HISTÓRIA NOSSA DE CADA DIA

   Quem escreve pode registrar, no mesmo formato, diferentes acontecimentos ou, de forma diferente, os mesmos acontecimentos. A primeira afirmação se refere ao estilo e/ou à formatação do texto sobre uma ideia inédita; a segunda admite possibilidades de versões diferentes para a mesma ideia.
Podemos escrever fatos, acontecimentos, notícias, reportagens (que nos reportam a algo), fórmulas, receitas, hipóteses, teses, teorias, interpretações, poemas, crônicas, contos, romances ou ficções.
Apesar de parecer que só algumas da lista sejam invenções literárias, todos os textos registram o que o escritor imagina (imagem mental apresentada). Mentiras e verdades são frutos da imaginação humana. Mesmo as fórmulas e as teorias. Todo texto escrito tem alguma base ou destino no mundo real e diferentes doses de invencionice para preencher lacunas, chamar a atenção ou convencer o leitor.
Realidade, fantasia e intencionalidade são usadas na produção de textos literários. As doses de cada componente serão determinadas de acordo com o objetivo do autor. Às vezes, de forma inconsciente, os escritores deixam a subjetividade mascarar o objeto para atender aspectos técnicos ou interesseiros.
O léxico informa que ficção é “ato ou efeito de fingir; formação, criação, suposição, ...” Imagino que seja recriar os fatos, reconstruir a narrativa histórica, “com intenção objetiva, mas que resulta de uma interpretação subjetiva de um acontecimento, fenômeno, fato etc”. (Dicionário Eletrônico Houaiss)
Os historiadores – do gênero masculino, raramente do feminino – advogavam autoridade histórica, convencidos de que, ao escrever livros de História (com H maiúsculo), prestavam importante contribuição acadêmica à Humanidade.
A maioria advogava, pois, muitos deles já passam a admitir que a História possa ser considerada uma obra de ficção, mesmo que seja de ficção parcial: meias-verdades e meias-mentiras, baseadas em fontes ausentes e interpretações convencionais.
Historiadores opinam sobre fatos históricos. Escrevem e reescrevem a História, interpretando informações alheias; raríssimas vezes, presenciaram algum dos fatos narrados. Em geral, reescrevem, em outro estilo e segundo ideologias atuais, o que autores anteriores registraram como dado histórico, em condições similares.
Os documentos históricos são fragmentos da História: textos que foram gerados e publicados dentro de contextos pouco conhecidos ou, até mesmo, camuflados.
Portanto, o documento histórico é apenas a síntese oficial de um evento muito maior, mais amplo e mais complexo que a coleção de palavras que sobreviveu.
Além do que, as análises e as interpretações posteriores podem reinventar o fato histórico, possivelmente, com grandes distorções em relação ao que de fato aconteceu.
Quais os objetivos e quais as forças sociais que nortearam a edição do documento? Mesmo os verdadeiros. Há provas de que muitos documentos antigos são textos falsos inventados séculos depois para justificar arbitrariedades.
A Bíblia talvez seja uma antologia que reúne um conjunto de interpretações de fragmentos da oralidade e das escritas ideográficas ou pictográficas. A oralidade agrega subjetividades a cada transmissão; ideogramas e pictogramas são linguagens abertas a interpretações sérias, ingênuas ou tendenciosas.
No Curso de História, no início da Década 1970, tentaram me convencer que Heródoto – o “Pai da História” – comparecia a todas as batalhas com o objetivo de narrar com fidelidade as guerras gregas. Será? Viajava de helicóptero? Por sorte, jamais saiu ferido... Cabeça de Vaca e Karl May descreveram minúcias de suas viagens imaginárias pelas américas. Como que uma comitiva, no Século XVI, teria ido a pé pela mata da foz do Itapocu (Atlântico) a Asunción (Paraguai) em dezenove dias??? Escreveram com convicção. Talvez, baseados em relatos de outros que – de fato – estiveram no continente americano... Cabeça de Vaca convenceu reis a entregarem dinheiro e Karl May vendeu muitas cópias de suas histórias fantásticas. Cabeça de Vaca e Karl May forneceram fantasias terrenas para os cristãos europeus.
E, no Curso de Psicologia, no início do Século XXI, tentaram me convencer que a anamnese desvenda o passado; que as anamneses são fatográficos dos acontecimentos pessoais: que as anamneses são registros gráficos de fatos concretamente vividos.
