A PENÚLTIMA ORAÇÃO DO PAI-NOSSO

O pai-nosso é um texto composto de dez orações sintaticamente coordenadas e subordinadas; muito rezadas e reoradas.

Começa com “Pai-nosso, que estais no céu, santificado seja vosso Nome, …”. Exprime o desejo de que seu Nome seja santo; não ele próprio (deus), apenas o Nome. Muito menos o rezador…

“Pai-nosso, que seja santificado vosso Nome” é oração grávida, pois, traz, dentro de si, a oração subordinada adjetiva explicativa “que estás no céu”, esclarecendo que o orador (aquele que ora) está se dirigindo ao pai divino e não ao pai pecador que mora em casa. Importante ressalva, porque os ‘órfãos de pai’ podem ter dois pais no céu: um divino e um cristão. Isso, se o pai terreno, antes de morrer, se arrependeu dos pecados… Ou, talvez, esteja pedindo ao pai divino que corrija o pai humano nada santo, porque comete muitos pecados.

“Venha a nós o vosso reino e seja feita vossa vontade, assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia, nos daí hoje e perdoai nossas ofensas como nós perdoamos a quem nos tem ofendido e não nos deixeis cair em tentação… Mas, livrai-nos do mal.”

Sempre rezo “Livrai-nos do mal” (repito, para mim mesmo e para os outros), a penúltima oração do Pai-nosso (palavra composta; nem pai, nem nosso; apenas o nome próprio da oração) que finaliza com “Amém”, do Hebraico, “assim seja”, declarando a nossa fidelidade e o firme propósito de acreditarmos no que falamos.

Para nós, temorosos humanos (que praticamos o temor a Deus…), reservamos a penúltima oração: “… livrai-nos do mal.” Rogamos que nos livre do mal alheio, parece… Embora (síncope de ‘em boa hora’), possamos sucumbir aos males que causamos a nós mesmos.

O pai-nosso é uma invocação – isso mesmo, uma (in)vocação –, uma não-vocação cristã, que representa a alienação pela fé, a abdicação de assumir a vida real, delegando a um deus as responsabilidades pessoais.

A vocação, ação de chamar de viva voz, apelo, chamamento, pendor, parece insuficiente. Então, os fiéis, conscientes de que não têm vocação, invocam a proteção divina, de deuses que eles mesmos edificam. Se tornam invocados, cismados, desconfiados da própria fé, preocupados, irritados e coléricos, até.

PROFESSOR DE HISTÓRIA

Na infância, encantou-se pela magia das histórias; via nelas mais que a realidade: eram essências cristalinas da vida. Sonhou ser arauto: aprendendo, sabendo, criando e divulgando ‘a verdadeira verdade’. E, como tudo o que acreditamos pode se tornar realidade, tornou-se Professor de História.

Embriagado com a própria convicção, lia, publicava, transmitia e professava os textos históricos; acreditava piamente que aquelas palavras eram expressões de verdade: a História era a realidade do passado vista no presente como se fosse um conjunto de documentários gravados diretamente nas fontes das informações.

Porém, de tanto recitar, começou a perceber que havia versões diferentes e até contraditórias do mesmo fato histórico. Com um pequeno esforço mental, constatou que a História não era uma coleção de fatos da realidade passada; mesmo que ainda acreditasse que os livros de História continham relatos de quem viu os fatos acontecerem.

Em dado momento e a contragosto, constatou que o historiador era um advogado de si mesmo, que defendia a qualidade e a originalidade de suas autorias, que lhe outorgavam méritos publicitários e direitos econômico-financeiros. No entanto, a originalidade estava apenas na edição dos livros e das revistas, porque o historiador contava o que tinha lido ou ouvido de outros.

Ou pior: poderia estar defendendo o que os outros inventavam. De muitos outros. De uma cadeia de ‘historiadores’; pois os textos eram transcrições da realidade ocorrida. A História acabava sendo uma sequência de ecos, tão longa quanto a distância entre as remotas origens e as edições recentes das velhas informações. A cadeia de ecos ganhava a amplitude da antiguidade histórica. Cadeia, nos dois sentidos.

Caía por terra o mito de que o historiador era a fonte primária dos fatos oficiais; o historiador seria apenas mais uma etapa do registro histórico, montado com base em fontes secundárias, terciárias, quaternárias, … até perder os elos dessas fontes artificiais.

