sobre essa base baixa.

Com essa modificação, aproveito aprender sobre as dinâmicas existenciais. Ou, antes, sobre as dificuldades de ver o óbvio, de mudar na mudança. Durante dezessete anos, enfrentamos dificuldades por algo desnecessário, perigos e trabalhos que poderiam ter sido evitados desde aquela época. Trabalheira, acidentes, riscos.

PIOLHENTO

Em Ipoméia, os adultos contavam e repetiam a história da “Véia Pina” e do “Celestino Pancada” toda vez que uma criança insistisse em implicar com os colegas ou na prática de maldades sem nexo. A história era usada como fábula, com função moral de corrigir comportamentos.

Nos tempos atuais, seria preconceito com ela e boas reflexões sobre o nome dele: Celestino, porque ‘merecia o céu’ de tanta pancada que recebeu na vida? Piolhento, dizia ela.

Relatavam um evento fatídico que ficou impresso em nossas memórias. Nunca lembrei de perguntar quem de fato eram, se tiveram filhos, do que viviam. Nem mesmo o nome civil completo dos dois. Lembro apenas que a casa deles ficava na barranca da margem direita do Rio Preto, a meio caminho entre a vila e o moinho. Era uma faixa estreita de chão batido e varrido, com uma casa de madeira escurecida pelas intempéries durante muito tempo.

Diziam que ela vivia implicando com o marido, debicando, enticando e chamando de piolhento. Diziam que a vida conjugal deles sempre teria sido assim: ela depreciando o marido e ele suportando tudo calado.

Naquele dia, ela teria chamado e apontado para a algo invisível no meio do rio. Ele teria olhado o ponto apontado, com atenção, forçando as vistas. E ela, aproveitando a concentração dele no inexistente apontado, embalou carreira pra empurrar o marido pra morte. Ele, porém, escutou os passos acelerados dela e, no momento que seria empurrado, saiu de lado, deixando que a mulher passasse a toda e caísse na água profunda do rio.

Ela, mesmo submersa e se afogando, ainda punha as mãos pra fora da água e fazia o gesto de quem esmaga piolho entre as unhas dos polegares.

GRAMÁTICA PESSOAL

Gramática para uso pessoal de Mario Tessari.

Especialistas em gramática assumem o papel de policiais e avocam para si o direito de disciplinar as escritas dos usuários da Língua Portuguesa. Para sorte dos falantes, ainda há alguma liberdade na prosódia, na ortoépia e na ortofonia.

A maioria dos gramáticos categoriza todos os sinais impressos como ‘ortográficos’. A Ortografia disciplina a grafia ‘correta’ das ‘palavras’, usando as letras do alfabeto latino conforme um conjunto de regras estabelecidas pela gramática normativa. Algumas palavras recebem sinais gráficos complementares usados para indicar valores fonéticos específicos para determinadas letras: os acentos (agudo, grave ou circunflexo), o cedilha, o til e o trema; o hífen une elementos de palavras compostas.

No entanto, os sinais ‘de pontuação’ (vírgula, ponto, dois-pontos, ponto-e-vírgula, ponto de exclamação, ponto de interrogação, reticências, parênteses, aspas e travessão), criados para facilitar a leitura e o entendimento das ideias, são utensílios da Sintaxe (conjunto de regras da estrutura linguística) e da Análise Sintática (estudo das funções das palavras e das orações em uma frase).

Por exemplo, a vírgula pode substituir a conjunção ‘e’ na função de unir “vocábulos ou orações de mesmo valor sintático” [Dicionário Eletrônico Houaiss]. Ao invés de escrevermos: ‘Anna e Marcos e Tadeu estão lendo essa análise.’ e ‘José preparou a terra e plantou as sementes e adubou as plantas e colheu boa safra.’, podemos escrever ‘Anna, Marcos e Tadeu estão lendo essa análise.’ e ‘José preparou a terra, plantou as sementes, adubou as plantas e colheu boa safra.’, evitando, assim, a repetição excessiva da conjunção ‘e’.

