ETERNIDADES

Durante alguns milênios, os humanos cultivaram o sonho de eternidades infinitas, “omnia saecula saeculorum”. Do grego “εἰς τοὺς αἰῶνας τῶν αἰώνων” (eis tous aionas ton aionon), que significa “para sempre”, “por toda eternidade”.

No início da ‘nova era’, novo milênio (no calendário católico), a eternidade longeva da “paz celestial” foi substituída por viver, individual e coletivamente, tudo em poucas décadas, com dinamismo intenso, absoluto e desvairado.

Alguns intelectuais analisam outra interpretação de eternidade: a continuidade da ‘raça humana’, a perpétua sequência de gerações.

MEDO DE MORRER

Há 9.000 anos (desde 7.000 a.c.), os sapiens consultam oráculos, constroem tabernáculos e seguem profetas que prometem salvação; tudo para fugir da finitude, da consciência de que nada vive para sempre. Temos medo da morte; não queremos morrer. Animais e plantas lutam para não morrer (“impulso primitivo, pulsão vital, quando em risco de morte”); os seres microscópicos, também. O homo sapiens sapiens continua buscando alívios para seus temores ‘mortais’. Preferimos fazer de conta que não sabemos.

CHORAR, FALAR, ESCREVER, SILENCIAR.

Talvez, eu tenha conversado com minha mãe durante os últimos meses em que estive no útero dela. Talvez. Talvez, minha mãe falasse comigo e, também, meu pai e outros familiares. Talvez, eu tenha sentido o ambiente externo, ouvido vozes, percebido afetos, … Talvez.

Acredito que chorei ao aspirar o primeiro ar. E que continuei chorando até compreender que falavam comigo e reagir com ‘grunhidos’, monossílabos copiados do que eu ouvia. Em seguida, pronunciei os primeiros dissílabos possíveis de interpretar e, depois de meses, aprendi as primeiras palavras.

Durante décadas, desenvolvi a oralidade, a leitura e a escrita, que foram muito úteis para minha sobrevivência, para conquistar autonomia, para escrever textos (e até livros), expondo meus pensamentos, meu modo de estar no mundo.

Continuo revelando minha vida interior, porém, escolhendo as palavras, revelando menos minhas análises, ouvindo as contestações, esperando bastante para interagir, limitando interlocutores e assuntos. Disponibilizo o que falo ou escrevo para quem quiser ouvir ou ler.

Irei silenciando aos poucos … até o silêncio final.

