TIRANIA DOS HORMÔNIOS

A galinha preta está chocando há semanas. Não há ovos debaixo dela, apenas pernas, dedos, unhas e palha. Se estivesse sobre ovos, estaria ainda mais determinada a proteger o ninho. Quando as outras galinhas atacam, foge das bicadas e se esconde chorando. Raramente se alimenta.

A fisiologia das aves depende de hormônios que comandam outros hormônios para: nascer, se desenvolver, crescer, amadurecer sexualmente, atrair parceiros sexuais, formar ovos, construir os ninhos, botar e chocar ovos, cuidar dos filhotes, … As galinhas não planejam seus ciclos de postura, nem seguem regras estabelecidas por um coletivo de galinhas. Dizemos que elas seguem as leis naturais.

O Sistema Endócrino também comanda a fisiologia dos mamíferos: a fome, a sede e o cio. Os hormônios gerados pelas glândulas determinam a ocorrência e a intensidade dos processos orgânicos, como digestão, crescimento, sexualidade e envelhecimento.

Vez em quando, uma matilha passa pela estrada atrás de uma cadela. Se ela para (pára), todo o séquito para. Os mais exaltados rosnam e distribuem dentadas. Se ela segue por outra estrada ou se ela retorna, os ‘fiéis seguidores’ acompanham. Algumas horas depois, a procissão passa em sentido inverso. Durante alguns dias, a cerimônia será repetida, com pequenas diferenças no conjunto de participantes ou no estado físico dos machos em progressiva exaustão.

Ouvi e vi o apelo de vacas em cio, as lutas dos canários e dos lagartos pela chance de gerar filhos, admirei os cantos de machos chamando as fêmeas na primavera, vi homens e mulheres se enfeitando para parecerem melhores reprodutores. A estatura, a ‘cor dos olhos’, a altivez e os contornos sensuais de seus corpos interferem na disputa por parceiros sexuais. Como ‘seres culturais’, os humanos usam, além dos dotes físicos, os poderes representados pelas riquezas acumuladas: a herdeira de uma fortuna ‘dá melhores frutos’ que uma moça pobre; o dono de um automóvel vistoso atrai mais que um pedestre.

Como diz Beatriz Cardoso Soares, “tudo muito natural”. Sim. É a natureza que faz as ofertas e as escolhas e não a pretensa ‘racionalidade dos animais superiores’. Os hormônios comandam os flertes, os namoros e os acasalamentos. Os feromônios humanos desencadeiam as atrações, as repulsões, a defensividade, a percepção de perigos, a agressividade e os desempenhos sensual e sexual.

Na época em que eu mantinha cabras leiteiras com a ilusória intenção de produzir queijos, um caprinocultor alertou que a catinga do bode desencadeia os ciclos reprodutivos das fêmeas e não o porte físico, a beleza aparente, a produtividade em carne ou em leite. Os feromônios – o bodum – excitava as cabras e o plantel e os lucros aumentavam. Porém, os feromônios (o bodum) diminuíam com o avançar da idade do bode. Ou as cabras se acostumavam demais com o cheiro ‘de sempre’; queriam alguma variação…

Tenho observado que os acasalamentos de humanos ‘ao primeiro cheiro’ ou por ‘atração sexual instantânea’ prosseguem enquanto a produção de hormônios estiver alta. Poeticamente, “amor à primeira vista”. Muitos consumam o casamento. Outros, apenas consomem. Depois, separação, divórcio e a busca por novos parceiros. Será essa a causa da explosão demográfica dos humanos?

Os sapiens sapiens pouco sabem ou nem querem saber que são escravos dos hormônios, que agem e reagem conforme os códigos fisiológicos produzidos pelas glândulas endócrinas; que vivem sob o arbítrio hormonal. Além de serem manipulados por esses ditadores poderosos, os humanos cultivam mais tiranos ainda: a ambição e a vaidade. Além de dominados pela natureza, passam a depender de vícios que eles mesmos criam através do que chamam, orgulhosamente, de Cultura.

Ou seja, os corpos recebem ordens das glândulas endócrinas e se esforçam para mergulhar nos abismos da ambição e da vaidade. Somos conduzidos por hormônios e buscamos, cada vez mais, a beleza atraente e a posse de riquezas e de poderes. Quanto mais somos ou temos, mais desejamos e mais conquistamos. Somos insaciáveis, desequilibrados.