Anamnese, na filosofia platônica, seria “rememoração gradativa através da qual o filósofo redescobre dentro de si as verdades essenciais latentes que remontam a um tempo anterior ao de sua existência empírica”. Consistiria em “esforço progressivo pelo qual a consciência individual remonta, da experiência sensível, para o mundo das ideias”. (Dicionário Básico de Filosofia, Hilton Japiassú e Danilo Marcondes)
Remonta: re-monta, junta os cacos, reconstrói a história. Reinventa a realidade. Realidade que, segundo algumas teorias, já é invenção individual. Como arqueólogos que reconstroem o corpo ancestral com base na anatomia e nos desgastes de um dente e, em seguida, baseados no espectro que eles mesmos criaram, ‘reconstroem’ toda uma civilização. Generalizam as anatomias e as culturas pré-históricas a partir de um fragmento.
Pura ilusão pensar que, ao ouvir uma regressão, estamos visitando o passado autêntico. Do grego, amnésia, ausência de memória. No entanto, psicanalistas e ‘pacientes’ acreditam. Ainda bem que os psicanalisados têm paciência... e fé.
Meu senso de realidade alerta que dezesseis jornalistas, ao relatarem um acontecimento, escreverão dezesseis reportagens diferentes, colorindo os fatos com seus pontos de vista. Contemplarão as cenas da posição em que estiverem, baseados em crenças pessoais, atendendo convenções sociais e regras de grupos interativos, guiados por convicções políticas, em busca de objetivos imprecisos: o futuro desejado. A maioria deles mencionará o que ouviu dizer, o que as fontes informaram... por critérios outros, quase sempre, subjetivos.
Na meia-idade, passei uma década sem revisitar minha Terra Natal. Quando regressei, ‘as curvas do rio estavam diferentes, com tamanhos, dimensões e direções que contrariavam minhas propaladas lembranças. Apenas o sentido da correnteza era o mesmo.’ Porque, meus sentidos mostravam que o que eu havia sentido, guardado e contado a tantos ... era o que eu sentia ao contar o passado, ao descrever o ausente. Ao falar para quem nunca esteve lá, eu descrevia minhas nostalgias e não as situações e os acontecimentos reais vividos no passado.
Minha mente – sem más intenções ou segundas intenções – contava meias-verdades, verdades parciais ou, até mesmo, inventava histórias, interpretava cenários e fatos, procurando dar veracidade e brilho às minhas ingênuas lembranças.
Se até eu mesmo me assusto com variantes, atalhos, desvios e volteios que, involuntariamente, crio, vamos imaginar as possíveis transigências de um repórter que se reporta a lugar que nunca esteve e a experiência que nunca viveu... Mesmo que o jornalista esteja presente em todo o transcurso, sempre descreverá as impressões e as intenções pessoais ou os mandados do editor, do dono do jornal, do dono da revista, chefe do partido político, do comitê científico, ...
Os historiadores registram ‘oficialmente’ as opiniões deles sobre o que aconteceu no passado; alinhavam as informações que coletaram, preenchendo os vazios do quebra-cabeça com suposições de enredo histórico. Como meteorologistas que tentam prever as variações climáticas, sem jamais se reportarem às previsões erradas...
Todos os textos escritos contêm doses de ficção; quanto mais convincentes, mais fictícios podem ser. O perigo do convencimento está em encantar o leitor com aparências de realidade. Basta recortar e comparar afirmações de um mesmo livro de História para encontrar discrepâncias e, até, contradições.
Quando leio poemas, contos e romances escritos por pessoas com quem convivi, percebo a distância entre o que eles dizem que viveram (e escrevem em seus livros e autobiografias) e o que de fato aconteceu. (Ou eu também estarei divagando?) Se eu fosse louco de tomar como realidade o que escrevem meus colegas escritores, estaria corroborando e colaborando para convencer os leitores de que aquilo foi – de fato – o que aconteceu e que, naquela época, as pessoas viviam daquela forma. Que o mundo teria sido aquele. Sim. Em parte, pode ter sido. Os floreios são fantasias.
Se não devo confiar nem na minha memória do que vivi, como vou confiar no que os outros escrevem do que os nossos ancestrais viveram? Se minha memória trai a mim mesmo, quanto posso enganar a quem lê o que escrevo?
Então, nas redes sociais ... precisamos ler com espírito crítico.

