Nova Trento

Carta aos alunos da Escola Francisco Mazzola, em 17 de agosto de 2002

“Cada ser em si carrega o dom de ser capaz, de ser feliz.”    Almir Sater

O conhecimento nos leva à existência.

Antes de estar com vocês, eu não os conhecia e, provavelmente, vocês não me conheciam. Por isso, não existíamos um para o outro. Não podíamos pensar um no outro, porque não tínhamos uma idéia do outro ainda não conhecido. Há magia no ato de conhecer: o ato de conhecer dá existência a quem e ao que assumimos como conhecido. Só agora existimos um para o outro. Logo, a existência não é uma decisão individual; ela é uma construção coletiva.

Como quando conversamos, no início desta semana, vou analisar algumas palavras. Falamos em amizade e ela me transporta para a palavra comunhão: a união dos que têm objetivos comuns, crenças comuns; os mesmos ideais. E comunicação é o agir coletivo dos que comungam dos mesmos ideais. Já confusão quer dizer aquilo que se fundiu, se misturou, que perdeu a ordem; incapacidade de reconhecer diferenças, falta de clareza.

Precisamos estar em comunhão sem nos fundir com o outro, sem nos anular. O “nós” é constituído da união dos “eu”. Precisamos estar juntos, construir juntos, mas sem perder a nossa identidade. Jamais haverá um “nós” forte se não construirmos um “eu” sólido e solidário. A sociedade será tão ética e tão cooperativa quanto éticos e cooperativos forem seus sócios.

Falamos também na palavra competência: “qualidade de quem é capaz de apreciar e resolver certo assunto, fazer determinada coisa, …”  Uma das metas que a maioria de vocês estabeleceu, para esse ano, foi “passar de ano”. Vocês têm competência para “passar de ano”, porque são capazes de analisar e dar solução para todas as tarefas escolares.

O ano passa todo mês, toda semana, todo dia, toda hora, todo minuto, todo segundo… Por isso, a todo momento, precisamos fazer o que precisa ser feito, da melhor maneira que pudermos e com prazer. Só podemos ter interesse e sentir prazer por aquilo que conhecemos, a começar por nós mesmos. Conhecer a nós mesmos é tomar consciência de nossas capacidades, de nossas habilidades e principalmente do que queremos, do nosso projeto de vida. Conhecer a nós mesmos implica em tomar consciência de como e de quando sentimos alegria ou tristeza, de como e de quando aprendemos, de como nos vemos e de como somos vistos.

Somos estranhos de nós mesmos: não reconhecemos as nossas reais capacidades e acabamos nos subestimando, nos fazendo menores do que somos. Por isso, fazemos menos e vivemos menos.

Outra meta estabelecida “para a vida toda”, pela maioria, foi: ser feliz.

Felicidade não é um lugar no futuro. Em cada momento, em cada lugar e com cada pessoa, a felicidade é outra. As felicidades são muitas. E estão à nossa disposição. A felicidade é como a água de uma fonte: vai passando pelas nossas mãos. Só conseguimos aproveitar uma pequena porção da água; a maior parte vai embora. Quando estamos com muita sede, toda água é boa. Parece que nossa sede de felicidade é pequena, porque deixamos que a felicidade cotidiana escorra pelos nossos dedos, esperando por uma felicidade perfeita, que está à nossa espera, em algum lugar, no futuro. Precisamos aproveitar e viver a felicidade de agora, com as pessoas com quem estamos, senão essa chance se perde e não poderemos mais viver o momento que passou.

Amigo não é aquele que aceita o outro como o outro é. Amigo é aquele que, conhecendo o outro, valoriza as qualidades do amigo e que propõe, com ele, trabalhar para reduzir os defeitos e preencher as falhas. Amigos constroem, em conjunto, os conhecimentos, as habilidades e os valores necessários à felicidade.

Juntos, vamos construir as competências necessárias para uma vida feliz.

Mario Tessari

SER-VIL

O CANHÃO DO SIRINEU

O CANHÃO DO SIRINEU

Aos dez anos, o Sirineu ‘saiu de casa’, deixando para as seis irmãs dele a responsabilidade de cuidarem dos pais, dos parreirais e demais plantações, além de algumas vaquinhas magras e desanimadas. Foi para o seminário aperfeiçoar a alma através do estudo do Latim e de outras línguas mortas, da Matemática, da oratória, da música e do teatro, para se tornar digno do sacerdócio. E deve ter sido bem aplicado, pois, dos cento e sessenta e dois principiantes, foi o único a receber a ordenação. Porém, para adquirir o direito de rezar missas, enfrentou muitas dificuldades.