Concluiu, a contragosto, que o historiador era um bom contista da ficção da realidade passada. Mais adiante, ficou chocado com a certeza de que a História poderia ser totalmente fictícia, inventada a partir de indícios: fragmentos, sonhos, quimeras, ilusões e más intenções. Era como montar um australopiteco a partir de um pedaço de dente.

Finalmente, caiu na realidade e constatou que professava, com fanatismo, histórias de fadas, histórias de terror, histórias eclesiásticas, histórias militares, histórias sociais, histórias políticas, … Verdades literárias, verdades políticas, verdades bíblicas.

Concluiu que todas as histórias da História poderiam ser contadas em muitas versões, conforme as necessidades dos poderosos e que ele – Professor de História – era apenas um instrumento de enganação no processo de dominação das massas.

Soube ainda que as pessoas usavam a História para formar, conquistar, manter os poderes. Cada vez mais poderes ainda, atormentando os outros com mentiras históricas. E, antes de morrer, envergonhou de saber que era apenas um discurso em si mesmo.

Observações:

  1. As massas humanas são as mais fáceis de cozinhar.
  2. Enquanto os leões não aprenderem a escrever, as caçadas serão descritas pelos caçadores.” Provérbio Africano, que traduzo para: Enquanto os cães não aprenderem a falar, as histórias serão contadas pelos cachorros.

Sítio Itaguá, 2014.

QUASE DO ALTO DA MONTANHA

   Minha meta era chegar ao topo da montanha. Estava confiante. Sai bem cedo. Muitas pessoas queriam me ajudar nessa empreitada e sobravam ofertas. Bem agasalhado, com os pés protegidos e com o olhar curioso, dei os primeiros passos com vontade de ir longe e de ir por minha conta.
A caminhada inicial foi faceira. Eu andava solto, sem memórias a carregar. Os moradores das duas beiras da estrada me ofereciam frutas e orientações. Por pressa ou por ilusão de suficiência, pouca coisa aceitei e segui com determinação.
Nas planícies pontilhadas de casas que abrigavam muitas pessoas sorridentes, os campos cultivados emendavam uns nos outros, preenchendo as distâncias que meus olhos conseguiam abarcar. Ali, não via espaço pra mim; teria de seguir procurando meu lugar.
Como trazia o estômago cheio e encontrava ar fértil para efetivar as trocas gasosas, caminhava resoluto, devorando distâncias, sem analisar meus passos e as infinitas possibilidades de caminhos a tomar. Apenas, pisava firme, seguindo adiante, levantando os olhos, vez em quando, para mirar as escarpas que pretendia alcançar. Ainda, com pouco planejamento.
Empurrado pelo entusiasmo, galguei as primeiras elevações, donde poderia avistar os campos adjacentes, mas... nem lembrei de olhar para trás. Urgia andar depressa, sem paradas para beber água, pois o relógio de sol deslizava continuamente.
Subi nos primeiros contrafortes que sustentavam a base da cordilheira e me senti o máximo: um vencedor, para o qual, os obstáculos seriam apenas desafios. Naquele momento, vencer a dificuldade de continuar a escalada rumo ao ápice.
Enquanto a inclinação do terreno exigia pouca obliquidade das solas dos sapatos, mantive a inconsciência da existência de meus pés. Também, desconsiderava o derredor e a possibilidade de outros estarem percorrendo trilhas paralelas aos meus rastros ou convergentes ao meu alvo.
A elevação permitia, cada vez mais, vislumbrar paisagens e eu poderia apreciar as belezas primaveris. Mas... era tempo de caminhar... no qual, não cabiam devaneios poéticos: deveria baixar a cabeça e andar e andar e andar...
Andava já com algum peso nas pernas. O ar se fazia menos denso e o calor fustigava minhas costas. A mente perdia as convicções, as ideias começavam a esmaecer e o crescente silêncio afastava comentários e palpites. Pude, assim, continuar minha escalada sem contestações.
As argilas macias pisadas no início da jornada deram lugar a cascalhos, seixos e areião. Acima, avisto saibro, pedras soltas, algumas lajes que se mostram em parte. Terei de ter mais cuidado ao firmar os pés no solo instável; um escorregão pode provocar alguma queda e arranhões doloridos.
Ultrapassadas as primeiras montanhas, encontrei pedras firmes, em aclive crescente, que força meus tornozelos e estica as panturrilhas. As dificuldades passam a calibrar o ímpeto de avançar. Comecei a analisar atalhos, por critérios de segurança e para economizar energias.
Na planície e nas rampas suaves, eu deixava os braços balançarem as mãos ociosas, mantendo sem esforço o prumo do corpo. Ao transpor as colinas, precisei usar braços e mãos para fazer contrapeso ao desequilíbrio alternado pelos passos sobre o terreno irregular, como um equilibrista sobre o trilho estreito. A velocidade da marcha se reduzia com o aumento gradual de dificuldades. Ao mesmo tempo em que minha soberba definhava.
Restava pouca água no cantil e eu olhava menos para cima. Vez ou outra, parava para contemplar as encostas pedregosas mais abaixo, encobertas por vegetação luxuriante. Todavia, meu objetivo cobrava coragem para prosseguir. Mesmo sentindo cansaço, substituía os ímpetos iniciais por esforços para salvar o orgulho.
Quanto mais alto, mais só e mais fraco. As companhias das planuras, as frutas oferecidas ou disponíveis nas árvores nativas e a brisa agradável foram substituídas por vento inclemente, sol abrasador, espinhos traiçoeiros, pedras roliças e ameaças de quedas acidentais.
Parei e, pela primeira vez, contemplei as lonjuras. Procurei em vão pela trilha que segui. Nada. Nem sinal. Consegui apenas imaginar por onde havia passado. Nenhum sendeiro de brilho deixado pela minha inglória passagem. Sem enxergar pessoas perto das casas; via apenas bovinos esparsos pela pastagem. Os humanos e os ruminantes deveriam ter buscado abrigo nas sombras. Sombras que eu tanto desejo agora que estou coberto de luz.
Ah! Por que não circulei pela planície com humildade e modéstia? Do alto do meu isolamento, procuro em vão pelas companhias da minha juventude. Os amigos de infância desapareceram quase todos e os que restam estão tão esquisitos, irreconhecíveis. Fomos colegas? Fomos amigos?
Sem colegas, sem amigos, sem vizinhos, sem esperanças, sem futuro... no alto de mim mesmo.
Mario Tessari no livro VAMOS PENSAR? – página 158
https://livrosdomariotessari.me/vamos-pensar/