livrosdomariotessari.me/Vamos Pensar?

A IMAGEM E A ESTÁTUA

QUASE DO ALTO DA MONTANHA

   Minha meta era chegar ao topo da montanha. Estava confiante. Sai bem cedo. Muitas pessoas queriam me ajudar nessa empreitada e sobravam ofertas. Bem agasalhado, com os pés protegidos e com o olhar curioso, dei os primeiros passos com vontade de ir longe e de ir por minha conta.
A caminhada inicial foi faceira. Eu andava solto, sem memórias a carregar. Os moradores das duas beiras da estrada me ofereciam frutas e orientações. Por pressa ou por ilusão de suficiência, pouca coisa aceitei e segui com determinação.
Nas planícies pontilhadas de casas que abrigavam muitas pessoas sorridentes, os campos cultivados emendavam uns nos outros, preenchendo as distâncias que meus olhos conseguiam abarcar. Ali, não via espaço pra mim; teria de seguir procurando meu lugar.
Como trazia o estômago cheio e encontrava ar fértil para efetivar as trocas gasosas, caminhava resoluto, devorando distâncias, sem analisar meus passos e as infinitas possibilidades de caminhos a tomar. Apenas, pisava firme, seguindo adiante, levantando os olhos, vez em quando, para mirar as escarpas que pretendia alcançar. Ainda, com pouco planejamento.
Empurrado pelo entusiasmo, galguei as primeiras elevações, donde poderia avistar os campos adjacentes, mas... nem lembrei de olhar para trás. Urgia andar depressa, sem paradas para beber água, pois o relógio de sol deslizava continuamente.
Subi nos primeiros contrafortes que sustentavam a base da cordilheira e me senti o máximo: um vencedor, para o qual, os obstáculos seriam apenas desafios. Naquele momento, vencer a dificuldade de continuar a escalada rumo ao ápice.
Enquanto a inclinação do terreno exigia pouca obliquidade das solas dos sapatos, mantive a inconsciência da existência de meus pés. Também, desconsiderava o derredor e a possibilidade de outros estarem percorrendo trilhas paralelas aos meus rastros ou convergentes ao meu alvo.
A elevação permitia, cada vez mais, vislumbrar paisagens e eu poderia apreciar as belezas primaveris. Mas... era tempo de caminhar... no qual, não cabiam devaneios poéticos: deveria baixar a cabeça e andar e andar e andar...
Andava já com algum peso nas pernas. O ar se fazia menos denso e o calor fustigava minhas costas. A mente perdia as convicções, as ideias começavam a esmaecer e o crescente silêncio afastava comentários e palpites. Pude, assim, continuar minha escalada sem contestações.
As argilas macias pisadas no início da jornada deram lugar a cascalhos, seixos e areião. Acima, avisto saibro, pedras soltas, algumas lajes que se mostram em parte. Terei de ter mais cuidado ao firmar os pés no solo instável; um escorregão pode provocar alguma queda e arranhões doloridos.
Ultrapassadas as primeiras montanhas, encontrei pedras firmes, em aclive crescente, que força meus tornozelos e estica as panturrilhas. As dificuldades passam a calibrar o ímpeto de avançar. Comecei a analisar atalhos, por critérios de segurança e para economizar energias.
Na planície e nas rampas suaves, eu deixava os braços balançarem as mãos ociosas, mantendo sem esforço o prumo do corpo. Ao transpor as colinas, precisei usar braços e mãos para fazer contrapeso ao desequilíbrio alternado pelos passos sobre o terreno irregular, como um equilibrista sobre o trilho estreito. A velocidade da marcha se reduzia com o aumento gradual de dificuldades. Ao mesmo tempo em que minha soberba definhava.
Restava pouca água no cantil e eu olhava menos para cima. Vez ou outra, parava para contemplar as encostas pedregosas mais abaixo, encobertas por vegetação luxuriante. Todavia, meu objetivo cobrava coragem para prosseguir. Mesmo sentindo cansaço, substituía os ímpetos iniciais por esforços para salvar o orgulho.
Quanto mais alto, mais só e mais fraco. As companhias das planuras, as frutas oferecidas ou disponíveis nas árvores nativas e a brisa agradável foram substituídas por vento inclemente, sol abrasador, espinhos traiçoeiros, pedras roliças e ameaças de quedas acidentais.
Parei e, pela primeira vez, contemplei as lonjuras. Procurei em vão pela trilha que segui. Nada. Nem sinal. Consegui apenas imaginar por onde havia passado. Nenhum sendeiro de brilho deixado pela minha inglória passagem. Sem enxergar pessoas perto das casas; via apenas bovinos esparsos pela pastagem. Os humanos e os ruminantes deveriam ter buscado abrigo nas sombras. Sombras que eu tanto desejo agora que estou coberto de luz.
Ah! Por que não circulei pela planície com humildade e modéstia? Do alto do meu isolamento, procuro em vão pelas companhias da minha juventude. Os amigos de infância desapareceram quase todos e os que restam estão tão esquisitos, irreconhecíveis. Fomos colegas? Fomos amigos?
Sem colegas, sem amigos, sem vizinhos, sem esperanças, sem futuro... no alto de mim mesmo.
Mario Tessari no livro VAMOS PENSAR? – página 158
https://livrosdomariotessari.me/vamos-pensar/

