INSETO TRANSNACIONAL

Alguém questionou a capacidade técnica do professor Arnaldo, de Geografia, denunciando que ele não preparava as aulas, não tinha plano de aula e que os alunos nada aprendiam.

No dia seguinte, uma equipe da supervisão de ensino chegou à escola de supetão e pôs a diretora Avani em polvorosa. Reação imediata, ela mandou alguém levar, para a sala de aula em que deveria estar naquele horário o professor, um guarda-pó que estava pendurado na sala dos professores e um mapa da Europa, como se fossem pedidos de professor de outra sala de aula.

Ao receberem os ‘materiais didáticos, os alunos ficaram sabendo, por telepatia, que algo iria acontecer, além da chegada do professor que ainda batia chinelos ladeira acima para chegar pouco atrasado. O guarda-pó foi colocado sobre o espaldar da cadeira e despertou curiosidade, pois nunca tinham visto o geógrafo com tal paramento.

Mas, mapa eles conheciam e adoravam viajar mentalmente pelos hemisférios. Por isso, estenderam a Europa no chão da sala e começaram a bisbilhotar os nomes de cada pedaço colorido da carta gráfica.

Nisso, assomou à porta a diretora acompanhada da comissão julgadora, perguntando pelo mestre. “Foi buscar giz” – falou um aluno, pouco antes do Arnaldo entrar com o rosto suado.

Entrou e, percebendo a inquisição, vestiu o guarda-pó da colega bem mais miúda que ele. O mestre ficou literalmente ‘ensacado’. Assim mesmo, assumiu o comando pedagógico da turma que estava debruçada sobre o Mapa da Europa.

Colocados em cadeiras no fundo da sala, o inquiridores acompanhavam a aula, anotando tudo em suas pranchetas. Alunos entusiasmados, formulando muitas perguntas; professor, com conhecimento histórico-geográfico, interagindo com moderação, vez em quando, apontando com o dedo os deslocamentos das fronteiras nacionais motivados e forçados pelas guerras. A produção de interesse e de motivação foi tanta que até os ‘policiais pedagógicos’ se levantavam para ver, por cima das cabeças movediças dos alunos sobre o mapa, se as informações verbais estavam de acordo com as informações gráficas.

A aula por si só já fluía numa dinâmica cheia de energia. E, aí, a Natureza entrou com sua colaboração: um piolho escorregou dos cabelos de um aluno e caiu sobre a Alemanha.

Aproveitando o ‘recurso didático’, o professor Arnaldo desafiou os alunos a narrarem a viagem do inseto anopluro sobre a Europa deitada no assoalho da sala de aula. “Saiu da Alemanha, passou por Praga na Tchecoslováquia, subiu para a Polônia, resolveu voltar para a Ucrânia, talvez estivesse evitando ir pra Rússia por causa do frio, …”

A turma estava no auge de envolvimento didático quando soou o estridente sinal eletrônico determinando o fim da aula. Os alunos soltaram muitos protestos pela interrupção arbitrária da viagem do piolho e os auditores pedagógicos suspiraram antes de anotar os últimos elogios ao mestre espremido dentro em um guarda-pó rompido na parte posterior das axilas.