O DIREITO AUTORAL DAS SEMENTES

As palavras e as ideias são de domínio público, sem direitos autorais. O direito autoral é do texto, que pode ser uma leitura ou releitura, escritura ou reescritura. Há, também, textos totalmente inéditos, cuja autoria deve ser reconhecida.

As aves e as árvores não se preocupam com a ‘maternidade/paternidade’ das sementes; elas apenas contribuem para a continuidade da vida.

Os seres humanos, com suas imbecilidades, é que lutam e brigam por vitrines, palcos, passarelas, aparências e vaidades.

O SABOR DO SABER

O prazer de aprender
nos leva a provar o gosto
de todas as dúvidas,
ao sabor da curiosidade.

Muitos consideram amargo
o gosto da dúvida,
porque sofrem
de medo do desconhecido.
Por preguiça de pensar,
preferem vegetar
na zona de conforto
da mediocridade.

Precisamos ir ao desconhecido
para provar o sabor
e saber o gosto dele,
para gostar ou não.

Precisamos provar,
para aprovar ou não aprovar
esse novo por conhecer
e o antigo que desconhecemos.

Precisamos selecionar alguns saberes
para construir caminhos
que nos levem ao desconhecido;
precisamos utilizar o velho
para gerar novidades;
precisamos repensar o já-pensado
e pensar o ainda-por-pensar.

Precisamos pensar
o velho de um jeito novo.

Pessoas acomodadas
se satisfazem
com ideias engessadas.

Pessoas insatisfeitas
conseguem satisfação
na procura de respostas
para as dúvidas.

Os satisfeitos vivem de mesmice;
são pessoas cansadas
que se alimentam
de pensamentos sintéticos.

Do livro POEMAS DE MARIO TESSARI QUE EU GOSTO – MARIA ELISA GHISI

SER-VIL

MOMENTOS

A realidade da vida é construída por nosso olhar.

Se olharmos o mundo sempre na mesma perspectiva, veremos sempre as mesmas faces das mesmas coisas.                  

As coisas parecem ser como são vistas, no entanto, teremos novas imagens delas se mudarmos a direção do olhar.

A criança vê o mundo com olhos de novidade, com curiosidade: não se satisfaz com o que vê; explora o objeto e constrói o novo a cada olhar. Não algo inexistente que passa a existir, mas uma nova imagem gerada por um olhar diferente sobre as mesmas coisas.

A beleza e a tristeza, que nascem nos mesmos olhos, são frutos de diferentes formas de olhar.