CISCO NA PLATEIA

   Pedro participava das atividades da Associação consciente de que poderia evoluir e contribuir para as melhorias educacionais.
Além das reuniões mensais para estudo de alternativas didáticas a serem testadas nas práticas pedagógicas, uma vez por ano, acontecia o grande evento, para os quais eram convidados palestrantes titulados de renome nacional, com trabalhos publicados sobre novas teorias de ensino-aprendizagem.
Para o IX Seminário de Ideias Inovadoras, foi convidado um professor catedrático da mais afamada universidade do País, pós-doutor em instituição norte-americana e autor de um trabalho científico com o sugestivo título: OS DETALHES PODEM MUDAR A EDUCAÇÃO.
Porém, o preço da palestra abarcava valores acima de qualquer detalhe. Por isso, os associados buscaram patrocínios e desembolsaram parte de suas economias para poder contar com informações que poderiam mudar as perspectivas salariais deles.
Como pessoa importante, o intelectual exigiu tratamento principesco e impôs condições adicionais: o espaço reservado ao público deveria estar completamente tomado e todos deveriam ouvir a exposição erudita no mais completo silêncio.
Depois de lida a extensa lista de títulos e de qualidades do palestrante, ele iniciou a explanação do tema contratado: INFLUÊNCIAS DO PROFESSOR NAS DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM DO ALUNO.
Imaginava-se que ele fosse revelar soluções para os desafios escolares daquela época.
No entanto, o pós-doutor divagou sobre as ideias brilhantes desenvolvidas durante o período em que ‘esteve no exterior fazendo o pós-doutorado’. O monólogo desfaleceu a curiosidade dos silenciosos espectadores, que já lutavam contra os cochilos. Então, minúsculos bilhetes começaram a circular, encaminhados ao mais ousado daquela plateia, sugerindo que ele interrompesse o solilóquio monocórdio com alguma pergunta ácida.
Inicialmente, evitando aceitar o papel de algoz, o instigado conteve-se. Entretanto, o palestrante apenas preenchia o tempo com palavras descompromissadas e o porta-voz eleito por unanimidade também perdeu a paciência, ergueu a mão e solicitou o direito de interromper a cantilena.
Como foi escrito acima, não interromper o palestrante estava entre as condições exigidas por ele. Por isso, exasperou-se; quase enfureceu-se. O corajoso psicopedagogo aproveitou o silêncio da autoridade autoritária para perguntar: “Qual o título da sua tese de pós-doutorado?”
A fúria saltou pelos olhos do palestrante. Fúria que encorajou ainda mais o inquiridor: “Qual o título da sua tese de pós-doutorado?”
Talvez temendo maiores terremotos ou na esperança de esmagar o insignificante professor com o peso de seu trabalho científico, o palestrante remexeu os papeis sobre a mesa e, depois de olhar energicamente para o interlocutor, leu o que estava escrito na capa do documento:
Função da ducentésima vigésima sétima letra da página trezentos e doze do quinto livro da Enciclopédia Universal no contexto das ideias desenvolvidas no capítulo dezessete do livro dois, que trata da síntese epistemológica das hipóteses de universalização dos conhecimentos do ser humano a respeito da formação geológica do período interglacial.
Dentro das condições contratadas, o restante do público manteve o mais absoluto silêncio. O que favoreceu ao porta-voz emitir uma segunda pergunta: “O senhor está falando da sua tese de pós-doutorado ou do tema que consta aqui na programação do evento?” (E mostrava o prospecto.)
