DE CORAÇÃO OU DE MENTE?

As pessoas (personagens do teatro da vida) acreditam (ou só repetem ingenuamente) que sentem com o coração. Que o coração é a sede dos sentimentos humanos. De fato, sem o coração, não sentiremos mais nada; quem “perder a barriga”, também. Leio e escrevo com o coração: quando ‘perder’ o coração, não mais lerei ou escreverei. Difícil alguém perder o coração, mas ele pode parar de bombear meu sangue e estarei morto.

Por que não dizemos ‘agradeço de pâncreas’ ou ‘agradeço de cotovelo’, ao invés de dizer “agradeço de coração”?

Se eu escrever que o sistema límbico do cérebro processa nossas emoções e nossos sentimentos, muitos leitores dirão que sou um insensível.

CHORAR, FALAR, ESCREVER, SILENCIAR.

Talvez, eu tenha conversado com minha mãe durante os últimos meses em que estive no útero dela. Talvez. Talvez, minha mãe falasse comigo e, também, meu pai e outros familiares. Talvez, eu tenha sentido o ambiente externo, ouvido vozes, percebido afetos, … Talvez.

Acredito que chorei ao aspirar o primeiro ar. E que continuei chorando até compreender que falavam comigo e reagir com ‘grunhidos’, monossílabos copiados do que eu ouvia. Em seguida, pronunciei os primeiros dissílabos possíveis de interpretar e, depois de meses, aprendi as primeiras palavras.

Durante décadas, desenvolvi a oralidade, a leitura e a escrita, que foram muito úteis para minha sobrevivência, para conquistar autonomia, para escrever textos (e até livros), expondo meus pensamentos, meu modo de estar no mundo.

Continuo revelando minha vida interior, porém, escolhendo as palavras, revelando menos minhas análises, ouvindo as contestações, esperando bastante para interagir, limitando interlocutores e assuntos. Disponibilizo o que falo ou escrevo para quem quiser ouvir ou ler.

Irei silenciando aos poucos … até o silêncio final.

DEUS, UM DELÍRIO … COLETIVO

Eu tenho opinião diferente das opiniões do Richard Dawkins e do Gilvas.
https://mail.google.com/mail/u/0/h/1k1ikw0z3w40a/?&th=16787f1e759d0133&v=c
     Deus existe. Sempre um deus coletivo; nunca ouvi falar em deuses individuais; um deus para si mesmo.

     Existem muitos ‘de eus’; milhares ‘de eus’. Cada vez que algumas dezenas de pessoas se congregam e se concretam numa ‘verdade’, cada vez que algumas dezenas de eus se sentem irresistivelmente atraídos por uma ideia, esse pensamento se torna ‘ideia fixa’ sobre espiritualidade, etnia, identidade de gênero, medo da morte, martírio, futebol, política, penitência, finanças, economia, estrelas, animais, nacionalismo ou liberdade utópica.
     A comunidade adepta constrói um coletivo ‘de eus’ que passa a comandar as subjetividades; pessoas que acreditam em horóscopos, superstições, magias, bruxarias, simpatias, benzeduras, mau-olhado, sucesso, destino, riqueza e compensação celestial.
     Para que uma ideia fixa ou uma crença se torne religião, basta que sejam eleitos guardiões. “Muitos são os chamados; poucos, os escolhidos.” O guardião tem a missão de guardar a verdade que foi divinizada, de proteger os crentes (que, ao acreditarem cegamente, perdem o senso de realidade), de fiscalizar o cumprimento integral das obrigações dos fiéis seguidores e de administrar os tabernáculos que guardam almas e segredos. Daí a existência de confessionários…
     Tudo o que for sagrado deve estar protegido em sacrários. Surgem os templos para abrigar as ‘riquezas espirituais’ e um guardião dos guardiões para organizar a estrutura da igreja; uma hierarquia de guardiões.
     Assim, nascem as religiões: na contínua e cada vez mais intensa convicção da verdade tornada absoluta para pessoas que se prendem indissoluvelmente a um agregado ‘de eus’; pessoas que, guiadas por um salvador, se ligam, se religam e se sustentam em procissão rumo ao paraíso e/ou ao lucro prometidos.
     Pode ser que seja apenas um processo natural, como os processos físico-químicos fundamentais. Quando alguns (ou muitos) elétrons são atraídos irresistivelmente por um núcleo formado por prótons e nêutrons, passam a formar um átomo; quando um ou vários átomos se unem permanentemente uns aos outros, formam moléculas; o aglomerado de moléculas forma matérias, corpos, ligas, artefatos, … reconhecidos internacionalmente.
     Nas Ciências Sociais, as ideias se estruturam em conceitos, teses, sínteses, definições, teorias, doutrinas, … Os cientistas são guardiões das verdades científicas; nesse sentido, os cientistas são os sacerdotes da Ciência.
     “É mais fácil desintegrar um átomo que remover um hábito.” Albert Einstein
     E que diluir uma crença.
     Porém, as instituições (como o dinheiro, por exemplo) só existem enquanto acreditamos nelas.