CISCO NA PLATEIA

   Pedro participava das atividades da Associação consciente de que poderia evoluir e contribuir para as melhorias educacionais.
Além das reuniões mensais para estudo de alternativas didáticas a serem testadas nas práticas pedagógicas, uma vez por ano, acontecia o grande evento, para os quais eram convidados palestrantes titulados de renome nacional, com trabalhos publicados sobre novas teorias de ensino-aprendizagem.
Para o IX Seminário de Ideias Inovadoras, foi convidado um professor catedrático da mais afamada universidade do País, pós-doutor em instituição norte-americana e autor de um trabalho científico com o sugestivo título: OS DETALHES PODEM MUDAR A EDUCAÇÃO.
Porém, o preço da palestra abarcava valores acima de qualquer detalhe. Por isso, os associados buscaram patrocínios e desembolsaram parte de suas economias para poder contar com informações que poderiam mudar as perspectivas salariais deles.
Como pessoa importante, o intelectual exigiu tratamento principesco e impôs condições adicionais: o espaço reservado ao público deveria estar completamente tomado e todos deveriam ouvir a exposição erudita no mais completo silêncio.
Depois de lida a extensa lista de títulos e de qualidades do palestrante, ele iniciou a explanação do tema contratado: INFLUÊNCIAS DO PROFESSOR NAS DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM DO ALUNO.
Imaginava-se que ele fosse revelar soluções para os desafios escolares daquela época.
No entanto, o pós-doutor divagou sobre as ideias brilhantes desenvolvidas durante o período em que ‘esteve no exterior fazendo o pós-doutorado’. O monólogo desfaleceu a curiosidade dos silenciosos espectadores, que já lutavam contra os cochilos. Então, minúsculos bilhetes começaram a circular, encaminhados ao mais ousado daquela plateia, sugerindo que ele interrompesse o solilóquio monocórdio com alguma pergunta ácida.
Inicialmente, evitando aceitar o papel de algoz, o instigado conteve-se. Entretanto, o palestrante apenas preenchia o tempo com palavras descompromissadas e o porta-voz eleito por unanimidade também perdeu a paciência, ergueu a mão e solicitou o direito de interromper a cantilena.
Como foi escrito acima, não interromper o palestrante estava entre as condições exigidas por ele. Por isso, exasperou-se; quase enfureceu-se. O corajoso psicopedagogo aproveitou o silêncio da autoridade autoritária para perguntar: “Qual o título da sua tese de pós-doutorado?”
A fúria saltou pelos olhos do palestrante. Fúria que encorajou ainda mais o inquiridor: “Qual o título da sua tese de pós-doutorado?”
Talvez temendo maiores terremotos ou na esperança de esmagar o insignificante professor com o peso de seu trabalho científico, o palestrante remexeu os papeis sobre a mesa e, depois de olhar energicamente para o interlocutor, leu o que estava escrito na capa do documento:
Função da ducentésima vigésima sétima letra da página trezentos e doze do quinto livro da Enciclopédia Universal no contexto das ideias desenvolvidas no capítulo dezessete do livro dois, que trata da síntese epistemológica das hipóteses de universalização dos conhecimentos do ser humano a respeito da formação geológica do período interglacial.
Dentro das condições contratadas, o restante do público manteve o mais absoluto silêncio. O que favoreceu ao porta-voz emitir uma segunda pergunta: “O senhor está falando da sua tese de pós-doutorado ou do tema que consta aqui na programação do evento?” (E mostrava o prospecto.)
Aí, já era demais! Um professorzinho insignificante questionar os caminhos usados para se chegar às causas das dificuldades de aprendizagem...
O palestrante buscou com os olhos o apoio da Presidenta da Associação para rebater a arrogância do insolente, que continuou a molestar: “Pelas suas próprias palavras, fica evidente a distância entre o que esperávamos ouvir como ferramenta para nossas ações educativas e as profundezas do foco de sua tese de pós-doutorado.”
A situação gerou profundo mal-estar na plateia. Apesar da evidente distância entre o tema contratado e a autopromoção do docente da famosa universidade, a maioria dos psicopedagogos reagiu com indignação. Os mesmos que mandaram bilhetes instigando o desmascaramento do convidado bem-pago sem proveito pedagógico se levantaram contra Pedro, como se fosse ele o único insatisfeito com a nulidade da palestra.
A unanimidade mudou de lado. De repente, a plateia levantou-se em defesa da honra do palestrante e exigiu que o insolente se retirasse, em silêncio. Antes de tudo o respeito à hierarquia dos títulos acadêmicos; logo em seguida, a benevolência para com o convidado.
Pedro pôs-se em pé, passou pela mesa oficial, e, com olhar cínico, varreu os colegas psicopedagogos. Carregando sua pasta recebida na inscrição para o IX Seminário de Ideias Inovadoras, caminhou resoluto para a porta, chegou ao estacionamento, embarcou no automóvel e foi para casa.
No dia seguinte, recebeu o comunicado de que fora banido da Associação.