A criação de hormônios e de feromônios sintéticos pode ser considerada mais um exemplo da estupidez humana. Perfumes hormoniosos. Insatisfeitos com o que conquistamos por atração natural, fabricamos e compramos drogas para controlar os processos naturais: para atrairmos, nos sentirmos atraídos e ainda mais ‘felizes’ e poderosos, quase onipotentes. Queremos ser tudo e dominar todos. Qual será o fim dessa escalada de despudor?

IRMÃOS NÃO-IRMÃOS

Sile soltava gritos de alegria e agitava os braços em direção ao pequeno pássaro de papel colorido que balançava pendurado por um fio. Com a mão direita, segurava um coelhinho de vinil verde claro com tons de branco nas covas das orelhas. De quando em quando, aquietava e, segurando o brinquedo com as duas mãos, mordiscava as orelhas de plástico para coçar as gengivas em que os primeiros dentes forçavam saída.

O berço ainda era seu mundo. Passava as horas se entretendo com tudo que se movesse ao alcance de seu olhar. Depois, na escuridão do sono, revia as cores dos brinquedos, as paredes, as frestas de céu e as árvores próximas da janela.

Porém, mais que as imagens, os sons despertavam nela viva curiosidade: vozes conhecidas, como as da mãe e do pai, barulhos que se repetiam diariamente e o gorjeio dos pássaros no quintal. Sentia prazer ao ouvir as cantigas de ninar e até fechava os olhos para escutar melhor.

Pela manhã, quase todos os dias, algumas vozes diferentes entravam pela janela, vindos sempre da mesma direção; menos harmoniosas e muito mais vibrantes que os gorjeios dos pássaros, quase uma gritaria. Um cantar individual, que, às vezes, recebia a companhia de outros cantares, os quais poderiam chegar a uma cantoria com muitos timbres simultâneos e desorganizados. Ouvia essas cantorias pela manhã, algumas durante a tarde e nenhuma durante a noite. Tinha ouvido também vozes semelhantes, porém, muito mais agudas e aceleradas, como se fossem alertas ou pedidos de socorro.

Ao ouvir esses cantares, ficava em silêncio, só escutando, procurando entender.

Do berço, Sile contemplava as paredes, as janelas e as portas sem poder de ir até elas. No entanto, quando conseguiu se manter sentada sem apoiar as costas, foi posta sobre uma manta estendida no assoalho. Então, sem as grades do berço, Sile viu espaços abertos. Aos poucos, começou a explorar a área: se espichou para alcançar um brinquedo que caíra para além do alcance do braço, deitou de bruços, apoiou as mãos no chão, arrastou as pernas, … por enfim, engatinhou.

Sile ampliava o mundo dela. Porém, as paisagens continuavam menores que seus interesses e o canto dos pássaros continuavam vindo de um lugar que não via. Sile se sentia atraída pelas cantorias; principalmente, por aquelas mais fortes, vindas sempre da mesma direção.

No dia em que foi levada no colo a passear pelo quintal, ouviu de perto uma melodia e conseguiu ver quem cantava: era bem parecido com o passarinho dependurado sobre o berço, mas… movia as asas e o bico.

Foram adiante e ela conheceu as galinhas. Soube que eram galinhas porque disseram que eram galinhas. Eram passarinhos muito grandes, que pareciam assustados com a presença dela. Naquele momento, Sile se apaixonou pelas galinhas.

Passaram-se os meses e Sile começou a andar com as próprias pernas. Primeiro, só até a cerca colocada na porta para impedir que ela fugisse para o quintal; depois, quando já conseguia equilibrar o corpo e andar sobre as irregularidades do pátio, até correu na vã ilusão de que poderia pegar os passarinhos.

Sile cresceu e, com liberdade para explorar o quintal, ia até a tela que prendia as galinhas e ficava falando com elas. No início, elas ficavam assustadas e respondiam com gritos muito diferentes dos gritos das pessoas. (Sile nem percebia que ela também só falava repetições de dizeres incompletos…)  Esse passou a ser seu divertimento preferido: a casa das galinhas.

Num final de tarde, foi com a mãe recolher os ovos que estavam nos ninhos e lembrou que, na cozinha, havia muitos ovos semelhantes e quis saber se todos tinham sido levados dali. Daquele dia em diante, galinhas e ovos passaram a ter uma relação entre si.

Quando já corria com desenvoltura, pulava e até subia nas árvores, Sile cismou com uma galinha que passava o dia todo no ninho e, ao invés de cantar, parecia que chorava. Perguntou ao pai, que lhe disse que ela estava choca. O que seria estar choca? Por que ela chorava?