Nascido e criado nos pedrentos vales do oeste catarinense, sem conhecer alpargatas ou botinas, havia usado chinelas de couro cru apenas nas festas religiosas de maior importância. Por andar descalço sobre os seixos, as solas dos pés desenvolveram um cascão que amassava até espinhos e os dedos adquiriram a resistência necessária para enfrentar as normais topadas nas andanças e trabalhos diários.

Para ingressar no colégio religioso, recebeu o primeiro par de sapatos, confeccionados pelo rude sapateiro da vila, que, conhecendo o pé-duro, comentou:

— Só use os sapatos em ocasiões solenes ou na igreja, onde o enorme sacrifício será um louvor a deus.

E o seminarista seguiu o conselho. No mais, andava descalço ou com os pés metidos nas velhas chinelas de couro cru, o que pouca diferença fazia, pois eram tão sujas que ele continuava a pisar em terra.

Na segunda série ginasial, o Sirineu continuava a sorrir candura provinciana para todos e para tudo, mesmo que sofresse com apelidos e brincadeiras de mau gosto. Sorria superior à grosseria, ao conforto e ao calçado moderno. Entrava na sala de aula pisando as chinelas… que depositava sob a carteira, de onde eram recolhidas ao final das aulas. Sempre, extrovertido, sorrindo e se comportando com a inocência dos seres naturais.

Quando o padre, professor de Língua Portuguesa, foi transferido de repente, o reitor pediu para uma freira que suprisse temporariamente a ausência do mestre. Naqueles santos tempos, somente padres (nem todos másculos…) lecionavam para seminaristas. As freiras, responsáveis pela cozinha e pela lavanderia, permaneciam invisíveis, atrás de janelas e portas giratórias opacas, já que as mulheres – símbolos do pecado – poderiam pôr a perder as vocações sacerdotais.

Logo, a aparição de uma freira, mesmo que fosse velha e encarquilhada, por si só, já era fato extraordinário. O véu impedia de ver a cor dos cabelos, entretanto, as peles e o andar arrastado poderiam comprovar a idade avançada. Enxergava bem; estava praticamente surda. Ela havia consumido a existência no ensino da Língua Pátria para meninas e moças noviças, candidatas à vida monástica; jamais lecionara para meninos, moços ou homens.

Na apresentação, o reitor não mencionou o nome dela; só reafirmava: “a nova professora”. Os alunos-seminaristas entenderam que ela seria a nova professora, mesmo não sendo uma professora nova. E mesmo que o reitor não tenha informado, eles concluíram que os ouvidos da ‘nova professora’ estavam falidos, pois ela se mantinha impassível diante da ladainha do ‘chefe’, reagindo apenas aos gestos e às mímicas. E, na primeira aula, recebeu um apelido.

Ela chegava à sala, lia cada nome da lista de alunos e, como surda convicta, aguardava que aqueles que estivessem presentes levantassem um braço para que ela pudesse conhecer ou reconhecer cada um dos ‘novos’ alunos. A seguir, escrevia na lousa as tarefas e os exercícios que cobrava com rigor. Na última linha, lembrava aos pupilos que as perguntas deveriam ser feitas por escrito.

Com autoridade, ela exigia disciplina. Isto é, que não saíssem de suas carteiras, que não andassem pela sala. Poderiam falar à vontade, poderiam até gritar. Todavia, sem sair do lugar. Se o olhar dela percebesse algum movimento individual ou se a turma se contorcesse em gargalhadas, ela soltava uns gritinhos e ordenava com energia:

— Meninas, silêncio!

Satisfeita com o controle exercido sobre a turma, abria o livro didático e convocava um aluno para iniciar a leitura, mantendo sempre o dedo magro e trêmulo sobre o nome até um momento imprevisto em que gritava:

— Cêga, menina.

Declamava um segundo nome e vendo alguém se levantar (nem sempre aquele que ela designava), emitia sua palavra de ordem:

— Gontinua.

Nem é preciso dizer que, para cumprir a ordem, bastava um dos alunos permanecer em pé, falando qualquer coisa, como, por exemplo, conversar com o colega ao lado, pois ela só observava se o pseudoleitor movia os lábios. Assim, a leitura de uma página durava uma aula inteira, … sem ser lida.