PANEGIRO

     Comemorar. Lembrar prestando homenagem. Festejar. Guardar na memória. É isso que pretendo falar, da nossa homenagem a um profissional que há muito tempo se preocupa com a Educação, com a emancipação intelectual – o professor Mario Tessari.
Professor que nos provocou com os primeiros estudos sobre a necessidade de definir critérios para o que é fundamental em educação: a intervenção no fazer pedagógico. Assim, ensinou-nos que a Educação, além, é claro, de fornecer instrumentos para o educando atuar no mundo ou em uma profissão, necessita torná-lo capaz de reconhecer aquilo que não tem valor apenas imediato: uma Educação que visa conhecimento e reflexão.
Professor comparado ao grande personagem, professor Jacotot, da obra O Mestre Ignorante, de Jacques Rancière. Um mestre que ignora as diferenças porque sabe que todos podem aprender, independente do caminho que escolherem, mas que também tem confiança naquele que “está sempre na porta” – o professor.
Podemos definir Mario Tessari como uma figura antagônica. Ao mesmo tempo em que o amamos o odiamos. Às vezes, como Jacotot, dá-nos as coordenadas e espera. E nós – a exemplo dos alunos do professor homenageado por Rancière – buscamos, sofremos, nos indignamos, mas, ao final, o surpreendemos! Jacotot também teve esta memorável experiência.
O Professor Mario a cada visita exorciza nossos corpos até fazê-lo vivo e percebido por nós mesmos. Ensinou-nos a tecer nossa história de educandos, mas muitas vezes nos deixa na solidão quando não se contenta apenas com nossos relatos e nos tira do lugar ao perguntar: “O que vês, o que pensas, o que fazes disto?”.

O SABOR DO SABER

O prazer de aprender
nos leva a provar o gosto
de todas as dúvidas,
ao sabor da curiosidade.

Muitos consideram amargo
o gosto da dúvida,
porque sofrem
de medo do desconhecido.
Por preguiça de pensar,
preferem vegetar
na zona de conforto
da mediocridade.

Precisamos ir ao desconhecido
para provar o sabor
e saber o gosto dele,
para gostar ou não.

Precisamos provar,
para aprovar ou não aprovar
esse novo por conhecer
e o antigo que desconhecemos.

Precisamos selecionar alguns saberes
para construir caminhos
que nos levem ao desconhecido;
precisamos utilizar o velho
para gerar novidades;
precisamos repensar o já-pensado
e pensar o ainda-por-pensar.

Precisamos pensar
o velho de um jeito novo.

Pessoas acomodadas
se satisfazem
com ideias engessadas.

Pessoas insatisfeitas
conseguem satisfação
na procura de respostas
para as dúvidas.

Os satisfeitos vivem de mesmice;
são pessoas cansadas
que se alimentam
de pensamentos sintéticos.

Do livro POEMAS DE MARIO TESSARI QUE EU GOSTO – MARIA ELISA GHISI

Nova Trento

Carta aos alunos da Escola Francisco Mazzola, em 17 de agosto de 2002

“Cada ser em si carrega o dom de ser capaz, de ser feliz.”    Almir Sater

O conhecimento nos leva à existência.

Antes de estar com vocês, eu não os conhecia e, provavelmente, vocês não me conheciam. Por isso, não existíamos um para o outro. Não podíamos pensar um no outro, porque não tínhamos uma idéia do outro ainda não conhecido. Há magia no ato de conhecer: o ato de conhecer dá existência a quem e ao que assumimos como conhecido. Só agora existimos um para o outro. Logo, a existência não é uma decisão individual; ela é uma construção coletiva.

Como quando conversamos, no início desta semana, vou analisar algumas palavras. Falamos em amizade e ela me transporta para a palavra comunhão: a união dos que têm objetivos comuns, crenças comuns; os mesmos ideais. E comunicação é o agir coletivo dos que comungam dos mesmos ideais. Já confusão quer dizer aquilo que se fundiu, se misturou, que perdeu a ordem; incapacidade de reconhecer diferenças, falta de clareza.

Precisamos estar em comunhão sem nos fundir com o outro, sem nos anular. O “nós” é constituído da união dos “eu”. Precisamos estar juntos, construir juntos, mas sem perder a nossa identidade. Jamais haverá um “nós” forte se não construirmos um “eu” sólido e solidário. A sociedade será tão ética e tão cooperativa quanto éticos e cooperativos forem seus sócios.

Falamos também na palavra competência: “qualidade de quem é capaz de apreciar e resolver certo assunto, fazer determinada coisa, …”  Uma das metas que a maioria de vocês estabeleceu, para esse ano, foi “passar de ano”. Vocês têm competência para “passar de ano”, porque são capazes de analisar e dar solução para todas as tarefas escolares.