QUASE DO ALTO DA MONTANHA

   Minha meta era chegar ao topo da montanha. Estava confiante. Sai bem cedo. Muitas pessoas queriam me ajudar nessa empreitada e sobravam ofertas. Bem agasalhado, com os pés protegidos e com o olhar curioso, dei os primeiros passos com vontade de ir longe e de ir por minha conta.
A caminhada inicial foi faceira. Eu andava solto, sem memórias a carregar. Os moradores das duas beiras da estrada me ofereciam frutas e orientações. Por pressa ou por ilusão de suficiência, pouca coisa aceitei e segui com determinação.
Nas planícies pontilhadas de casas que abrigavam muitas pessoas sorridentes, os campos cultivados emendavam uns nos outros, preenchendo as distâncias que meus olhos conseguiam abarcar. Ali, não via espaço pra mim; teria de seguir procurando meu lugar.
Como trazia o estômago cheio e encontrava ar fértil para efetivar as trocas gasosas, caminhava resoluto, devorando distâncias, sem analisar meus passos e as infinitas possibilidades de caminhos a tomar. Apenas, pisava firme, seguindo adiante, levantando os olhos, vez em quando, para mirar as escarpas que pretendia alcançar. Ainda, com pouco planejamento.
Empurrado pelo entusiasmo, galguei as primeiras elevações, donde poderia avistar os campos adjacentes, mas... nem lembrei de olhar para trás. Urgia andar depressa, sem paradas para beber água, pois o relógio de sol deslizava continuamente.
Subi nos primeiros contrafortes que sustentavam a base da cordilheira e me senti o máximo: um vencedor, para o qual, os obstáculos seriam apenas desafios. Naquele momento, vencer a dificuldade de continuar a escalada rumo ao ápice.
Enquanto a inclinação do terreno exigia pouca obliquidade das solas dos sapatos, mantive a inconsciência da existência de meus pés. Também, desconsiderava o derredor e a possibilidade de outros estarem percorrendo trilhas paralelas aos meus rastros ou convergentes ao meu alvo.
A elevação permitia, cada vez mais, vislumbrar paisagens e eu poderia apreciar as belezas primaveris. Mas... era tempo de caminhar... no qual, não cabiam devaneios poéticos: deveria baixar a cabeça e andar e andar e andar...
Andava já com algum peso nas pernas. O ar se fazia menos denso e o calor fustigava minhas costas. A mente perdia as convicções, as ideias começavam a esmaecer e o crescente silêncio afastava comentários e palpites. Pude, assim, continuar minha escalada sem contestações.
As argilas macias pisadas no início da jornada deram lugar a cascalhos, seixos e areião. Acima, avisto saibro, pedras soltas, algumas lajes que se mostram em parte. Terei de ter mais cuidado ao firmar os pés no solo instável; um escorregão pode provocar alguma queda e arranhões doloridos.
Ultrapassadas as primeiras montanhas, encontrei pedras firmes, em aclive crescente, que força meus tornozelos e estica as panturrilhas. As dificuldades passam a calibrar o ímpeto de avançar. Comecei a analisar atalhos, por critérios de segurança e para economizar energias.
Na planície e nas rampas suaves, eu deixava os braços balançarem as mãos ociosas, mantendo sem esforço o prumo do corpo. Ao transpor as colinas, precisei usar braços e mãos para fazer contrapeso ao desequilíbrio alternado pelos passos sobre o terreno irregular, como um equilibrista sobre o trilho estreito. A velocidade da marcha se reduzia com o aumento gradual de dificuldades. Ao mesmo tempo em que minha soberba definhava.
Restava pouca água no cantil e eu olhava menos para cima. Vez ou outra, parava para contemplar as encostas pedregosas mais abaixo, encobertas por vegetação luxuriante. Todavia, meu objetivo cobrava coragem para prosseguir. Mesmo sentindo cansaço, substituía os ímpetos iniciais por esforços para salvar o orgulho.
Quanto mais alto, mais só e mais fraco. As companhias das planuras, as frutas oferecidas ou disponíveis nas árvores nativas e a brisa agradável foram substituídas por vento inclemente, sol abrasador, espinhos traiçoeiros, pedras roliças e ameaças de quedas acidentais.
Parei e, pela primeira vez, contemplei as lonjuras. Procurei em vão pela trilha que segui. Nada. Nem sinal. Consegui apenas imaginar por onde havia passado. Nenhum sendeiro de brilho deixado pela minha inglória passagem. Sem enxergar pessoas perto das casas; via apenas bovinos esparsos pela pastagem. Os humanos e os ruminantes deveriam ter buscado abrigo nas sombras. Sombras que eu tanto desejo agora que estou coberto de luz.
Ah! Por que não circulei pela planície com humildade e modéstia? Do alto do meu isolamento, procuro em vão pelas companhias da minha juventude. Os amigos de infância desapareceram quase todos e os que restam estão tão esquisitos, irreconhecíveis. Fomos colegas? Fomos amigos?
Sem colegas, sem amigos, sem vizinhos, sem esperanças, sem futuro... no alto de mim mesmo.
Mario Tessari no livro VAMOS PENSAR? – página 158
https://livrosdomariotessari.me/vamos-pensar/

A MORTE DA ROSEIRA

      ROSA COR-DE-ROSA

Em 2005,

ela sobrevivia na fresta da rachadura

de uma pedra submersa

ao lado da entrada do Sítio Itaguá. 

Avaliei o calor que sentiria nas raízes sedentas

e transplantei a velha cepa para solo cultivado.

Ela demonstrou desconforto.

Por isso, em seguida, foi colocada num vaso,

com a possibilidade de ser levada

para a sombra, para a chuva e para o sol,

até que demonstrasse as preferências.

Durante dezoito anos,

migrou de vaso em vaso,

sempre oferecendo flores.

Depois de alguns dias,

os ramos despetalados foram enterrados

e geraram descendência. 

Nesta primavera, definhou e morreu.

Com mãos enlutadas,

retirei o velho tronco e constatei

que o besouro-dourado tinha sugado a seiva das raízes

e que formigas solenopsis tinham roído as cascas das raízes,

causando a falência vegetal.

                Amanhecer do dia 24.12.2023.

ROSA COR-DE-ROSA

       ROSA COR-DE-ROSA

Em 2005,
ela sobrevivia na fresta da rachadura
de uma pedra submersa
ao lado da entrada do Sítio Itaguá.

Avaliei o calor que sentiria nas raízes sedentas
e transplantei a velha cepa para solo cultivado.

Ela demonstrou desconforto.
Por isso, em seguida, foi colocada num vaso,
com a possibilidade de ser levada
para a sombra, para a chuva e para o sol,
até que demonstrasse as preferências.

Durante dezoito anos,
migrou de vaso em vaso,
sempre oferecendo flores.
Depois de alguns dias,
os ramos despetalados foram enterrados
e geraram descendência.

Nesta primavera, definhou e morreu.

Com mãos enlutadas,
retirei o velho tronco e constatei
que o besouro-dourado tinha sugado a seiva das raízes
e que formigas solenopsis tinham roído as cascas das raízes,
causando a falência vegetal.

               Amanhecer do dia 24.12.2023.

AUTOANÁLISE. AUTOCURA.