Naquele dia, o Sirineu estava com os intestinos lotados de gases… que, vez em quando, alcançavam a liberdade… com ruídos e com odores bastante desagradáveis. Numa explosão mais proeminente, até a freira, surda consagrada, conseguiu ouvir o estrondo. Assustada, ela indagou:

— Que foi isso?

— O Sirineu soltou um canhão.

— O qué?

Repetiram, mas a professora Gontinua continuava sem entender e ficava cada vez mais exaltada. Apontaram na direção do réu e, como a turma caísse na gargalhada, exigiu por escrito a razão de tamanha bagunça. Reafirmaram por escrito que o Sirineu soltara um canhão. Ao que ela sentenciou:

— Menina, traga aqui esse objeto.

Na carteira em frente a ele, o Adelar consertava uma bola de capotão, com as mãos trabalhando embaixo da carteira. Sugeriram que ele entregasse a bola para a freira. Ele não aceitou porque ‘a bola não era dele’. Além do que a freira notaria que o autor do trovão tinha sido outro. Queria mesmo era ver o canhão do Sirineu. Alguém disse para o ‘criminoso’:

— Leva uma chinela.

E ele, vermelho e chorando de tanto rir, foi andando com a chinela nas pontas dos dedos das duas mãos até à mesa sobre o estrado. Formavam uma imagem ridícula: o aluno risonho babando sobre a chinela imunda e rota, fedendo como nunca.

Enojada, a freira gritou:

— Isso é um canhão? Como você conseguiu soltar isso? Nunca mais solte canhão durante a aula.

MOMENTOS

A realidade da vida é construída por nosso olhar.

Se olharmos o mundo sempre na mesma perspectiva, veremos sempre as mesmas faces das mesmas coisas.                  

As coisas parecem ser como são vistas, no entanto, teremos novas imagens delas se mudarmos a direção do olhar.

A criança vê o mundo com olhos de novidade, com curiosidade: não se satisfaz com o que vê; explora o objeto e constrói o novo a cada olhar. Não algo inexistente que passa a existir, mas uma nova imagem gerada por um olhar diferente sobre as mesmas coisas.

A beleza e a tristeza, que nascem nos mesmos olhos, são frutos de diferentes formas de olhar.

O medo do novo limita o olhar, condenando a realidade a permanecer o que foi e impedindo que a vida continue; o medo do novo nos mata por dentro.

Poemas são representações de novos olhares sobre uma mesma realidade; são como que fotografias dos momentos que o poeta vive.

(Em parceria com Maria Elisa Ghisi, no livro MOMENTOS.)

TIRANIA DOS HORMÔNIOS

A galinha preta está chocando há semanas. Não há ovos debaixo dela, apenas pernas, dedos, unhas e palha. Se estivesse sobre ovos, estaria ainda mais determinada a proteger o ninho. Quando as outras galinhas atacam, foge das bicadas e se esconde chorando. Raramente se alimenta.

A fisiologia das aves depende de hormônios que comandam outros hormônios para: nascer, se desenvolver, crescer, amadurecer sexualmente, atrair parceiros sexuais, formar ovos, construir os ninhos, botar e chocar ovos, cuidar dos filhotes, … As galinhas não planejam seus ciclos de postura, nem seguem regras estabelecidas por um coletivo de galinhas. Dizemos que elas seguem as leis naturais.

O Sistema Endócrino também comanda a fisiologia dos mamíferos: a fome, a sede e o cio. Os hormônios gerados pelas glândulas determinam a ocorrência e a intensidade dos processos orgânicos, como digestão, crescimento, sexualidade e envelhecimento.

Vez em quando, uma matilha passa pela estrada atrás de uma cadela. Se ela para (pára), todo o séquito para. Os mais exaltados rosnam e distribuem dentadas. Se ela segue por outra estrada ou se ela retorna, os ‘fiéis seguidores’ acompanham. Algumas horas depois, a procissão passa em sentido inverso. Durante alguns dias, a cerimônia será repetida, com pequenas diferenças no conjunto de participantes ou no estado físico dos machos em progressiva exaustão.

Ouvi e vi o apelo de vacas em cio, as lutas dos canários e dos lagartos pela chance de gerar filhos, admirei os cantos de machos chamando as fêmeas na primavera, vi homens e mulheres se enfeitando para parecerem melhores reprodutores. A estatura, a ‘cor dos olhos’, a altivez e os contornos sensuais de seus corpos interferem na disputa por parceiros sexuais. Como ‘seres culturais’, os humanos usam, além dos dotes físicos, os poderes representados pelas riquezas acumuladas: a herdeira de uma fortuna ‘dá melhores frutos’ que uma moça pobre; o dono de um automóvel vistoso atrai mais que um pedestre.