Notas:

  1. A Bíblia foi a primeira enciclopédia europeia da Humanidade, contendo tudo o que havia sido manuscrito, os textos eruditos, e o que se conseguiu reunir da tradição oral e da sabedoria popular.
  2. De fato, temos imensa dificuldade de assumirmos nossos ceticismos.

Ceticismo, “doutrina segundo a qual o espírito humano não pode atingir nenhuma certeza a respeito da verdade, o que resulta em um procedimento intelectual de dúvida permanente e na abdicação, por inata incapacidade, de uma compreensão metafísica, religiosa ou absoluta do real” Dicionário Houaiss

DEUS SALVE O REI

dEUS salve o rEI

Minha postura é indigna? Seria uma questão política? Salvar a Nação?

Não. Não contem comigo para salvar a Pátria, o Rei, os ministros, os cortesões, os sábios, as concubinas, os sacerdotes, os conselheiros, os pajés, …

Estarei na plateia, rindo dos ridículos governantes.

Peço que me contestem nas divergências… mas… não vale a pena nos indispor por questões políticas.

Vivi sob a égide de uns quinze presidentes, outros tantos governadores e mais prefeitos (não, perfeitos). Pouco tempo perdi “salvando o mundo”. E foi tempo perdido.

Governos são como o clima, as estações, as eras, … Reclamo deles, ironizo seus feitos e efeitos, porém, me adapto às ETERNAS MUDANÇAS… que sempre se repetem.

E eu… procuro não me repetir; vivo ao alcance da minha aura… uma única vida.

A IMAGEM E A ESTÁTUA

O cérebro, através de processos sensitivos, registra na memória imagens (construções mentais de objetos e de acontecimentos), analisadas pela razão ou aceitas “de maneira irrefletida pela consciência imediata” [Houaiss]. Em geral, essas imagens revelam o quanto e o como percebemos a realidade objetiva.

O vocábulo ‘imagem’ descende de ‘imago’, do Latim, imitar. No caso, imitar as características de algum objeto ou fenômeno. Objeto como ação do sujeito pensante; parte do predicado, um atributo, fruto da intuição e da imaginação, formatado de acordo com as categorias do intelecto.

Talvez, por se sentirem inseguros, alguns constroem ou mandam esculpir estátuas das imagens que temem possam fugir da memória deles. Assim, toda vez que esquecerem ou forem tentados a mudar a imagem que formaram de uma pessoa, de um sentimento ou de um fato, eles podem olhar as estátuas correspondentes e voltarem a sentir ‘que nada mudou’, que eles continuam os mesmos, como continua igual a estátua que erigiram.

Platão, em Alegoria da Caverna, analisa como que pessoas presas a imagens ilusórias acreditam conhecer a realidade. Conhecimento ingênuo, frágil diante de análises críticas. E nos força a concluir: “O sábio, depois de desenvolver o conhecimento verdadeiro, sabe apreender, sob a aparência das coisas, a ideia das coisas.”

O ídolo, eleito por seus admiradores, pode rejeitar as imagens que dele fazem, aceitar opiniões alheias ou cultivar a veneração para si mesmo. O cultivo do fascínio pode gerar encantamento e se consolidar em mito.

Muitas vezes, grupos humanos constroem ídolos e se entregam à idolatria. Veneram pessoas e coisas com a convicção de que são sublimes, quase divinas.

Às vezes, nem a morte rompe a quimera. Ao contrário até, pode ampliar e prolongar cultos, gerando mitos.

NOMES IRREALIZADOS

Bem provável que os pais que nomearam de Arlindo o recém-nascido não tenham pensando em oxigênio para os pulmões ou na beleza do invisível. Bem possível que, na velhice, os arlindos estejam mais para feios com arfeios.

Olindo fica ainda pior, porque nasce com cara de placenta, cresce com aparência natural e enfeia com o passar dos anos, merecendo ser chamado de Ofeio.