O medo do novo limita o olhar, condenando a realidade a permanecer o que foi e impedindo que a vida continue; o medo do novo nos mata por dentro.

Poemas são representações de novos olhares sobre uma mesma realidade; são como que fotografias dos momentos que o poeta vive.

(Em parceria com Maria Elisa Ghisi, no livro MOMENTOS.)

TIRANIA DOS HORMÔNIOS

A galinha preta está chocando há semanas. Não há ovos debaixo dela, apenas pernas, dedos, unhas e palha. Se estivesse sobre ovos, estaria ainda mais determinada a proteger o ninho. Quando as outras galinhas atacam, foge das bicadas e se esconde chorando. Raramente se alimenta.

A fisiologia das aves depende de hormônios que comandam outros hormônios para: nascer, se desenvolver, crescer, amadurecer sexualmente, atrair parceiros sexuais, formar ovos, construir os ninhos, botar e chocar ovos, cuidar dos filhotes, … As galinhas não planejam seus ciclos de postura, nem seguem regras estabelecidas por um coletivo de galinhas. Dizemos que elas seguem as leis naturais.

O Sistema Endócrino também comanda a fisiologia dos mamíferos: a fome, a sede e o cio. Os hormônios gerados pelas glândulas determinam a ocorrência e a intensidade dos processos orgânicos, como digestão, crescimento, sexualidade e envelhecimento.

Vez em quando, uma matilha passa pela estrada atrás de uma cadela. Se ela para (pára), todo o séquito para. Os mais exaltados rosnam e distribuem dentadas. Se ela segue por outra estrada ou se ela retorna, os ‘fiéis seguidores’ acompanham. Algumas horas depois, a procissão passa em sentido inverso. Durante alguns dias, a cerimônia será repetida, com pequenas diferenças no conjunto de participantes ou no estado físico dos machos em progressiva exaustão.

Ouvi e vi o apelo de vacas em cio, as lutas dos canários e dos lagartos pela chance de gerar filhos, admirei os cantos de machos chamando as fêmeas na primavera, vi homens e mulheres se enfeitando para parecerem melhores reprodutores. A estatura, a ‘cor dos olhos’, a altivez e os contornos sensuais de seus corpos interferem na disputa por parceiros sexuais. Como ‘seres culturais’, os humanos usam, além dos dotes físicos, os poderes representados pelas riquezas acumuladas: a herdeira de uma fortuna ‘dá melhores frutos’ que uma moça pobre; o dono de um automóvel vistoso atrai mais que um pedestre.

Como diz Beatriz Cardoso Soares, “tudo muito natural”. Sim. É a natureza que faz as ofertas e as escolhas e não a pretensa ‘racionalidade dos animais superiores’. Os hormônios comandam os flertes, os namoros e os acasalamentos. Os feromônios humanos desencadeiam as atrações, as repulsões, a defensividade, a percepção de perigos, a agressividade e os desempenhos sensual e sexual.

Na época em que eu mantinha cabras leiteiras com a ilusória intenção de produzir queijos, um caprinocultor alertou que a catinga do bode desencadeia os ciclos reprodutivos das fêmeas e não o porte físico, a beleza aparente, a produtividade em carne ou em leite. Os feromônios – o bodum – excitava as cabras e o plantel e os lucros aumentavam. Porém, os feromônios (o bodum) diminuíam com o avançar da idade do bode. Ou as cabras se acostumavam demais com o cheiro ‘de sempre’; queriam alguma variação…

Tenho observado que os acasalamentos de humanos ‘ao primeiro cheiro’ ou por ‘atração sexual instantânea’ prosseguem enquanto a produção de hormônios estiver alta. Poeticamente, “amor à primeira vista”. Muitos consumam o casamento. Outros, apenas consomem. Depois, separação, divórcio e a busca por novos parceiros. Será essa a causa da explosão demográfica dos humanos?

Os sapiens sapiens pouco sabem ou nem querem saber que são escravos dos hormônios, que agem e reagem conforme os códigos fisiológicos produzidos pelas glândulas endócrinas; que vivem sob o arbítrio hormonal. Além de serem manipulados por esses ditadores poderosos, os humanos cultivam mais tiranos ainda: a ambição e a vaidade. Além de dominados pela natureza, passam a depender de vícios que eles mesmos criam através do que chamam, orgulhosamente, de Cultura.