Como diz Beatriz Cardoso Soares, “tudo muito natural”. Sim. É a natureza que faz as ofertas e as escolhas e não a pretensa ‘racionalidade dos animais superiores’. Os hormônios comandam os flertes, os namoros e os acasalamentos. Os feromônios humanos desencadeiam as atrações, as repulsões, a defensividade, a percepção de perigos, a agressividade e os desempenhos sensual e sexual.

Na época em que eu mantinha cabras leiteiras com a ilusória intenção de produzir queijos, um caprinocultor alertou que a catinga do bode desencadeia os ciclos reprodutivos das fêmeas e não o porte físico, a beleza aparente, a produtividade em carne ou em leite. Os feromônios – o bodum – excitava as cabras e o plantel e os lucros aumentavam. Porém, os feromônios (o bodum) diminuíam com o avançar da idade do bode. Ou as cabras se acostumavam demais com o cheiro ‘de sempre’; queriam alguma variação…

Tenho observado que os acasalamentos de humanos ‘ao primeiro cheiro’ ou por ‘atração sexual instantânea’ prosseguem enquanto a produção de hormônios estiver alta. Poeticamente, “amor à primeira vista”. Muitos consumam o casamento. Outros, apenas consomem. Depois, separação, divórcio e a busca por novos parceiros. Será essa a causa da explosão demográfica dos humanos?

Os sapiens sapiens pouco sabem ou nem querem saber que são escravos dos hormônios, que agem e reagem conforme os códigos fisiológicos produzidos pelas glândulas endócrinas; que vivem sob o arbítrio hormonal. Além de serem manipulados por esses ditadores poderosos, os humanos cultivam mais tiranos ainda: a ambição e a vaidade. Além de dominados pela natureza, passam a depender de vícios que eles mesmos criam através do que chamam, orgulhosamente, de Cultura.

Ou seja, os corpos recebem ordens das glândulas endócrinas e se esforçam para mergulhar nos abismos da ambição e da vaidade. Somos conduzidos por hormônios e buscamos, cada vez mais, a beleza atraente e a posse de riquezas e de poderes. Quanto mais somos ou temos, mais desejamos e mais conquistamos. Somos insaciáveis, desequilibrados.

A criação de hormônios e de feromônios sintéticos pode ser considerada mais um exemplo da estupidez humana. Perfumes hormoniosos. Insatisfeitos com o que conquistamos por atração natural, fabricamos e compramos drogas para controlar os processos naturais: para atrairmos, nos sentirmos atraídos e ainda mais ‘felizes’ e poderosos, quase onipotentes. Queremos ser tudo e dominar todos. Qual será o fim dessa escalada de despudor?

ESCOLAS DE ENSINAR E APRENDIZAGENS PRAGMÁTICAS

As escolas de ensinar colocam muros ao redor dos prédios para proteger a verdade acadêmica e a ‘sabedoria consagrada’, do ‘perigo’ de serem entendidas e depreciadas por leigos. Essas escolas e os profissionais que nelas trabalham dependem de leis, de instituições organizadoras e de vigilantes que mantenham e que defendam o ‘ensino tradicional’.

Segundo o Dicionário Houaiss, tradição pode significar “ato ou efeito de transmitir ou entregar; transferência; herança cultural, legado de crenças …; conjunto de valores morais […] transmitidos de geração em geração; em certas religiões, conjunto de doutrinas essenciais ou dogmas […] aceitos por sua ortodoxia e autoridade […] na interpretação (dos fatos)”.

As escolas tradicionais exigem disciplina, frequência e notas mínimas nas provas e nas arguições. Como recompensa pelo sacrifício dos alunos, oferece ajudas financeiras, oportunidades de emprego e diplomas com promessas de maiores salários. Nesse sistema, quem obedecer e seguir estritamente as regras institucionais será considerado bom aluno, mesmo que as teorias acadêmicas possam ser aplicadas apenas em processos escolares e em classificações de intelectualidade.