Aí, já era demais! Um professorzinho insignificante questionar os caminhos usados para se chegar às causas das dificuldades de aprendizagem...
O palestrante buscou com os olhos o apoio da Presidenta da Associação para rebater a arrogância do insolente, que continuou a molestar: “Pelas suas próprias palavras, fica evidente a distância entre o que esperávamos ouvir como ferramenta para nossas ações educativas e as profundezas do foco de sua tese de pós-doutorado.”
A situação gerou profundo mal-estar na plateia. Apesar da evidente distância entre o tema contratado e a autopromoção do docente da famosa universidade, a maioria dos psicopedagogos reagiu com indignação. Os mesmos que mandaram bilhetes instigando o desmascaramento do convidado bem-pago sem proveito pedagógico se levantaram contra Pedro, como se fosse ele o único insatisfeito com a nulidade da palestra.
A unanimidade mudou de lado. De repente, a plateia levantou-se em defesa da honra do palestrante e exigiu que o insolente se retirasse, em silêncio. Antes de tudo o respeito à hierarquia dos títulos acadêmicos; logo em seguida, a benevolência para com o convidado.
Pedro pôs-se em pé, passou pela mesa oficial, e, com olhar cínico, varreu os colegas psicopedagogos. Carregando sua pasta recebida na inscrição para o IX Seminário de Ideias Inovadoras, caminhou resoluto para a porta, chegou ao estacionamento, embarcou no automóvel e foi para casa.
No dia seguinte, recebeu o comunicado de que fora banido da Associação.

QUEM MANDA?

— Quem manda?
— Manda quem paga.
— Ué! Os políticos mandam e ainda ganham um bom dinheiro...
— Verdade. E existem outras situações semelhantes.
— Mas, vamos analisar na prática. O dono da oficina mecânica é que decide quando e o que fazer no teu carro? Ou é você que procura a oficina, negocia os preços, encomenda os serviços e, estando de acordo, manda fazer?
— Sim. Eu mando arrumar o carro... E, se o serviço for feito conforme foi combinado, eu pago.
— Se você vai à barbearia, quem é que decide o que fazer? Você ou o barbeiro?
— Eu é que digo: Apare a juba. Corte mais ali, menos aqui. Depois, se eu quiser, ainda mando aparar a barba.
— E sai sem pagar?
— Não. Pago certinho. Já sei o preço...
— Mas quem decidiu o que fazer?
— Eu, é claro.
— Você mesmo constrói a tua casa ou paga alguém pra construir?
— Faço alguns remendos... Mas, a casa toda, não faço. Contrato um construtor.
— E o construtor faz o que bem quiser?
— Não. Só faz o que eu quero. Mando fazer de alvenaria ou de madeira, com laje ou sem laje, do tamanho que quero, com telhado p’um lado ou p’ro outro, ...
— E paga a mão-de-obra e os materiais de construção?
— Claro. Mandei fazer. Por isso, devo pagar.
— Quando você vai ao dentista?
— Vou quando preciso arrumar algum dente.
— Você é que indica o dente ou os dentes a serem tratados?
— Sim. Eu é que digo qual o dente. E só faço o tanto que tiver dinheiro pra pagar.
— E quando vai ao médico?
— Bem. No médico, é bem diferente. Lá não adianta falar nada. Lá, são eles que sabem...
— Ou seja: o médico é que decide o que fazer?
— Sim. Ele é doutor. Eu sô meio analfabeto...
— Então, ele faz o que quer e manda o que fazer?
— É.
— No fim, você paga a conta?
— Conta pesada. Muito dinheiro... muito exame...
— Então, ele manda e você é quem paga?
— Pois é. É a vida...