O ano passa todo mês, toda semana, todo dia, toda hora, todo minuto, todo segundo… Por isso, a todo momento, precisamos fazer o que precisa ser feito, da melhor maneira que pudermos e com prazer. Só podemos ter interesse e sentir prazer por aquilo que conhecemos, a começar por nós mesmos. Conhecer a nós mesmos é tomar consciência de nossas capacidades, de nossas habilidades e principalmente do que queremos, do nosso projeto de vida. Conhecer a nós mesmos implica em tomar consciência de como e de quando sentimos alegria ou tristeza, de como e de quando aprendemos, de como nos vemos e de como somos vistos.

Somos estranhos de nós mesmos: não reconhecemos as nossas reais capacidades e acabamos nos subestimando, nos fazendo menores do que somos. Por isso, fazemos menos e vivemos menos.

Outra meta estabelecida “para a vida toda”, pela maioria, foi: ser feliz.

Felicidade não é um lugar no futuro. Em cada momento, em cada lugar e com cada pessoa, a felicidade é outra. As felicidades são muitas. E estão à nossa disposição. A felicidade é como a água de uma fonte: vai passando pelas nossas mãos. Só conseguimos aproveitar uma pequena porção da água; a maior parte vai embora. Quando estamos com muita sede, toda água é boa. Parece que nossa sede de felicidade é pequena, porque deixamos que a felicidade cotidiana escorra pelos nossos dedos, esperando por uma felicidade perfeita, que está à nossa espera, em algum lugar, no futuro. Precisamos aproveitar e viver a felicidade de agora, com as pessoas com quem estamos, senão essa chance se perde e não poderemos mais viver o momento que passou.

Amigo não é aquele que aceita o outro como o outro é. Amigo é aquele que, conhecendo o outro, valoriza as qualidades do amigo e que propõe, com ele, trabalhar para reduzir os defeitos e preencher as falhas. Amigos constroem, em conjunto, os conhecimentos, as habilidades e os valores necessários à felicidade.

Juntos, vamos construir as competências necessárias para uma vida feliz.

Mario Tessari

ESCOLAS DE ENSINAR E APRENDIZAGENS PRAGMÁTICAS

As escolas de ensinar colocam muros ao redor dos prédios para proteger a verdade acadêmica e a ‘sabedoria consagrada’, do ‘perigo’ de serem entendidas e depreciadas por leigos. Essas escolas e os profissionais que nelas trabalham dependem de leis, de instituições organizadoras e de vigilantes que mantenham e que defendam o ‘ensino tradicional’.

Segundo o Dicionário Houaiss, tradição pode significar “ato ou efeito de transmitir ou entregar; transferência; herança cultural, legado de crenças …; conjunto de valores morais […] transmitidos de geração em geração; em certas religiões, conjunto de doutrinas essenciais ou dogmas […] aceitos por sua ortodoxia e autoridade […] na interpretação (dos fatos)”.

As escolas tradicionais exigem disciplina, frequência e notas mínimas nas provas e nas arguições. Como recompensa pelo sacrifício dos alunos, oferece ajudas financeiras, oportunidades de emprego e diplomas com promessas de maiores salários. Nesse sistema, quem obedecer e seguir estritamente as regras institucionais será considerado bom aluno, mesmo que as teorias acadêmicas possam ser aplicadas apenas em processos escolares e em classificações de intelectualidade.

As turmas do ‘ensino oficial’ são diminutas para proporcionar mais cargos de magistério. Uma turma de vinte energias será menos fecunda do que uma turma de quarenta energias. Porém, mais difícil de convencer e de dominar. Há ensinantes demais, muitos deles, descolados das realidades dos alunos e da comunidade. Nos concursos do magistério, os candidatos buscam boa remuneração e estabilidade funcional, com raríssimas exceções de vocação educadora altruísta.

Organizar o saber e a aprendizagem sobressai como virtude rara dentro e fora das paredes escolares. Sentimos prazer ao aprender; sorrimos de alegria a cada pequena aprendizagem. Podemos aprender sozinhos; na troca de experiências e de ideias, aprendemos mais, com maior rapidez e melhor qualidade. Os aprendizes buscam oportunidades de satisfazer as curiosidades e de resolver os problemas, naturais ou por eles mesmos propostos. Desnecessário cercar e exigir que estudem; estudam sem esforços e estimulam quem com eles convive a desenvolverem atitudes e habilidades.