As turmas do ‘ensino oficial’ são diminutas para proporcionar mais cargos de magistério. Uma turma de vinte energias será menos fecunda do que uma turma de quarenta energias. Porém, mais difícil de convencer e de dominar. Há ensinantes demais, muitos deles, descolados das realidades dos alunos e da comunidade. Nos concursos do magistério, os candidatos buscam boa remuneração e estabilidade funcional, com raríssimas exceções de vocação educadora altruísta.

Organizar o saber e a aprendizagem sobressai como virtude rara dentro e fora das paredes escolares. Sentimos prazer ao aprender; sorrimos de alegria a cada pequena aprendizagem. Podemos aprender sozinhos; na troca de experiências e de ideias, aprendemos mais, com maior rapidez e melhor qualidade. Os aprendizes buscam oportunidades de satisfazer as curiosidades e de resolver os problemas, naturais ou por eles mesmos propostos. Desnecessário cercar e exigir que estudem; estudam sem esforços e estimulam quem com eles convive a desenvolverem atitudes e habilidades.

Aprender resulta em maior e melhor contentamento do que o que sentimos ao sermos ensinados. Ao aprender, resolvemos problemas, satisfazemos necessidades e realizamos nossas potencialidades.

CURSO SALUTAR (para nossa saúde)

   Dor no braço? Qual deles? Importa saber qual braço? O nome da doença? Quando começa doer? Quando alivia? Por que?
Isso é um problema? Quem resolve esse problema? O médico? Os medicamentos? Anestesiar a dor ou descobrir e evitar a causa?
Como era aos vinte anos? Como começou? Qual a tendência? Como prevenir? Ou é melhor esperar o braço cair? O que fazer? Cirurgia? Consumir enganadores das doenças? Ou mudar as atitudes? Reconhecer o envelhecimento e os limites físicos e orgânicos? O que o corpo nos fala? Melhor calar as reclamações do corpo ou tomar consciência dos desgastes pelo excesso de trabalho, pelo estresse?
Quem nos aposenta? O Governo, as empresas ou nós é que devemos saber o momento de reduzir a carga, de fazer diferente, de fazer menos, nos aposentar aos poucos e, depois definitivamente? Vamos planejar a aposentadoria ou aguardamos os ‘prazos legais’? Depois de aposentados vamos viver nos aposentos ou vamos manter o corpo e a mente ativos?
Posso fazer sem ajuda ou vou pedir e contar com ajuda? Continuo ‘sabendo tudo’ ou será mais produtivo dialogar, ouvir pessoas? Ideias coletivas, trabalho em equipe? Heroísmo individual ou trabalho feito por muitas mãos, com humildade e vontade de cooperar?

O PREÇO DOS MORTOS

Como nossos antepassados se sentiam diante da morte e diante do corpo morto de um familiar? Como nos sentimos diante da morte de um amigo? O mesmo que sentimos na morte de um inimigo? Se uma pessoa morrer dentro de nossa casa, deixaremos o corpo ali até só sobrarem os ossos? As doenças que matam continuam ativas nos cadáveres? Há vida após a morte? Acreditamos em reencarnação? No mesmo corpo ou em outro corpo? Ou a alma vai pro céu e fica esperando que o corpo consiga subir pra lá também?

Sou um perguntador quase incansável… Respostas, explicações? Imagino algumas, registro poucas, … Tenho ideias sobre a morte: minha, da Elisa, de outras pessoas importantes para mim, de pessoas com quem mantenho parcerias, de vizinhos, de desconhecidos e de lixos humanos. Vivi algumas experiências de morte na família, de pessoa ao meu lado, de jovens muito jovens pra morrer, de pessoas que prolongam a morte e de outros que antecipam o fim das decepções e dos sofrimentos. Penso muito e tento racionalizar, aceitar que todos morrem. Mesmo assim, sei que essas preparações podem ser insuficientes para suportar a ‘hora derradeira’.

Assisti cenas chocantes de animais ‘irracionais’ diante da morte de um indivíduo do grupo: as reações do grupo às demonstrações de sofrimento do enfermo, do acidentado, do moribundo; a perplexidade e o estranhamento diante da paralisia de um seu semelhante. Será que eles pensam que o outro está morto? Será que eles guardam na memória esses momentos trágicos? Vi animais com medo de morrer e li análises sobre situações registradas. Por observação, sei que os animais têm intuição muito atuante diante de eventos climáticos e de catástrofes. Parece que eles sabem com antecedência quando haverá um terremoto, uma enxurrada, uma avalanche. O que sente uma ave ao presenciar a morte de outra? Alguma espécie de animal ‘irracional’ passa uma noite observando se seu semelhante morreu de fato?