O DIREITO AUTORAL DAS SEMENTES

As palavras e as ideias são de domínio público, sem direitos autorais. O direito autoral é do texto, que pode ser uma leitura ou releitura, escritura ou reescritura. Há, também, textos totalmente inéditos, cuja autoria deve ser reconhecida.

As aves e as árvores não se preocupam com a ‘maternidade/paternidade’ das sementes; elas apenas contribuem para a continuidade da vida.

Os seres humanos, com suas imbecilidades, é que lutam e brigam por vitrines, palcos, passarelas, aparências e vaidades.

PANEGIRO

     Comemorar. Lembrar prestando homenagem. Festejar. Guardar na memória. É isso que pretendo falar, da nossa homenagem a um profissional que há muito tempo se preocupa com a Educação, com a emancipação intelectual – o professor Mario Tessari.
Professor que nos provocou com os primeiros estudos sobre a necessidade de definir critérios para o que é fundamental em educação: a intervenção no fazer pedagógico. Assim, ensinou-nos que a Educação, além, é claro, de fornecer instrumentos para o educando atuar no mundo ou em uma profissão, necessita torná-lo capaz de reconhecer aquilo que não tem valor apenas imediato: uma Educação que visa conhecimento e reflexão.
Professor comparado ao grande personagem, professor Jacotot, da obra O Mestre Ignorante, de Jacques Rancière. Um mestre que ignora as diferenças porque sabe que todos podem aprender, independente do caminho que escolherem, mas que também tem confiança naquele que “está sempre na porta” – o professor.
Podemos definir Mario Tessari como uma figura antagônica. Ao mesmo tempo em que o amamos o odiamos. Às vezes, como Jacotot, dá-nos as coordenadas e espera. E nós – a exemplo dos alunos do professor homenageado por Rancière – buscamos, sofremos, nos indignamos, mas, ao final, o surpreendemos! Jacotot também teve esta memorável experiência.
O Professor Mario a cada visita exorciza nossos corpos até fazê-lo vivo e percebido por nós mesmos. Ensinou-nos a tecer nossa história de educandos, mas muitas vezes nos deixa na solidão quando não se contenta apenas com nossos relatos e nos tira do lugar ao perguntar: “O que vês, o que pensas, o que fazes disto?”.

O SABOR DO SABER

O prazer de aprender
nos leva a provar o gosto
de todas as dúvidas,
ao sabor da curiosidade.

Muitos consideram amargo
o gosto da dúvida,
porque sofrem
de medo do desconhecido.
Por preguiça de pensar,
preferem vegetar
na zona de conforto
da mediocridade.

Precisamos ir ao desconhecido
para provar o sabor
e saber o gosto dele,
para gostar ou não.

Precisamos provar,
para aprovar ou não aprovar
esse novo por conhecer
e o antigo que desconhecemos.

Precisamos selecionar alguns saberes
para construir caminhos
que nos levem ao desconhecido;
precisamos utilizar o velho
para gerar novidades;
precisamos repensar o já-pensado
e pensar o ainda-por-pensar.

Precisamos pensar
o velho de um jeito novo.

Pessoas acomodadas
se satisfazem
com ideias engessadas.

Pessoas insatisfeitas
conseguem satisfação
na procura de respostas
para as dúvidas.

Os satisfeitos vivem de mesmice;
são pessoas cansadas
que se alimentam
de pensamentos sintéticos.