A Ortografia estabelece regras ‘oficiais’ de como as palavras devem ser escritas, diferenciando ‘escritas populares’ de ‘escritas eruditas’. Porém, não prescreve padrões de sintaxe, de textos ou de estilos literários.

Os professores de gramática são formados por academias científicas com a responsabilidade de professar a ‘pureza gramatical’ e as academias literárias escolhem seus membros dentre os que obedecem a padrões eruditos, como a ortografia e o formato dos textos (prosa, poema, conto, novela, romance).

Os linguistas analisam a funcionalidade da linguagem falada e/ou escrita, a evolução e a diversificação dos sistemas de representação do pensamento humano.

PARELALISMO SINTÁTICO

Eu dou importância relativa às regras gramaticais e, em alguns pontos, discordo de gramáticos, de acadêmicos, de editores e de críticos literários. Ao invés de perder tempo com arbitrariedades ‘legais’, estudo, analiso e sigo os princípios universais da Linguística, das lógicas estruturais das palavras, das frases e dos textos, conforme a finalidade a que se destinam.

Para meu uso pessoal, com o objetivo consciente de facilitar para o leitor o acesso direto e sem sofrimento às ideias que coloco em palavras, releio várias vezes o que escrevo, peço opinião de leitores exigentes, aguardo a ‘maturação’ dos textos e, só então, publico. Tento, desse modo, evitar ‘abortos literários’.

Um dos meus cuidados está no paralelismo sintático, como eu explico a seguir.

Analisando as frases:

  1. Estão convocados Maria e Paulo. Estão convocados a Maria e o Paulo.
  2. Ana e Ivo estudam a linguagem escrita. A Ana e o Ivo estudam a linguagem escrita.
  3. Cesar gosta de ler e de escrever.

Nos três casos, há aglutinação de orações ligadas pela conjunção ‘e’, conectivo que correlaciona dois termos na mesma oração ou duas orações de um mesmo período.

As orações ‘Está convocada Maria.’ e ‘Está convocado Paulo.’ foram sintetizadas em ‘Estão convocados Maria e Paulo.’ De forma análoga, ‘Está convocada a Maria.’ e ‘Está convocado o Paulo.’ foi reduzida a ‘Estão convocados a Maria e o Paulo.’ ‘Ana estuda a linguagem escrita.’ e ‘Ivo estuda a linguagem escrita.’ Então, ‘Ana e Ivo estudam a linguagem escrita.’

Cesar gosta de ler e, também, gosta de escrever. Numa só oração, ‘Cesar gosta de ler e de escrever’. Sem o ‘de’ (sem paralelismo sintático: ‘Cesar gosta de ler e escrever.’), pode ser que ‘Cesar gosta de ler e escrever virou consequência’. Ou que ‘Cesar gosta de ler e escrever ficou mais fácil para ele’.

Em ‘Estão convocados a Maria e o Paulo.’, a presença dos artigos definidos indica que as duas pessoas (ou personagens) são conhecidas (e reconhecidas) pelo escritor e pelo leitor. A ausência dos artigos ‘a’ e ‘o’ deixa em aberto a identidade dos sujeitos. Por outro lado, podemos usar artigos indefinidos: ‘Estão convocados uma Maria e um Paulo.’ São opções, por questão de necessidade, de escolha ou de estilo.

Porém, escrever ‘Estão convocados a Maria e Paulo.’ indicaria que o escritor alterna as regras conforme ‘sua vontade’; óbvio, se estiver consciente de como escreve… ‘Está convocada a Maria.’ e ‘Está convocado Paulo.’; um, determinado e o outro, não. Parece que a frase continuaria: ‘Está convocada a Maria e Paulo sabe disso.’

Você já viu escrito ou ouviu dizer “Gosto disso e aquilo.”? É normal ler ou ouvir “Gosto disso e daquilo.”, porque é a lógica linguística, a linguagem natural, sem afetação. Caso contrário, parece que a frase continuaria, como em “Gosto disso e aquilo me repugna.”