Durante o Século XX, eram construídas casas com salas grandes o suficiente para caber o velório dos familiares, com espaço para caixão, cruz, castiçais, cadeiras e mesa com alimentos para os que ainda não morreram. Ironicamente, durante os anos sem morte na família, a sala do velório era usada como ‘sala de televisão’. Quando, eventualmente, morria um dos residentes, a televisão era retirada para entrar outra morte: o defunto. A televisão mata os diálogos entre os familiares e induz a morte do pensamento crítico.

Outra tradição era velar a pessoa por, pelo menos, vinte e quatro horas. Diziam que era para ‘observar se a pessoa estava morta, mesmo’, ou seja, ela poderia estar numa crise cataléptica. Preocupação baseada em relatos de exumações em que ‘o corpo estava fora de posição’, porque ‘tinha se revirado depois do enterro’.

Lembrando que as flores e as velas são usadas nos ‘guardamentos’ para disfarçar o cheiro do cadáver; catinga natural do ex-vivente e/ou, logo a seguir, indicativo do início de decomposição.

Além dessas crenças e heranças culturais, havia a hipocrisia regada a cachaça e a café. Com a morte, todos ‘se tornavam bons’. Pessoas que ignoravam ou até odiavam quem morreu compareciam ao velório e participavam do enterro. Os primeiros, na ilusão de recuperar os momentos que ‘perderam’ de conviver; os segundos, para terem certeza que o desafeto estava morto, mesmo. Enquanto vivos, temos algum poder, que pode delimitar o poder de outrem. A morte distribui poderes para amigos e para inimigos. Nos jogos de poder, os vazios são ocupados pelos que ainda não morreram. E, quando morrerem, também deixarão vazios.

Em alguns países, em algumas etnias e, em especial, em algumas classes sociais, os cadáveres são mantidos por dias em espaço público para dar tempo de ‘receberem todas as homenagens’. Atitudes similares a participar dos funerais para recuperar o tempo perdido ou o ‘amor’ de quem  morreu. Porque não homenagearam o defunto em vida? Para não dar a ele mais poderes; homenagens pressupõem prestígio, valor social. Podemos elogiar, enaltecer e glorificar os mortos, sem risco de cedermos poder e de ficarmos menos poderosos que eles.

Acredito que, já há milhares de anos, os animais (incluindo o sapiens insapiens) se afastavam dos cadáveres porque percebiam que as doenças poderiam ser transmitidas, mesmo após a morte; ou seja, bacilos, bactérias e vírus continuavam atacando. Mesmo o chorume e as ossadas podiam transmitir doenças infecciosas. Em algumas regiões, havia cemitérios separados (especiais) para leprosos. Talvez, também para outras doenças epidêmicas. A cremação resolve esse e outros problemas.

Em todas as épocas e em todos os continentes, alguns povos enterravam e outros cremavam seus mortos. Talvez, os povos nômades abandonassem os cadáveres e as possíveis doenças latentes; e evitassem, também, o trabalho de enterrar ou de cremar seus mortos. Os mais pobres, até hoje, recebem apenas ‘sete palmos de terra’ sobre o caixão.

Enterrar ou cremar tem custos financeiros: o preço dos caixões, dos túmulos, das lápides de mármore e das capelas. Muitas pessoas reservam dinheiro para a compra do terreno e para a construção do sepulcro ou elas mesmas constroem o jazigo em que querem que depositem o corpo delas; de simples sepulcros a mausoléus imponentes, como as pirâmides. Em alguns casos, os monumentos fúnebres superam as residências em valor e em investimentos; essas pessoas gastam mais com a morte do que para bem viver.

Em geral, os familiares cuidam dos túmulos, capelas e mausoléus. Durante minha juventude, sob o comando da Nonna Luiza, lavei muita cruz e muito mármore. A água era levada sobre carroça puxada por bois, dentro de tambores de ferro; precisava economizar… Também, para ‘economizar, a família comprava ou confeccionava coroas de arame e lata. Assim, no mês de setembro, as coroas eram retiradas do cemitério, passavam por limpeza geral e pelas reformas necessárias, recebiam nova demão de tinta a óleo e voltavam para o cemitério na segunda quinzena de outubro. As cercas também eram consertadas e pintadas.