Aprender resulta em maior e melhor contentamento do que o que sentimos ao sermos ensinados. Ao aprender, resolvemos problemas, satisfazemos necessidades e realizamos nossas potencialidades.

REMISSÃO DE CULPA

Você pede desculpas.

Eu não tenho poderes para anular tuas culpas e, muito menos, poder para remir teus crimes. Não há como emendar bananeiras ou desfazer os cortes, os ferimentos e a morte de árvores; não consigo ressuscitar vegetais. Seria utópico (e é) se livrar das agressões apenas confessando as culpas.

Você veio reaver as armas do crime, sem trazer de volta os objetos que sumiram, destruídos ou jogados para o fundo do lago do esquecimento. Você não consegue devolver as horas de sono consumidas pela dúvida e pela insegurança decorrente da tua maldade ingênua. Você não consegue devolver a confiança em humanos; você não consegue remendar a paz dilacerada e, muito menos, restituir vida.

HIGIENE DA CUECA

   Nasci e cresci imerso na cultura brasileira: machista, reprodutiva, contraditória e simplista; às vezes, simplória e, até, leviana.
Por procura ou por sorte, fui ouvindo vozes dissonantes, indicações de ingenuidades coletivas que se enraizavam em mim também. Sou cientista amador, movido por curiosidade, em busca de atitudes mais coerentes.
   Lá pela terceira década de vida, um comentário, quase um murmúrio, despertou minha mente para as condições higiênicas de minhas cuecas.
   Quando criança, habitante de um cafundó, minha mãe aproveitava panos velhos, restos de camisas ou sobras de retalhos para confeccionar uma roupa íntima elementar. Ainda menino, fui enviado ao seminário para aprender a ler e a escrever. Ela precisa fazer bonito. Afinal, o filho seria alfabetizado. Então, ela aprimorou o modelo, chegando a algo próximo de uma cueca samba-canção. Só passei a usar cuecas compradas em loja quando ganhei algum dinheiro e saí da vila para estudar e trabalhar em uma pequena cidade.
   Paralelamente, a “privada” dos meus tempos na roça evoluiu, nos seminários, para “banheiro coletivo”; para banheiros de pensionatos e para um banheiro adaptado em minha primeira casa; de madeira, mas, “com banheiro”, se bem que ‘adaptado’. Nos seminários, só o nome de “banheiro”, pois, os banhos semanais dependiam das águas – às vezes, barrentas – dos rios.
   E assim fui evoluindo... Mesmo que – hoje, percebo – ainda faltasse muito para poder me vangloriar da higiene pessoal. Aí, ouvi o cochicho a que me referi em alguns parágrafos atrás.
   Desde menino, depois de urinar, toda vez, eu esperava as últimas gotas abandonarem a glande; me demorava... e as pessoas ironizavam esse tempo extra, insinuando malícias ou ironias. Por mais que cuidasse e usasse estratégias para evitar as gotas de urina restantes, a cueca, vez em quando, manifestava o odor de desasseio.
   Perguntei para algumas mulheres como elas faziam para evitar que a calcinha ‘ficasse temperada de urina’. Estranharam a pergunta e demonstraram preocupação com meu comportamento e com minha masculinidade. Ora, usavam papel higiênico...
Pensei: nunca vi meninos, rapazes e homens usando papel absorvente para secar as gotas temporãs... Porém, mesmo que fosse ironizado, decidi experimentar a técnica sanitária.
   Confesso que sofri zombarias e reprimendas. Afinal, estava violando o código do machismo, posto em risco a segurança dos ‘verdadeiramente homens’ e semeando dúvidas sobre minha opção sexual.
   Outra decisão minha: sentar no vaso sanitário para urinar. Afinal, quem convive comigo merece encontrar o assento limpo e inodoro.
   Na Década de 1980, quando passei a trabalhar para uma empresa em que os mictórios se estendiam ao longo de uma parede, às vezes, passava por humilhação, porque algum colega me via a higienizar a glande e o prepúcio e proclamava essa ‘pouca vergonha’ para debochados colegas e clientes na grande sala de trabalho.
   Também sofria escárnios em estações rodoviárias e aeroportos. Os que viam secando os restos de urina riam com complacência, parecendo se apiedarem dos meus desvios ‘morais’. Entretanto, minhas cuecas ficavam quase livres de imundícies e eu sentia o orgulho de romper um preconceito. Por me sentir menos sujo e mais confortável, fiz desse cuidado um hábito.
   No final do Século XX, embarcava mais uma vez para exercer meu trabalho no extremo-norte do país. Depois de encaminhar minha bagagem e meu embarque, fui aos ‘sanitários’, carregando a ‘bagagem de mão’.
   Como sempre se faz, ao adentrar ao ambiente restrito, lancei um olhar estratégico para a parede em frente, onde se alinhavam os mictórios ... e encontrei um rolo de papel higiênico ao lado ‘direito’ de cada urinol de louça.
   Aquela visão me deixou paralisado. E a estátua viva chorou... Inicialmente, um choro manso, lágrimas escorrendo silenciosamente... Os dois passageiros que lá estavam, ao sair, passaram por mim olhando o chão, compadecidos com meu pranto. Os que vinham entrando me olharam com assombro e um deles veio me consolar, pois, então, eu já me sacudia em soluços.
   Me emocionei porque via realizado um sonho evolutivo; um espaço público tinha sido preparado para atender a uma necessidade daqueles que desejavam privilegiar a higiene íntima em detrimento da glória machista de ‘jamais se comportar como mulher’.
   Tenho consciência de que aqueles rolos de papel higiênico foram colocados ali para atender mais da metade dos ‘homens’ que ali urinassem; que, sozinho, nada teria conseguido. Todavia, eu tinha sido um dos que lutaram em silêncio por aquele benefício. Vibrei de alegria por ter participado de um evento social evolutivo; de ter ouvido o Zeitgeist (“o espírito do tempo”) e contribuído para a higiene das cuecas.
                                              Sítio Itaguá, 08.09.2020