Do livro POEMAS DE MARIO TESSARI QUE EU GOSTO – MARIA ELISA GHISI

Nova Trento

Carta aos alunos da Escola Francisco Mazzola, em 17 de agosto de 2002

“Cada ser em si carrega o dom de ser capaz, de ser feliz.”    Almir Sater

O conhecimento nos leva à existência.

Antes de estar com vocês, eu não os conhecia e, provavelmente, vocês não me conheciam. Por isso, não existíamos um para o outro. Não podíamos pensar um no outro, porque não tínhamos uma idéia do outro ainda não conhecido. Há magia no ato de conhecer: o ato de conhecer dá existência a quem e ao que assumimos como conhecido. Só agora existimos um para o outro. Logo, a existência não é uma decisão individual; ela é uma construção coletiva.

Como quando conversamos, no início desta semana, vou analisar algumas palavras. Falamos em amizade e ela me transporta para a palavra comunhão: a união dos que têm objetivos comuns, crenças comuns; os mesmos ideais. E comunicação é o agir coletivo dos que comungam dos mesmos ideais. Já confusão quer dizer aquilo que se fundiu, se misturou, que perdeu a ordem; incapacidade de reconhecer diferenças, falta de clareza.

Precisamos estar em comunhão sem nos fundir com o outro, sem nos anular. O “nós” é constituído da união dos “eu”. Precisamos estar juntos, construir juntos, mas sem perder a nossa identidade. Jamais haverá um “nós” forte se não construirmos um “eu” sólido e solidário. A sociedade será tão ética e tão cooperativa quanto éticos e cooperativos forem seus sócios.

Falamos também na palavra competência: “qualidade de quem é capaz de apreciar e resolver certo assunto, fazer determinada coisa, …”  Uma das metas que a maioria de vocês estabeleceu, para esse ano, foi “passar de ano”. Vocês têm competência para “passar de ano”, porque são capazes de analisar e dar solução para todas as tarefas escolares.

O ano passa todo mês, toda semana, todo dia, toda hora, todo minuto, todo segundo… Por isso, a todo momento, precisamos fazer o que precisa ser feito, da melhor maneira que pudermos e com prazer. Só podemos ter interesse e sentir prazer por aquilo que conhecemos, a começar por nós mesmos. Conhecer a nós mesmos é tomar consciência de nossas capacidades, de nossas habilidades e principalmente do que queremos, do nosso projeto de vida. Conhecer a nós mesmos implica em tomar consciência de como e de quando sentimos alegria ou tristeza, de como e de quando aprendemos, de como nos vemos e de como somos vistos.

Somos estranhos de nós mesmos: não reconhecemos as nossas reais capacidades e acabamos nos subestimando, nos fazendo menores do que somos. Por isso, fazemos menos e vivemos menos.

Outra meta estabelecida “para a vida toda”, pela maioria, foi: ser feliz.

Felicidade não é um lugar no futuro. Em cada momento, em cada lugar e com cada pessoa, a felicidade é outra. As felicidades são muitas. E estão à nossa disposição. A felicidade é como a água de uma fonte: vai passando pelas nossas mãos. Só conseguimos aproveitar uma pequena porção da água; a maior parte vai embora. Quando estamos com muita sede, toda água é boa. Parece que nossa sede de felicidade é pequena, porque deixamos que a felicidade cotidiana escorra pelos nossos dedos, esperando por uma felicidade perfeita, que está à nossa espera, em algum lugar, no futuro. Precisamos aproveitar e viver a felicidade de agora, com as pessoas com quem estamos, senão essa chance se perde e não poderemos mais viver o momento que passou.

Amigo não é aquele que aceita o outro como o outro é. Amigo é aquele que, conhecendo o outro, valoriza as qualidades do amigo e que propõe, com ele, trabalhar para reduzir os defeitos e preencher as falhas. Amigos constroem, em conjunto, os conhecimentos, as habilidades e os valores necessários à felicidade.

Juntos, vamos construir as competências necessárias para uma vida feliz.

Mario Tessari

SER-VIL