Mesmo assim, os ossos dos que-já-se-foram não descansavam em paz. Nos primeiros dias após o sepultamento, os tatus-rabo-mole removiam a terra e devoravam os ‘restos mortais’. As formigas saúvas atacavam em qualquer época, formando grandes depósitos de terra vermelha entre os túmulos. Esses animais também espalhavam doenças.

Durante a pandemia de COVID, foram proibidos os velórios e, na sequência, foram promulgadas leis que regulamentam as cerimônias fúnebres, sem ‘guardamentos noturnos’. Assim, são evitados muitos desgastes inúteis e reduzida a transmissão de doenças.

IRMÃOS NÃO-IRMÃOS

Sile soltava gritos de alegria e agitava os braços em direção ao pequeno pássaro de papel colorido que balançava pendurado por um fio. Com a mão direita, segurava um coelhinho de vinil verde claro com tons de branco nas covas das orelhas. De quando em quando, aquietava e, segurando o brinquedo com as duas mãos, mordiscava as orelhas de plástico para coçar as gengivas em que os primeiros dentes forçavam saída.

O berço ainda era seu mundo. Passava as horas se entretendo com tudo que se movesse ao alcance de seu olhar. Depois, na escuridão do sono, revia as cores dos brinquedos, as paredes, as frestas de céu e as árvores próximas da janela.

Porém, mais que as imagens, os sons despertavam nela viva curiosidade: vozes conhecidas, como as da mãe e do pai, barulhos que se repetiam diariamente e o gorjeio dos pássaros no quintal. Sentia prazer ao ouvir as cantigas de ninar e até fechava os olhos para escutar melhor.

Pela manhã, quase todos os dias, algumas vozes diferentes entravam pela janela, vindos sempre da mesma direção; menos harmoniosas e muito mais vibrantes que os gorjeios dos pássaros, quase uma gritaria. Um cantar individual, que, às vezes, recebia a companhia de outros cantares, os quais poderiam chegar a uma cantoria com muitos timbres simultâneos e desorganizados. Ouvia essas cantorias pela manhã, algumas durante a tarde e nenhuma durante a noite. Tinha ouvido também vozes semelhantes, porém, muito mais agudas e aceleradas, como se fossem alertas ou pedidos de socorro.

Ao ouvir esses cantares, ficava em silêncio, só escutando, procurando entender.

Do berço, Sile contemplava as paredes, as janelas e as portas sem poder de ir até elas. No entanto, quando conseguiu se manter sentada sem apoiar as costas, foi posta sobre uma manta estendida no assoalho. Então, sem as grades do berço, Sile viu espaços abertos. Aos poucos, começou a explorar a área: se espichou para alcançar um brinquedo que caíra para além do alcance do braço, deitou de bruços, apoiou as mãos no chão, arrastou as pernas, … por enfim, engatinhou.

Sile ampliava o mundo dela. Porém, as paisagens continuavam menores que seus interesses e o canto dos pássaros continuavam vindo de um lugar que não via. Sile se sentia atraída pelas cantorias; principalmente, por aquelas mais fortes, vindas sempre da mesma direção.

No dia em que foi levada no colo a passear pelo quintal, ouviu de perto uma melodia e conseguiu ver quem cantava: era bem parecido com o passarinho dependurado sobre o berço, mas… movia as asas e o bico.

Foram adiante e ela conheceu as galinhas. Soube que eram galinhas porque disseram que eram galinhas. Eram passarinhos muito grandes, que pareciam assustados com a presença dela. Naquele momento, Sile se apaixonou pelas galinhas.

Passaram-se os meses e Sile começou a andar com as próprias pernas. Primeiro, só até a cerca colocada na porta para impedir que ela fugisse para o quintal; depois, quando já conseguia equilibrar o corpo e andar sobre as irregularidades do pátio, até correu na vã ilusão de que poderia pegar os passarinhos.

Sile cresceu e, com liberdade para explorar o quintal, ia até a tela que prendia as galinhas e ficava falando com elas. No início, elas ficavam assustadas e respondiam com gritos muito diferentes dos gritos das pessoas. (Sile nem percebia que ela também só falava repetições de dizeres incompletos…)  Esse passou a ser seu divertimento preferido: a casa das galinhas.

Num final de tarde, foi com a mãe recolher os ovos que estavam nos ninhos e lembrou que, na cozinha, havia muitos ovos semelhantes e quis saber se todos tinham sido levados dali. Daquele dia em diante, galinhas e ovos passaram a ter uma relação entre si.