Parecia ser acontecimento muito importante, porque os pais prepararam com esmero um ninho dentro de uma gaiola, com palhas bem limpas e muitos ovos. Além de visitar várias vezes ao dia o cercado e a casa das galinhas, Sile passou a espiar por uma fresta a galinha choca, sempre muito silenciosa e compenetrada.

Passadas três semanas (Sile aprendera a contar os sábados que passavam…), ela encontrou a choca muito agitada, conversando uma conversa muito estranha e enfiando a cabeça pelo meio das penas, como quem mexe com algo dentro de uma gaveta.

Correu contar aos pais o que vira. Eles disseram que os pintinhos estavam nascendo. Pintinhos? Nunca tinha ouvido essa palavra… O que seriam pintinhos? Naquele dia, Sile soube e foi difícil exigir que se afastasse de perto deles; teve dificuldades para almoçar, para tomar banho e, principalmente, para dormir. Viveu dias de agitação.

Quando conseguiu aquietar, viu que os pintinhos eram muito diferentes uns dos outros; de cores diferentes, alguns eram menores, outros maiores, alguns mais quietos, outros muito agitados, um deles, muito curioso.

Foram dias acompanhando a nova família, os pequenos correndo pela gaiola, aprendendo a comer e, depois, correndo para debaixo da choca, chorando de frio. A choca falava com os filhos e eles pareciam entender. Sile se esforçava para compreender…

Os pintinhos cresceram bem rápido, as penugens foram cobertas por penas mais firmes e as cores foram diferenciando ainda mais um do outro. Sile olhava sem entender: só um se parecia com a mãe, que era preta. Tinha pinto branco, pinto carijó, pinto vermelho, pinto amarelo, pinto de duas cores, pinto de três cores, … Tinha até um sem penas no pescoço e um sem rabo, que o pai chamava de Suro, porque ele não tinha penas grandes no lugar do rabo. Ah! Um deles tinha penas até os pés. “Deveriam ser todos da cor da mãe”, pensava Sile. Perguntou ao pai e perguntou à mãe e eles disseram que era assim mesmo. Não podia ser; deveria haver uma explicação…

Passados seis meses, nenhum deles se parecia com o pintinho do primeiro dia; foram mudando de penas, de tamanho e até de comportamento. Uns ficaram grandões e briguentos; o pai disse que esses eram galos.

Bem mais devagar que os pintinhos, Sile também foi crescendo e, de certa forma, trocando de cor, pois sempre ganhava roupas novas de outras cores e de outros tipos. Começou a frequentar a escola e, depois de se acostumar no meio daquelas crianças, percebeu que elas eram muito diferentes uma da outra, mesmo que o uniforme fosse o mesmo.

Depois do jantar, revelou aos pais a descoberta. Disseram que cada um era parecido com o pai ou com a mãe dele; como não eram irmãos, normal que fossem diferentes. Tudo bem! Os pais deveriam saber mais que ela… Mas… os pintinhos eram irmãos e também eram diferentes um do outro… Os pais sorriram entre si e explicaram: nós escolhemos um ovo de cada galinha que vive no galinheiro e os pintinhos, que hoje já estão bem grandes, ficaram parecidos com a mãe deles. Ué! Então, a choca preta não era a mãe de todos eles?

Sile ficou indecisa e aquietou por uns dias. Observava os galináceos e observava os colegas de escola. Concluiu que não eram irmãos. Todavia, galináceos e crianças se comportavam como se fossem irmãos. Desistiu de interrogar os pais sobre essas grandes dúvidas.

Foi quando ela descobriu que um colega de sala era ‘filho de criação’. Então, pensou muito sobre filhos criados pelos pais e ‘filhos de criação’. Como seria isso? Ficou com vergonha de perguntar para os professores e nem pensava perguntar isso para os pais. Precisava resolver essa questão sem a ajuda de gente grande: uma família poderia ser formada de irmãos e de não-irmãos?

Quanto mais analisava, mais diferenças apareciam. Percebeu que mesmo irmãos poderiam ser bem diferentes entre si.

Você quer ajudar Sile a resolver esses enigmas?

Escrito das 18 às 20 horas do dia 17.04.2023 e reescrito em julho/23.

ÁDVENA

A fruta estava madura, no ponto. A polpa estava deliciosa. E as sementes, muito semelhantes entre si, despertaram no homem a vontade de plantar, de ver as pequenas folhas emergirem, de admirar a planta tenra, de apreciar a folhagem juvenil e de saborear novos frutos, quem sabe?