A PONTUAÇÃO NA PRÁTICA LITERÁRIA

Posso usar dois-pontos (:), ponto-e-vírgula (;) ou ponto e vírgula (. e ,). Na prática, uso vírgula e ponto (, e .), nessa sequência. Nas frases, uso vírgula para separar ideias que complementam a oração principal, ponto-e-vírgula para incluir ideias divergentes ou paralelas, ponto para indicar que completei o enunciado e ponto-final para encerrar o assunto.

Ao afirmar que o ponto-e-vírgula (;) é “sinal de pontuação que indica pausa mais forte que a da vírgula e menos que a do ponto”, o dicionarista obrigaria o gago a colocar ponto-e-vírgula a cada ‘pausa gaguejada’, além de uma procissão de vírgulas, para as pausas ‘menos fortes’. O especialista deixa outro desafio: mensurar as pausas (“mais forte que a da vírgula e menos que a do ponto”). Imagino que as pausas possam ser breves ou longas. Como seriam pausas fracas ou fortes?

Mais preocupantes ainda são as afirmações que a vírgula é uma “ligeira pausa para respirar”. Provavelmente, esses autores sejam biólogos preocupados com nossa fisiologia respiratória.

RETICÊNCIAS

As reticências, além das funções técnico-linguísticas, podem ser usadas como recurso estilístico. Vai depender se as reticências são dúvidas da palavra… ou indecisões das ideias …

No caso, estou indicando ceticismo, dissimulação, hesitação, indeterminação da palavra… ou a omissão de algo que deixo de escrever para que o leitor continue … a frase por conta dele. Ou seja, deixo o leitor decidir como continua a ideia.

Também uso reticências para indicar uma ‘pausa emocional’ (aposiopese) ou uma insinuação.

Nesses trechos de Suçurê, aparecem reticências em:

“— Vejo que a aliança ainda está no dedo… Logo … para o povo daqui, a situação continua na mesma: só mistério.” (P. 485)

“— Mesmo assim, o Icobé vai ficar sozinho e não sabe lidar com o gado; a gente vai deixar tudo organizado, pra ele apenas atender alguma eventualidade. Por falar nisso, seria bom se você, Icobé, pudesse dar seu passeio de reconhecimento agora pela manhã porque cismo de saber que você saia por aí sozinho… Pode lhe acontecer algo e … – opinou Genuíno.

— Boa ideia! Vou encilhar o Zaino e dar uma volta pela invernada. Mas não demoro… – concordou Icobé.” (P. 504)

“— Tem que ver… – ponderou o capataz. Eu devo me afastar por uns dias… O João não pode ficar solito por muito tempo…

— Si desse … fais tempo qui num falo c´a mana Maria Rosa … – choramingou o Silvino.” (P. 505)

“— Não sou eu que procuro antes de ser chamado. São eles que me perturbam com vozes estranhas…

— Estranhas, porém bem audíveis, claras, pois indicam quem é e o local exato em que estão …” (P. 605)

O USO DA VÍRGULA ANTES DO PRONOME RELATIVO ‘QUE’

1. Os senadores que foram eleitos no último dia 15 tomarão posse hoje.

2. É difícil encontrar os gatos que fogem de casa durante a noite.

3. O povo cobra dos senadores, que foram eleitos democraticamente, a responsabilidade política.

4. Os gatos, que são venerados desde o tempo dos faraós, preferem viver livres, sem coleiras.

Nas duas primeiras frases, o pronome ‘que’ indica a delimitação dos sujeitos, através de oração subordinada restritiva, com função de adjunto adnominal da palavra antecedente, indispensável para expressar o sentido pretendido. Sem vírgula; ligadas diretamente aos sujeitos das orações.

1a. Apenas os senadores que foram eleitos no último dia 15 tomarão posse hoje.