Quando já corria com desenvoltura, pulava e até subia nas árvores, Sile cismou com uma galinha que passava o dia todo no ninho e, ao invés de cantar, parecia que chorava. Perguntou ao pai, que lhe disse que ela estava choca. O que seria estar choca? Por que ela chorava?

Parecia ser acontecimento muito importante, porque os pais prepararam com esmero um ninho dentro de uma gaiola, com palhas bem limpas e muitos ovos. Além de visitar várias vezes ao dia o cercado e a casa das galinhas, Sile passou a espiar por uma fresta a galinha choca, sempre muito silenciosa e compenetrada.

Passadas três semanas (Sile aprendera a contar os sábados que passavam…), ela encontrou a choca muito agitada, conversando uma conversa muito estranha e enfiando a cabeça pelo meio das penas, como quem mexe com algo dentro de uma gaveta.

Correu contar aos pais o que vira. Eles disseram que os pintinhos estavam nascendo. Pintinhos? Nunca tinha ouvido essa palavra… O que seriam pintinhos? Naquele dia, Sile soube e foi difícil exigir que se afastasse de perto deles; teve dificuldades para almoçar, para tomar banho e, principalmente, para dormir. Viveu dias de agitação.

Quando conseguiu aquietar, viu que os pintinhos eram muito diferentes uns dos outros; de cores diferentes, alguns eram menores, outros maiores, alguns mais quietos, outros muito agitados, um deles, muito curioso.

Foram dias acompanhando a nova família, os pequenos correndo pela gaiola, aprendendo a comer e, depois, correndo para debaixo da choca, chorando de frio. A choca falava com os filhos e eles pareciam entender. Sile se esforçava para compreender…

Os pintinhos cresceram bem rápido, as penugens foram cobertas por penas mais firmes e as cores foram diferenciando ainda mais um do outro. Sile olhava sem entender: só um se parecia com a mãe, que era preta. Tinha pinto branco, pinto carijó, pinto vermelho, pinto amarelo, pinto de duas cores, pinto de três cores, … Tinha até um sem penas no pescoço e um sem rabo, que o pai chamava de Suro, porque ele não tinha penas grandes no lugar do rabo. Ah! Um deles tinha penas até os pés. “Deveriam ser todos da cor da mãe”, pensava Sile. Perguntou ao pai e perguntou à mãe e eles disseram que era assim mesmo. Não podia ser; deveria haver uma explicação…

Passados seis meses, nenhum deles se parecia com o pintinho do primeiro dia; foram mudando de penas, de tamanho e até de comportamento. Uns ficaram grandões e briguentos; o pai disse que esses eram galos.

Bem mais devagar que os pintinhos, Sile também foi crescendo e, de certa forma, trocando de cor, pois sempre ganhava roupas novas de outras cores e de outros tipos. Começou a frequentar a escola e, depois de se acostumar no meio daquelas crianças, percebeu que elas eram muito diferentes uma da outra, mesmo que o uniforme fosse o mesmo.

Depois do jantar, revelou aos pais a descoberta. Disseram que cada um era parecido com o pai ou com a mãe dele; como não eram irmãos, normal que fossem diferentes. Tudo bem! Os pais deveriam saber mais que ela… Mas… os pintinhos eram irmãos e também eram diferentes um do outro… Os pais sorriram entre si e explicaram: nós escolhemos um ovo de cada galinha que vive no galinheiro e os pintinhos, que hoje já estão bem grandes, ficaram parecidos com a mãe deles. Ué! Então, a choca preta não era a mãe de todos eles?

Sile ficou indecisa e aquietou por uns dias. Observava os galináceos e observava os colegas de escola. Concluiu que não eram irmãos. Todavia, galináceos e crianças se comportavam como se fossem irmãos. Desistiu de interrogar os pais sobre essas grandes dúvidas.

Foi quando ela descobriu que um colega de sala era ‘filho de criação’. Então, pensou muito sobre filhos criados pelos pais e ‘filhos de criação’. Como seria isso? Ficou com vergonha de perguntar para os professores e nem pensava perguntar isso para os pais. Precisava resolver essa questão sem a ajuda de gente grande: uma família poderia ser formada de irmãos e de não-irmãos?

Quanto mais analisava, mais diferenças apareciam. Percebeu que mesmo irmãos poderiam ser bem diferentes entre si.

Você quer ajudar Sile a resolver esses enigmas?

Escrito das 18 às 20 horas do dia 17.04.2023 e reescrito em julho/23.

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