A PENÚLTIMA ORAÇÃO DO PAI-NOSSO

O pai-nosso é um texto composto de dez orações sintaticamente coordenadas e subordinadas; muito rezadas e reoradas.

Começa com “Pai-nosso, que estais no céu, santificado seja vosso Nome, …”. Exprime o desejo de que seu Nome seja santo; não ele próprio (deus), apenas o Nome. Muito menos o rezador…

“Pai-nosso, que seja santificado vosso Nome” é oração grávida, pois, traz, dentro de si, a oração subordinada adjetiva explicativa “que estás no céu”, esclarecendo que o orador (aquele que ora) está se dirigindo ao pai divino e não ao pai pecador que mora em casa. Importante ressalva, porque os ‘órfãos de pai’ podem ter dois pais no céu: um divino e um cristão. Isso, se o pai terreno, antes de morrer, se arrependeu dos pecados… Ou, talvez, esteja pedindo ao pai divino que corrija o pai humano nada santo, porque comete muitos pecados.

“Venha a nós o vosso reino e seja feita vossa vontade, assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia, nos daí hoje e perdoai nossas ofensas como nós perdoamos a quem nos tem ofendido e não nos deixeis cair em tentação… Mas, livrai-nos do mal.”

Sempre rezo “Livrai-nos do mal” (repito, para mim mesmo e para os outros), a penúltima oração do Pai-nosso (palavra composta; nem pai, nem nosso; apenas o nome próprio da oração) que finaliza com “Amém”, do Hebraico, “assim seja”, declarando a nossa fidelidade e o firme propósito de acreditarmos no que falamos.

Para nós, temorosos humanos (que praticamos o temor a Deus…), reservamos a penúltima oração: “… livrai-nos do mal.” Rogamos que nos livre do mal alheio, parece… Embora (síncope de ‘em boa hora’), possamos sucumbir aos males que causamos a nós mesmos.

O pai-nosso é uma invocação – isso mesmo, uma (in)vocação –, uma não-vocação cristã, que representa a alienação pela fé, a abdicação de assumir a vida real, delegando a um deus as responsabilidades pessoais.

A vocação, ação de chamar de viva voz, apelo, chamamento, pendor, parece insuficiente. Então, os fiéis, conscientes de que não têm vocação, invocam a proteção divina, de deuses que eles mesmos edificam. Se tornam invocados, cismados, desconfiados da própria fé, preocupados, irritados e coléricos, até.

TUMOR DE COLÍRIO

Matusalém Vitalino estendia a vida com medicamentos guardados em duas caixas em vieram acondicionados o último par de sapatos e as botinas para os invernos. Complementava o tratamento com a ingestão de uma jarra de água-benta, acompanhada de rezas santas.

Dentre os medicamentos receitados ‘para o resto da vida’, estava um colírio que manteria a saúde dos olhos, ‘desde que não interrompesse o tratamento’. Inicialmente, o diagnóstico foi ‘glaucoma progressivo’. Com o passar dos muitos anos de ‘cuidados do médico para com o paciente (sic)’, o clínico acrescentou uma catarata reversível, pois o implante de lentes artificiais renderia bem mais que os dividendos distribuídos pela indústria farmacêutica.

A chance de o cirurgião ganhar a bolada de dinheiro dilui-se na visão nítida dos ponteiros do relógio marcando os segundos e das baratas e das formigas que o ‘quase cego’ via andarem pelo assoalho da mesma cor que os semoventes.

Ao médico, restava a fonte de renda auferida com a indicação de venda do colírio e a possibilidade de tratar os efeitos colaterais da medicação.

Demorou o colírio apodrecido durante anos nas covas oculares começar a aparecer por debaixo da pele das pálpebras. Inicialmente, formando pequenas bolotas, identificadas pelo médico como ‘verrugas’ a serem cauterizadas.

As cauterizações rendiam mais que os percentuais recebidos na participação das vendas de medicamentos e contribuíam substancialmente para a manutenção da clínica e dos clínicos. Bastava administrar as doses e as substituições dos quimioterápicos por similares de outras marcas ainda não beneficiadas com a doença cultivada.

Tudo ia muito bem, não fosse aparecer alguém com disposição para ler as bulas e identificar os efeitos colaterais que se manifestavam progressivamente ao redor dos olhos do candidato à eternidade.