2a. É difícil encontrar apenas os gatos que fogem de casa durante a noite.

Nas duas últimas, o pronome relativo ‘que’ é usado para iniciar uma explicação (oração subordinada adjetiva explicativa); oração opcional que acrescenta uma informação complementar, com características dos sujeitos, que continuam os mesmos. Deve ser escrita ‘entre vírgulas’.

3a. O povo cobra dos senadores[, os quais foram eleitos democraticamente,] a responsabilidade política.

3b. O povo cobra dos senadores a responsabilidade política.

4a. Os gatos[, os quais são venerados desde o tempo dos faraós,] preferem viver livres, sem coleiras.

4b. Os gatos preferem viver livres, sem coleiras.

USO DE LETRAS MAIÚSCULAS

Escrevo siglas em letras maiúsculas. Uso letras maiúsculas para iniciar nomes próprios; tecnicamente, substantivos próprios. Escrevo Antônio (nome da pessoa) e os antônios (todas as pessoas de nome Antônio); o Brasil e os vários brasis; o Estado (substituto de substantivo próprio) e os estados (substantivo usado para designar nações em comum).

Uma palavra composta é um vocábulo resultante da junção de duas ou mais palavras. Se uma palavra composta exercer a função de substantivo próprio, deverá ser grafada com letra inicial maiúscula: Serra-abaixo, Serra-acima, Baia-norte, Baia-sul, …

EXEMPLOS DE USO DE HÍFEN

Abelha-sem-ferrão é palavra composta (substantivo) que nomeia abelhas com uma característica específica: uma espécie de abelha. E abelha sem ferrão é locução substantiva usada para designar a abelha que perdeu o ferrão.

Se for nome da espécie, deve ser escrito ‘uruçu-amarela’. Se determinada espécie de uruçu tiver indivíduos uns pretos e outros amarelos, haverá abelhas uruçu pretas e abelhas uruçu amarelas. Mirim-guaçu preta e mirim-guaçu amarela; manduri preta e manduri amarela; porque as espécies são denominadas mirim-guaçu e manduri, respectivamente.

É questionável que os meliponíneos não possuam ferrões; todavia, com certeza, não ferroam. Logo, a locução deveria ser: abelha que não ferroa. Abelha-sem-ferrão ou abelha-da-terra: espécie de abelhas dos gêneros melípona, trigona, … Uma abelha do gênero Apis que deixou o ferrão em alguém será uma ‘abelha sem ferrão’. Se os chifres de um boi forem decepados, teremos um ‘boi sem chifres’. Os que já nascem mochos serão bois-sem-chifres.

Batata-doce é uma espécie vegetal; batata doce pode ser uma batata adoçada. Boca-de-leão: uma flor; boca de leão: abertura inicial do tubo digestivo do ‘rei dos animais’. Copo-de-leite nomeia uma flor e ‘copo de leite’ é uma porção de leite que pode estar num copo ou em outra vasilha; a expressão se refere à quantidade do alimento. Ponto-e-vírgula nomeia um sinal de pontuação; ponto e vírgula são dois sinais de pontuação.

Mesmo depois da última Reforma Ortográfica, as palavras compostas que designam espécies animais ou vegetais continuam sendo grafadas com hífen: bem-te-vi, copo-de-leite, boca-de-renda, porco-bravo, porco-do-mato, aroeira-folha-de-salso, uruçu-boi, formiga-açucareira, formiga-cabeça-de-vidro, …

SEO OU SEU

A palavra ‘seu’ é pronome possessivo.

Eu uso ‘seo’ para traduzir a pronúncia caipira de ‘senhor’. A fala coloquial abrevia as palavras, ‘comendo letras’, economizando tempo e voz, através de síncopes, pronunciando apenas as ‘essências’ da palavra. Maior / mor, senhor / seo, está / tá, estive / tive, em boa hora / embora, … Logo, ‘seo’ – síncope da palavra senhor – é pronome de tratamento. Da mesma forma, ao transcrever falas, uso sinhá ou siá, para designar senhora. Quem escreve ‘seu’ José, deveria, também, escrever ‘sua’ Maria em vez de escrever ‘dona’ Maria.