Ou seja, os corpos recebem ordens das glândulas endócrinas e se esforçam para mergulhar nos abismos da ambição e da vaidade. Somos conduzidos por hormônios e buscamos, cada vez mais, a beleza atraente e a posse de riquezas e de poderes. Quanto mais somos ou temos, mais desejamos e mais conquistamos. Somos insaciáveis, desequilibrados.

A criação de hormônios e de feromônios sintéticos pode ser considerada mais um exemplo da estupidez humana. Perfumes hormoniosos. Insatisfeitos com o que conquistamos por atração natural, fabricamos e compramos drogas para controlar os processos naturais: para atrairmos, nos sentirmos atraídos e ainda mais ‘felizes’ e poderosos, quase onipotentes. Queremos ser tudo e dominar todos. Qual será o fim dessa escalada de despudor?

CURSO SALUTAR (para nossa saúde)

   Dor no braço? Qual deles? Importa saber qual braço? O nome da doença? Quando começa doer? Quando alivia? Por que?
Isso é um problema? Quem resolve esse problema? O médico? Os medicamentos? Anestesiar a dor ou descobrir e evitar a causa?
Como era aos vinte anos? Como começou? Qual a tendência? Como prevenir? Ou é melhor esperar o braço cair? O que fazer? Cirurgia? Consumir enganadores das doenças? Ou mudar as atitudes? Reconhecer o envelhecimento e os limites físicos e orgânicos? O que o corpo nos fala? Melhor calar as reclamações do corpo ou tomar consciência dos desgastes pelo excesso de trabalho, pelo estresse?
Quem nos aposenta? O Governo, as empresas ou nós é que devemos saber o momento de reduzir a carga, de fazer diferente, de fazer menos, nos aposentar aos poucos e, depois definitivamente? Vamos planejar a aposentadoria ou aguardamos os ‘prazos legais’? Depois de aposentados vamos viver nos aposentos ou vamos manter o corpo e a mente ativos?
Posso fazer sem ajuda ou vou pedir e contar com ajuda? Continuo ‘sabendo tudo’ ou será mais produtivo dialogar, ouvir pessoas? Ideias coletivas, trabalho em equipe? Heroísmo individual ou trabalho feito por muitas mãos, com humildade e vontade de cooperar?

O PREÇO DOS MORTOS

Como nossos antepassados se sentiam diante da morte e diante do corpo morto de um familiar? Como nos sentimos diante da morte de um amigo? O mesmo que sentimos na morte de um inimigo? Se uma pessoa morrer dentro de nossa casa, deixaremos o corpo ali até só sobrarem os ossos? As doenças que matam continuam ativas nos cadáveres? Há vida após a morte? Acreditamos em reencarnação? No mesmo corpo ou em outro corpo? Ou a alma vai pro céu e fica esperando que o corpo consiga subir pra lá também?

Sou um perguntador quase incansável… Respostas, explicações? Imagino algumas, registro poucas, … Tenho ideias sobre a morte: minha, da Elisa, de outras pessoas importantes para mim, de pessoas com quem mantenho parcerias, de vizinhos, de desconhecidos e de lixos humanos. Vivi algumas experiências de morte na família, de pessoa ao meu lado, de jovens muito jovens pra morrer, de pessoas que prolongam a morte e de outros que antecipam o fim das decepções e dos sofrimentos. Penso muito e tento racionalizar, aceitar que todos morrem. Mesmo assim, sei que essas preparações podem ser insuficientes para suportar a ‘hora derradeira’.

Assisti cenas chocantes de animais ‘irracionais’ diante da morte de um indivíduo do grupo: as reações do grupo às demonstrações de sofrimento do enfermo, do acidentado, do moribundo; a perplexidade e o estranhamento diante da paralisia de um seu semelhante. Será que eles pensam que o outro está morto? Será que eles guardam na memória esses momentos trágicos? Vi animais com medo de morrer e li análises sobre situações registradas. Por observação, sei que os animais têm intuição muito atuante diante de eventos climáticos e de catástrofes. Parece que eles sabem com antecedência quando haverá um terremoto, uma enxurrada, uma avalanche. O que sente uma ave ao presenciar a morte de outra? Alguma espécie de animal ‘irracional’ passa uma noite observando se seu semelhante morreu de fato?

Durante o Século XX, eram construídas casas com salas grandes o suficiente para caber o velório dos familiares, com espaço para caixão, cruz, castiçais, cadeiras e mesa com alimentos para os que ainda não morreram. Ironicamente, durante os anos sem morte na família, a sala do velório era usada como ‘sala de televisão’. Quando, eventualmente, morria um dos residentes, a televisão era retirada para entrar outra morte: o defunto. A televisão mata os diálogos entre os familiares e induz a morte do pensamento crítico.