LER O QUE NOS MANDAM LER

No jogo político-social, cada personagem defende a sua trincheira. Os bandidos (que andam em bando…) espertos, os canalhas eficientes, os malvados e os maldosos diplomados exercem funções da Sociedade ‘elevada’ … para a sociedade levada…

Quando o dedo aponta a lua, os idiotas olham o dedo.” Herbert Marshall McLuan

Ou seja, enquanto o povo olha o dedo, o Sistema age livre de análises críticas.

Lendo a reportagem https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2023/05/01/escritor-tem-livro-retirado-de-vestibular-de-universidade-apos-deputado-criticar-obra.ghtml, concluo (talvez, só eu, louco, Lúcifer, …):

Os professores e os reitores ‘responsáveis’ (ir…) pelo ‘vestibular’ não leem os livros que usam como texto-base … que são indicados por professores/atores de ‘cursinhos pré-vestibular’.

Segue a quadrilha educativa (com bem mais que quatro…), não é José Pacheco?

“… Hoje, o tirano governa não pelo cassetete e pelo punho; mas, disfarçado em pesquisador de mercado, ele conduz seu rebanho pelos caminhos da utilidade e conforto.” Herbert Marshall McLuan

É a experiência, e não a compreensão, que influencia o comportamento.” Herbert Marshall McLuan

A esquizofrenia pode ser uma consequência inevitável da alfabetização.” Herbert Marshall McLuan

FASES: COMUNS OU INFLADAS?