ETCÉTERA

Et cetera, do Latim, significa “e outras coisas, e assim por diante, …”

A abreviatura (etc.) já vem precedida do conetivo ‘e’ (et). Logo, não uso vírgula antes de ‘etc’. Aliás, uso reticências ao invés de usar etcétera. Deixo o ‘et cetera’ para os romanos. Sou de época mais recente.

ASPAS

Uso aspas duplas para indicar trecho de outro autor ou de outro texto meu. Para destacar palavras ou expressões, uso aspas simples, caracteres em tipo itálico ou palavras em caixa-alta.

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APRENDER PRATICAR SABER

       APRENDER PRATICAR SABER

Você sabe ler?

Sei, sim senhor.

Sei.

Mais ou menos.

Não sei, não.

Pergunta banalizada na boca

de quem julga saber;

de quem julga o saber.

Pergunta impensada;

resposta protocolar

cumprindo formalidade.

A maioria que aprendeu a ler

pratica apenas leituras rasas

de placas, de preços e de moedas.

A maioria lê o de sobrevivência

e o de interesse, o de lucro.

Mas, poucos praticam

analisar ideias escritas.

Leituras ativam memórias,

geram sentimentos,

traduzem o que foi escrito,

aceitam, acrescentam ou restringem,

mudam a cor dos significados.

Inventar ideias a partir de

ideias gravadas no papel…

Quem é que pratica?

Desafios físicos e aventuras

são jogos nas idades de vigor.

Quais as dinâmicas na velhice?

Quando o corpo pouco age e reage?

Feliz quem sabe aprender na velhice

a praticar jogos mentais e se encanta

com segredos que as letras revelam.

Mais feliz ainda quem exerce o desafio

de esconder ideias nas dobras das palavras.

Quem sabe proclamar, na velhice,

a sabedoria construída aos poucos?

Quem consegue manter a mente jovem?

MODA LITERÁRIA

 Nesse início do Século XXI, despontam modismos no mundo literário, como “simplificar as frases”, engolir letras (esse, já bem conhecido…), engolir palavras, não usar vírgulas (porque “nunca estudou Análise Sintática” e nem imagina que elas são ferramentas da sintaxe e não, regras ortográficas…) e americanizar o modo de escrever.

 Pode o leitor argumentar que eles usam ‘elipses’ e ‘síncopes’… Tenho convicção de que esses ‘confrades’ nem mesmo ouviram falar e muito menos pesquisaram para saber o que sejam análise sintática, elipses literárias e síncopes morfológicas ou as diferenças entre gramática e linguística.

 Um escritor que eu valorizo me criticou por escrever ‘seguir em frente’. “Só se pode seguir em frente. Então, basta escrever seguir.” Evidente que ele prefere seguir os ditames da máfia jornalística e da indústria editorial, sem analisar os significados do verbo ‘seguir’, pois, posso seguir até uma minhoca andando em zigue-zague… indo para os lados ou indo para trás.

 Esses mesmos editores e escritores consideram que eu seja um louco por analisar os vocábulos em dicionários e por pesquisar na WEB, sempre em busca de aperfeiçoamento do que escrevo, para escrever melhor, com maior clareza e mais objetividade, buscando facilitar o trabalho do leitor. Para ler os textos desses modistas, o leitor terá de investir tempo, energia e paciência para interpretar os enigmas, restando pouca vontade e nenhum interesse nas ideias ‘encriptadas por modismos’.

 Para completar minha perplexidade, os ‘intelectuais’ delegam à ‘Inteligência Artificial’ a tarefa de escrever poemas, contos e romances. Eles concluíram que escritores (pessoas) são incapazes de ler a realidade e devem ser arquivados em museus ou abandonados em sítios arqueológicos.