Outra tradição era velar a pessoa por, pelo menos, vinte e quatro horas. Diziam que era para ‘observar se a pessoa estava morta, mesmo’, ou seja, ela poderia estar numa crise cataléptica. Preocupação baseada em relatos de exumações em que ‘o corpo estava fora de posição’, porque ‘tinha se revirado depois do enterro’.

Lembrando que as flores e as velas são usadas nos ‘guardamentos’ para disfarçar o cheiro do cadáver; catinga natural do ex-vivente e/ou, logo a seguir, indicativo do início de decomposição.

Além dessas crenças e heranças culturais, havia a hipocrisia regada a cachaça e a café. Com a morte, todos ‘se tornavam bons’. Pessoas que ignoravam ou até odiavam quem morreu compareciam ao velório e participavam do enterro. Os primeiros, na ilusão de recuperar os momentos que ‘perderam’ de conviver; os segundos, para terem certeza que o desafeto estava morto, mesmo. Enquanto vivos, temos algum poder, que pode delimitar o poder de outrem. A morte distribui poderes para amigos e para inimigos. Nos jogos de poder, os vazios são ocupados pelos que ainda não morreram. E, quando morrerem, também deixarão vazios.

Em alguns países, em algumas etnias e, em especial, em algumas classes sociais, os cadáveres são mantidos por dias em espaço público para dar tempo de ‘receberem todas as homenagens’. Atitudes similares a participar dos funerais para recuperar o tempo perdido ou o ‘amor’ de quem  morreu. Porque não homenagearam o defunto em vida? Para não dar a ele mais poderes; homenagens pressupõem prestígio, valor social. Podemos elogiar, enaltecer e glorificar os mortos, sem risco de cedermos poder e de ficarmos menos poderosos que eles.

Acredito que, já há milhares de anos, os animais (incluindo o sapiens insapiens) se afastavam dos cadáveres porque percebiam que as doenças poderiam ser transmitidas, mesmo após a morte; ou seja, bacilos, bactérias e vírus continuavam atacando. Mesmo o chorume e as ossadas podiam transmitir doenças infecciosas. Em algumas regiões, havia cemitérios separados (especiais) para leprosos. Talvez, também para outras doenças epidêmicas. A cremação resolve esse e outros problemas.

Em todas as épocas e em todos os continentes, alguns povos enterravam e outros cremavam seus mortos. Talvez, os povos nômades abandonassem os cadáveres e as possíveis doenças latentes; e evitassem, também, o trabalho de enterrar ou de cremar seus mortos. Os mais pobres, até hoje, recebem apenas ‘sete palmos de terra’ sobre o caixão.

Enterrar ou cremar tem custos financeiros: o preço dos caixões, dos túmulos, das lápides de mármore e das capelas. Muitas pessoas reservam dinheiro para a compra do terreno e para a construção do sepulcro ou elas mesmas constroem o jazigo em que querem que depositem o corpo delas; de simples sepulcros a mausoléus imponentes, como as pirâmides. Em alguns casos, os monumentos fúnebres superam as residências em valor e em investimentos; essas pessoas gastam mais com a morte do que para bem viver.

Em geral, os familiares cuidam dos túmulos, capelas e mausoléus. Durante minha juventude, sob o comando da Nonna Luiza, lavei muita cruz e muito mármore. A água era levada sobre carroça puxada por bois, dentro de tambores de ferro; precisava economizar… Também, para ‘economizar, a família comprava ou confeccionava coroas de arame e lata. Assim, no mês de setembro, as coroas eram retiradas do cemitério, passavam por limpeza geral e pelas reformas necessárias, recebiam nova demão de tinta a óleo e voltavam para o cemitério na segunda quinzena de outubro. As cercas também eram consertadas e pintadas.

Mesmo assim, os ossos dos que-já-se-foram não descansavam em paz. Nos primeiros dias após o sepultamento, os tatus-rabo-mole removiam a terra e devoravam os ‘restos mortais’. As formigas saúvas atacavam em qualquer época, formando grandes depósitos de terra vermelha entre os túmulos. Esses animais também espalhavam doenças.

Durante a pandemia de COVID, foram proibidos os velórios e, na sequência, foram promulgadas leis que regulamentam as cerimônias fúnebres, sem ‘guardamentos noturnos’. Assim, são evitados muitos desgastes inúteis e reduzida a transmissão de doenças.