Esse alguém agiu em silêncio, trocando o conteúdo do frasco do colírio por soro fisiológico, que continuou a ser administrado com a regularidade costumeira. Os edemas diminuíram em número e tamanho. Os tumores logo desapareceram. Em um mês, o ‘câncer’ sumiu, secando as fontes de renda médica.

Então, os louros (e os lucros) migraram para a Igreja, pois o paciente passou a acreditar que “curou as feridas com muita água-benta e orações” diante da televisão com som em alto volume. Bem-vindos os dízimos de quem sofre!

***

Muitos médicos e todos os sacerdotes cultivam a fé de seus pacientes fieis com ferramentas de mídia e adubos espirituais. Constroem suas lavouras e searas nas mentes ingênuas dos que alimentam esperanças de vida eterna. Para ‘fazer o bem’, cobram dízimos bem mais onerosos que a décima parte dos proventos de aposentadoria. A família complementa a dieta medicamentosa com contribuições financeiras e assistências enfermáticas.

Nota: Os acontecimentos são reais; troquei o nome do protagonista.

LIBERDADE LINGUÍSTICA

Conta-corrente é endereço contábil em instituição financeira; conta corrente é conta que corre.

De que ou de quem? Ou, apenas, estaria com pressa? Ou seria uma conta cujo saldo escorre?

Em linguística, ‘linguagem corrente’ é aquela usada “sem preocupação com a disciplina gramatical; livre de normatização escolar; [linguagem} espontânea”.

INSETO TRANSNACIONAL

Alguém questionou a capacidade técnica do professor Arnaldo, de Geografia, denunciando que ele não preparava as aulas, não tinha plano de aula e que os alunos nada aprendiam.

No dia seguinte, uma equipe da supervisão de ensino chegou à escola de supetão e pôs a diretora Avani em polvorosa. Reação imediata, ela mandou alguém levar, para a sala de aula em que deveria estar naquele horário o professor, um guarda-pó que estava pendurado na sala dos professores e um mapa da Europa, como se fossem pedidos de professor de outra sala de aula.

Ao receberem os ‘materiais didáticos, os alunos ficaram sabendo, por telepatia, que algo iria acontecer, além da chegada do professor que ainda batia chinelos ladeira acima para chegar pouco atrasado. O guarda-pó foi colocado sobre o espaldar da cadeira e despertou curiosidade, pois nunca tinham visto o geógrafo com tal paramento.

Mas, mapa eles conheciam e adoravam viajar mentalmente pelos hemisférios. Por isso, estenderam a Europa no chão da sala e começaram a bisbilhotar os nomes de cada pedaço colorido da carta gráfica.

Nisso, assomou à porta a diretora acompanhada da comissão julgadora, perguntando pelo mestre. “Foi buscar giz” – falou um aluno, pouco antes do Arnaldo entrar com o rosto suado.

Entrou e, percebendo a inquisição, vestiu o guarda-pó da colega bem mais miúda que ele. O mestre ficou literalmente ‘ensacado’. Assim mesmo, assumiu o comando pedagógico da turma que estava debruçada sobre o Mapa da Europa.

Colocados em cadeiras no fundo da sala, o inquiridores acompanhavam a aula, anotando tudo em suas pranchetas. Alunos entusiasmados, formulando muitas perguntas; professor, com conhecimento histórico-geográfico, interagindo com moderação, vez em quando, apontando com o dedo os deslocamentos das fronteiras nacionais motivados e forçados pelas guerras. A produção de interesse e de motivação foi tanta que até os ‘policiais pedagógicos’ se levantavam para ver, por cima das cabeças movediças dos alunos sobre o mapa, se as informações verbais estavam de acordo com as informações gráficas.

A aula por si só já fluía numa dinâmica cheia de energia. E, aí, a Natureza entrou com sua colaboração: um piolho escorregou dos cabelos de um aluno e caiu sobre a Alemanha.

Aproveitando o ‘recurso didático’, o professor Arnaldo desafiou os alunos a narrarem a viagem do inseto anopluro sobre a Europa deitada no assoalho da sala de aula. “Saiu da Alemanha, passou por Praga na Tchecoslováquia, subiu para a Polônia, resolveu voltar para a Ucrânia, talvez estivesse evitando ir pra Rússia por causa do frio, …”

A turma estava no auge de envolvimento didático quando soou o estridente sinal eletrônico determinando o fim da aula. Os alunos soltaram muitos protestos pela interrupção arbitrária da viagem do piolho e os auditores pedagógicos suspiraram antes de anotar os últimos elogios ao mestre espremido dentro em um guarda-pó rompido na parte posterior das axilas.