   Útero: nosso primeiro espaço para habitar e para aprender. Vida boa. Com riscos, óbvio: “Viver é arriscado.” Entretanto, receber alimentos completos através do cordão umbilical, sem precisar mastigar, sem a obrigação de se livrar de urinas e de fezes.
Mesmo sendo o primeiro paraíso, ficar ‘pra sempre’ ali seria um desperdício. Se houvesse a possibilidade de perguntarmos para os fetos qual seria a vontade deles, receberíamos respostas semelhantes às nossas: “Não. Quero ver o mundo, caminhar, correr, comer, abraçar, ... Já tô cansado de ficar preso nessa escuridão.”
Ao ser libertado dessa primeira situação social (de ser invisível, desejado ou rejeitado) o neonato é colocado no berço, a segunda estação vital (estação = onde se está por um tempo...). Bom, também. Mamadas, cafunés, carinhos, palavras infantilizadas, ... Por sorte, não recordamos do desconforto de mijadas e/ou cagadas... 
Nessa fase, podemos ver pessoas, objetos e paisagens; aproveitamos para aprender mais que na fase inicial. Muito bom, mas... melhor crescer logo, se livrar das fraldas, engatinhar, andar, mexer em tudo que alcançar, ...
Ser criança tem muitas vantagens, naturais e/ou culturais: proteção, casa e comida de graça, admiração e elogios, chance de aprender muito mais... Fase de aprender quase tudo; até, de aprender a entender e a falar vários idiomas. No entanto, as crianças querem crescer logo pra poder ir pra escola, andar de bicicleta, jogar bola, subir nas árvores, ...
Seria horrível permanecer criança a vida inteira. 
Terceira estação vital: a escola obrigatória. Poder sair de casa, como, tempos antes, foi desejo fugir do berço. Começam as responsabilidades, alguns colegas belicosos, mas... tem cirandas, brincadeiras, jogos, malandragens, gritarias, ... e o aconchego de uma casa pra voltar quando cansa e/ou sente fome.
Na escola, aprendemos ainda mais que nas fases anteriores. Principalmente, fora da escola, com os amigos, com os livros, com ... Por outro lado, a lei impede que a gente deixe a escola, os pais (e a Sociedade) obrigam estudar coisas chatas, ... há reprovações; às vezes, precisamos trabalhar para sobreviver, ...
Enfim, adultos, senhores de si, com direito de trabalhar, de casar, ... Uma pequena parcela dos adolescentes ou dos neoadultos tem a sorte de poder continuar estudando, antes de se dedicar exclusivamente ao trabalho; de poder ‘cursar uma faculdade’, obter uma ‘graduação’. Quiçá, uma especialização, um mestrado, um doutorado, ...
Fase ótima! Privilégio social, destaque intelectual, melhores oportunidades de emprego... Principalmente, possibilidade de melhores salários, de trabalhar menos e em atividades mais nobres, menos desgastantes.
Apesar de todas essas regalias, os diplomados preferem avançar para a próxima fase de vida: trabalhar, conquistar autonomia: deixar de ser ‘universitário’, para habitar espaços profissionais, empresariais, sociais, ... Espera-se (inclusive os universitários esperam... ) superar a situação formativa para ser um(a) cidadã(o) completa(o).
Desconheço alguém que quis permanecer ‘estudante universitário’ até os noventa anos.
***
A Medicina considera inflamação um “processo patológico fundamental” pelo acúmulo de partículas nocivas ao organismo. Inchar e inflar podem ser palavras com mesmo sentido: aumentar além do normal.
Podemos considerar que pequenas coisas da vida fetal podem saturar o estado saudável, levando ao desejo de avançar para a próxima fase ou abortar, abandonar o lar. O mesmo acontece com os bebês, com as crianças, com os adolescentes, com os jovens e com os universitários. Menos com os que ficam trancados em uma das fases (não conseguem avançar para a próxima): patinam e acumulam ‘partículas nocivas’ que inflamam, incham, saturam o processo, adoecem. Escolhem continuar a viver a fase que deveria ser passada; ficam presos no redemoinho de relações tóxicas.
Comparando com inflamações corpóreas (tendinite, sinusite, apendicite, renite, otite, ...), podemos nomear o acúmulo de manias de cada fase por fetite, bebite, criancite, adolescite, estudantite, academicite, adultite, ... Ou seja, quando acumulamos resistências, evitando avançar e superar o status quo, não conseguimos ultrapassar aquela fase de vida e inchamos de convicções e de covardias, obstáculos para enfrentar os desafios da próxima etapa de vida.
Fetos que continuam considerando suficiente viver passivamente no útero, bebês que se negam a andar e/ou a falar, crianças que preferem permanecer infantilizadas, eternos adolescentes, universitários ‘jubilados’ ou que não conseguem ir além das arcaicas teorias livrescas acumuladas, repetidas, decoradas e defendidas como dogmas, ... Além de conhecer, analisar e selecionar a herança cultural, precisamos e devemos dar o ‘passo adiante’, continuar a construção de saberes ou reformular velhas teorias.
Prender a mente em pensamentos da fase anterior pode ser doença grave.