Movido pelo impulso vital e revivendo sua infância na roça, contemplou as sementes e cedeu ao impulso de colocar algumas para germinar. Durante dias, aguardou a germinação dos óvulos, que iam rompendo os tegumentos até as radículas e a plúmulas surgirem dos embriões. A seguir, acalentou o desenvolvimento das plântulas.

Porém, ao derredor da morada humana, a terra e a Terra haviam sido dominadas e subjugadas por alvenarias e por asfaltos, sem um palmo de solo natural para receber árvores em crescimento.

Da janela, ele contemplava a rua quando percebeu um pequeno buraco ainda não cimentado após o conserto da calçada. Sorrateiro, a olhar para os lados temendo policiamento, ele cavou a terra e, em meio à esterilidade urbana, plantou uma das pequenas árvores.

A partir desse dia, sua função principal era vigiar e regar a árvore-criança com desejos de vicejamento. Temia que os cães satisfizessem as necessidades fisiológicas em cima e ao redor, que as formigas atacassem as folhas tenras, que algum funcionário público ou algum vizinho ‘limpasse’ a calçada. Fatal seria se um pneu esmagasse a vida em seu início.

Vencidos todos esses ‘inimigos’, ele e a árvore comemoraram a preservação da vida. Aos poucos, o arbusto solitário passou a ser ponto de referência, para a família e para os vizinhos. Todos amavam e defendiam a arvoreta, dos perigos da poluição, dos vândalos, das bicicletas e dos pisões. Confiavam que a vida venceria a esterilidade.

Iniciava um longo período de cultivo para que a árvore crescesse livre e sadia. Mesmo com toda a atenção e o carinho do homem, havia dificuldades. Enegrecidas pela fuligem oleosa dos motores e pela poeira dos pneus, as folhas tentavam respirar o gás carbônico liberado pelos pulmões dos estressados que corriam atrás de prazeres imediatos e totais. Poderiam assim contribuir para a redução do ‘efeito estufa’ E as pessoas poderiam sentar à sombra refrescante.

Os cães depositavam líquidos e sais alimentares. Entretanto, os excrementos liberavam odores desagradáveis. A árvore precisava de calor para seu metabolismo; porém, o sol escaldante cozinhava suas raízes sob as lajes de concreto.

Para viver, as plantas se renovam, soltando as folhas caducas e produzindo ramos e folhas novas, uma ressureição cotidiana e contínua. Então, as pessoas esqueciam ‘do grande amor pela Natureza’ e maldiziam as folhas caídas, elementos estranhos naquela perfeição urbana. Desconheciam (ou já tinham esquecido) que as folhas mortas podem virar alimento para as plantas vivas. As pessoas preferiam controlar a harmonia visual.

E mesmo os frutos incomodavam; os humanos preferiam devorar guloseimas açucaradas e bebidas energéticas, turbinadas. Por isso, os frutos amadureciam e caiam ao pé da árvore solitária, atraindo moscas. Havia também, o risco de quem passasse escorregar, cair, se sujar, sofrer fraturas. E as sementes, inconscientes da indignação do povo, começavam a germinar nas gretas das pedras e dos blocos de concreto, ameaçando entupir os bueiros e causar transtornos. A germinação das novas sementes preocupava os humanos que teriam de trabalhar muito trabalho para vigiar, cuidar, arrancar, limpar.

A árvore espalhava ‘problemas’ ao derredor. Então, as intrigas cresceram em volume e acidez contra quem encontrou, cuidou e plantou a semente. Acionados os ‘órgãos públicos’, a ‘Justiça’ montou o competente processo jurídico e os políticos ‘da oposição’ aproveitaram o alarido da mídia para fomentar a campanha eleitoral. Diversas polícias precisariam agir.

A árvore tinha ganho aversão comunitária e precisava ser erradicada, porque desassossegava a urbe. Nada mais incômodo que a ‘vida selvagem’ ocupando os exíguos e caríssimos espaços civilizados, sobrecarregando os serviços públicos e atrapalhando ‘a mobilidade urbana’.

Por mais lógico e simples que fosse arrancar uma árvore, fez-se uma guerra, com os ‘defensores da Natureza’ agredindo a todos que pretendessem ‘limpar a cidade’. Ecologistas que jamais haviam plantado uma semente invadiram as redes sociais e as ruas para vociferar contra os ‘agressores da Vida’. Paradoxalmente, ambos os lados da contenda gritavam ameaças de mortes. Todos tinham razão e ninguém tomava uma gota de senso de realidade.