Consigo lidar com os limites da mente, do espírito. Basta uma dose de humildade e a firme decisão de aceitar a realidade. Tenho relativo controle sobre o campo psicológico. Invento esperanças, alimento ilusões, cancelo projetos, reinvento motivos para viver. Leituras e escrituras ajudam a curar feridas emocionais. Meditar, conversar, dialogar, … procedimentos que aliviam as decepções e podem fortalecer meu senso de realidade.

No mundo físico, os limites são mais persistentes, mais teimosos. Mostram força e colocam as soluções depois do horizonte, para além das minhas forças. A chuva, a seca, o calor, o frio, o vento, o corpo, … Os elementos naturais seguem o ritmo eterno e fico à mercê deles. Analiso meu corpo, o transportador de minha mente, o habitat de meu espírito. Tento otimizar os movimentos, administrar o funcionamento. Com dificuldades, porque meu corpo envelhece depressa, degenera. Ao contrário da mente, que se renova a cada incentivo, a cada estímulo, a cada carinho recebido, o corpo definha inexoravelmente.

Autoanálise. Autopreservação. Autofinamento. A mente ativa governando um corpo em constante redução, enfraquecido. Busco meu fim.

No fim, serei muitas ideias em um corpo frágil. Essa será a mais perfeita das imperfeições. A perfeição possível.

ADMIRAÇÃO

O prefixo latino ‘ad’ indica “movimento para, movimento em direção de, aproximação, diante de, junto a, ...” [Houaiss] 
Ad-miror, atus, sum: ad-mirar, intenção e ação consciente de mirar, de “fixar os olhos em, olhar longamente à distância, fazer pontaria”, se esforçar para atingir o ponto central, desenvolver acuidade, ... [Houaiss] 
*** 
     Eu admiro o voo dos pássaros. Posso passar horas, no templo da floresta, con-templando os pássaros em suas ousadias e em suas habilidades voláteis, que representam a real liberdade. Admiro, apenas... não quero estar com eles no ar, não pretendo voar. 
     Admiro os heróis; fujo de heroísmos. Prefiro ser normal, passageiro, substituível e livre de idolatrias. Jamais eterno. Meu corpo e minha mente são finitos. Talvez, minhas ideias se propaguem e sobrevivam ao meu sopro vital... 
     Admiro o circo que está (des)armado aqui em frente. Admiro apenas. Por enquanto, sou plateia e auditoria. Logo, o circo seguirá seu espetáculo e eu permanecerei silvestre, parte da Natureza, convivendo com os bichos, plantando sementes. 
     Admiro a Primavera. Todavia, o encanto dela está – exatamente – na impermanência, na fugidade das estações e dos ciclos cósmicos. Se, o tempo todo, fosse primavera, já estaríamos cansados do eterno florir. A beleza das flores começa na esperança, no saber esperar, que inclui semear, plantar, regar, cuidar e imaginar. E as esperanças vegetam durante os invernos. 
     Procuro saber o que admiro; prefiro ter consciência do que vivo, do que quero continuar vendo de longe, do que quero viver integralmente no dia-a-dia. A beleza e a funcionalidade da vida estão na diversidade, na compreensão dos ciclos... semelhantes, porém, sempre modificados, diferentes em detalhes que fogem ao nosso entendimento. Depois de séculos, identificamos mudanças significativas. 
     Se chovesse o tempo todo ou se nunca chovesse, as plantas seriam extintas. A monotonia mata. A monocultura se autodestrói. Inclusive, a monocultura literária. 
     Viver para sempre seria a ‘morte de novas vidas’. A soberba humana pode pretender ser eterna; há quem acredite que sua estupidez seja insubstituível. 
     O inverno e o morrer são tão importantes quanto a primavera e o nascimento. A ressurreição, então, seria a arrogância de renascer em detrimento de outras vidas, de se intrometer nas gerações futuras. A Terra já está superlotada de homo-deuses; para sobreviver, o planeta precisa que ocorram muitas mortes definitivas, para dar espaço a novas existências. 
     Quero viver plenamente o meu agora com o máximo senso de realidade: essa consciência de que sou único, limitado e efêmero. 
08.09.2020 – 15:41 

MORTE CONSCIENTE

   Morremos no momento que tomamos consciência da morte. A falência dos órgãos vitais determina o término do processo biofísico; apenas, o desligar da máquina humana.
   Hoje (20.01.2023), eu morri. Isto é, tomei consciência da minha morte: da inutilidade de meus esforços, durante décadas, para construir estruturas habitacionais e estruturas culturais. Eu sou nada. Nada ficará. A floresta será derrubada, as aves silvestres serão presas ou abatidas, as fontes voltarão a secar, o dinheiro será gasto e as palavras serão dispersas ao vento.
   Eu é que, fantasma de mim mesmo, sobrevivi à minha morte, para contemplar a dissipação no meu mundo idílico. Como fantasma, me sinto bem mais leve...
   Viver é acreditar nas próprias ilusões.