Foram mobilizados os tribunais supremos e os exércitos policiais. Os julgamentos, transmitidos em tempo real, entretinham a multidão esquecida de seus afazeres e de seus problemas pessoais. Então, não mais a árvore e, muito menos, a semente, eram o foco do problema. A importância da árvore passou a ser as funções sociais que ela sustentava: os tribunais, as câmaras, as assembleias, as ONGs, os influenciadores, os jornalistas e os sindicatos.

Apesar de todos os transtornos para a perfeição urbana, a árvore teria de permanecer incomodando, porque um vegetal perdido na aridez urbana conseguia manter, em equilíbrio dinâmico, uma rede de descontentamentos úteis e lucrativos para os dois lados da contenda. As ‘graves consequências’ de um louco que fez germinar as sementes de uma fruta saborosa mantinham as pessoas vivas e orgulhosas de suas importâncias.

A MORTE DA ROSEIRA

      ROSA COR-DE-ROSA

Em 2005,

ela sobrevivia na fresta da rachadura

de uma pedra submersa

ao lado da entrada do Sítio Itaguá. 

Avaliei o calor que sentiria nas raízes sedentas

e transplantei a velha cepa para solo cultivado.

Ela demonstrou desconforto.

Por isso, em seguida, foi colocada num vaso,

com a possibilidade de ser levada

para a sombra, para a chuva e para o sol,

até que demonstrasse as preferências.

Durante dezoito anos,

migrou de vaso em vaso,

sempre oferecendo flores.

Depois de alguns dias,

os ramos despetalados foram enterrados

e geraram descendência. 

Nesta primavera, definhou e morreu.

Com mãos enlutadas,

retirei o velho tronco e constatei

que o besouro-dourado tinha sugado a seiva das raízes

e que formigas solenopsis tinham roído as cascas das raízes,

causando a falência vegetal.

                Amanhecer do dia 24.12.2023.

ROSA COR-DE-ROSA

       ROSA COR-DE-ROSA

Em 2005,
ela sobrevivia na fresta da rachadura
de uma pedra submersa
ao lado da entrada do Sítio Itaguá.

Avaliei o calor que sentiria nas raízes sedentas
e transplantei a velha cepa para solo cultivado.

Ela demonstrou desconforto.
Por isso, em seguida, foi colocada num vaso,
com a possibilidade de ser levada
para a sombra, para a chuva e para o sol,
até que demonstrasse as preferências.

Durante dezoito anos,
migrou de vaso em vaso,
sempre oferecendo flores.
Depois de alguns dias,
os ramos despetalados foram enterrados
e geraram descendência.

Nesta primavera, definhou e morreu.

Com mãos enlutadas,
retirei o velho tronco e constatei
que o besouro-dourado tinha sugado a seiva das raízes
e que formigas solenopsis tinham roído as cascas das raízes,
causando a falência vegetal.

               Amanhecer do dia 24.12.2023.

O BATISMO DAS ÁRVORES

Anos depois de ter plantado árvores no Sítio Itaguá, eu desejei colocar placas penduradas em algumas delas; principalmente, naquelas que foram quase extintas pelos ‘civilizados’.

Duas razões moveram minha vontade: instruir os que venham a se interessar pelas árvores que havia na região e manter o patrimônio cultural. (Usando ironia, uma figura de linguagem que colocaria as árvores como riquezas do ‘pai’; um preconceito machista.)

Hoje, decidi registrar literariamente esse desejo. Comecei imaginando um título para o texto; O BATISMO DAS ÁRVORES surgiu poeticamente em minha mente. Talvez, eco das pressões remanescentes na cultura de minha família. Porém, o dicionário indicou a total incoerência da expressão cristã, pois, nenhuma árvore nasce com “pecado original”. Muito menos, necessita de “purificação” dos ‘fiéis’. Aliás, a “salvação” das espécies naturais pode estar na condição de serem ‘profanas’. Mesmo assim, mantive o título como instigação para os leitores e escreverei sobre O NOME DAS ÁRVORES DO SÍTIO ITAGUÁ.

Minha intenção, confesso, é publicar a existência dessas árvores; ou seja, tornar público que elas existem e merecem viver. Nesse sentido, o batismo pode ser cerimônia humana útil para a preservação da floresta. Batismos são cerimônias públicas que superam em muito rituais simples e insignificantes; a imersão do corpo ou o banho da testa servem apenas como simbolismo para os humanos ‘convidados’ como testemunhos do compromisso social. O importante será a ‘crença’ dos padrinhos (dos que foram incluídos como pais também) de que reconhecem e devem defender aqueles que foram batizados.

Plantei árvores, que receberão nomes escritos em placas penduradas nelas, com a esperança de que os convidados cuidem das árvores que plantei e continuem plantando vidas responsáveis.

HUMILDADE E ESPERANÇA

Na floresta, os sons dos espaços naturais,
a sensação de privacidade e de paz.

Silêncio relativo.
Orquestra da Natureza, melodias
coletivas, harmoniosas e surpreendentes;
coro multissom: animais, folhas, vento, chuva,
murmúrio do riacho, algazarra da cachoeira.

Sinfonias interrompidas quando
um bicho entoa sua apresentação solo;
os demais silenciam para escutar
gorjeios, pios, trinados, assobios ou
o cantar de bugios, capivaras, cobras,
gambás, graxains, lagartos, lontras,
maracajás, ouriços, ratos ou tatus.


Floresta... Flores? Abelhas...
Flores no chão e flores nas copadas das árvores.
Poucas flores à altura de olhos humanos;
privilégio dos répteis e das aves, tatus e de sabiás.

Para ver flores,
precisamos olhar pra baixo e olhar pra cima.

Um exercício que pode ser útil na Sociedade:
olhar pra baixo e olhar pra cima;
aceitar os pequenos e os grandes;
perceber as dificuldades da pobreza
e temer o poder da riqueza;
rever o passado e mirar o futuro.

ADMIRAÇÃO

   Eu admiro o voo dos pássaros. Posso passar horas, no templo da floresta, con-templando os pássaros em suas ousadias e em suas habilidades voláteis, que representam a real liberdade. Admiro, apenas... não quero estar com eles no ar, não pretendo imitar.
   Admiro os heróis; fujo de heroísmos. Prefiro ser normal, passageiro, substituível e livre de idolatrias. Jamais eterno. Meu corpo e minha mente são finitos. Talvez, minhas ideias se propaguem e sobrevivam ao meu sopro vital...
   Admiro os vizinhos. Admiro apenas. Prefiro ser plateia e auditório dos projetos e das realizações deles, enquanto continuo silvestre, como elemento da Natureza, convivendo com os bichos e plantando sementes.
   Admiro a Primavera. Todavia, o encanto dela está – exatamente – na impermanência, na fugidade das estações e dos ciclos cósmicos. Se, o tempo todo, fosse primavera, já estaríamos cansados do eterno florir. A beleza das flores começa na esperança, no saber esperar, que inclui semear, plantar, regar, cuidar e imaginar. E as esperanças vegetam durante os invernos.
   Procuro saber o que admiro; prefiro ter consciência do que vivo, do que quero continuar vendo de longe, do que quero viver integralmente no dia-a-dia. A beleza e a funcionalidade da vida estão na diversidade, na compreensão dos ciclos... semelhantes, porém, sempre modificados, diferentes em detalhes que fogem ao nosso entendimento. Depois de séculos, identificamos mudanças significativas.
   Se chovesse o tempo todo ou se nunca chovesse, as plantas seriam extintas. A monotonia mata. A monocultura se autodestrói. Inclusive, a monocultura literária.
   Viver para sempre seria a ‘morte de novas vidas’. A soberba humana pode pretender ser eterna; há quem acredite que sua estupidez seja insubstituível.
   O inverno e o morrer são tão importantes quanto a primavera e o nascimento. A ressurreição, então, seria a arrogância de renascer em detrimento de outras vidas, de se intrometer nas gerações futuras.
   O mundo já está superlotado de homo-deuses; para sobreviver, o Planeta Terra precisa que ocorram muitas mortes definitivas, para dar espaço a novas existências.
   Quero viver plenamente o meu agora com o máximo senso de realidade: essa consciência de que sou único, limitado e efêmero.
                                      ***
O prefixo latino ‘ad’ indica “movimento para, movimento em direção de, aproximação, diante de, junto a, ...”
Ad-miror, atus, sum: ad-mirar, intenção e ação consciente de mirar, de “fixar os olhos em, olhar longamente à distância, fazer pontaria”, se esforçar para atingir o ponto central, desenvolver acuidade, ...
                                               8 de setembro de 2020 11:19