O CANHÃO DO SIRINEU
Aos dez anos, o Sirineu ‘saiu de casa’, deixando para as seis irmãs dele a responsabilidade de cuidarem dos pais, dos parreirais e demais plantações, além de algumas vaquinhas magras e desanimadas. Foi para o seminário aperfeiçoar a alma através do estudo do Latim e de outras línguas mortas, da Matemática, da oratória, da música e do teatro, para se tornar digno do sacerdócio. E deve ter sido bem aplicado, pois, dos cento e sessenta e dois principiantes, foi o único a receber a ordenação. Porém, para adquirir o direito de rezar missas, enfrentou muitas dificuldades.
Nascido e criado nos pedrentos vales do oeste catarinense, sem conhecer alpargatas ou botinas, havia usado chinelas de couro cru apenas nas festas religiosas de maior importância. Por andar descalço sobre os seixos, as solas dos pés desenvolveram um cascão que amassava até espinhos e os dedos adquiriram a resistência necessária para enfrentar as normais topadas nas andanças e trabalhos diários.
Para ingressar no colégio religioso, recebeu o primeiro par de sapatos, confeccionados pelo rude sapateiro da vila, que, conhecendo o pé-duro, comentou:
— Só use os sapatos em ocasiões solenes ou na igreja, onde o enorme sacrifício será um louvor a deus.
E o seminarista seguiu o conselho. No mais, andava descalço ou com os pés metidos nas velhas chinelas de couro cru, o que pouca diferença fazia, pois eram tão sujas que ele continuava a pisar em terra.
Na segunda série ginasial, o Sirineu continuava a sorrir candura provinciana para todos e para tudo, mesmo que sofresse com apelidos e brincadeiras de mau gosto. Sorria superior à grosseria, ao conforto e ao calçado moderno. Entrava na sala de aula pisando as chinelas… que depositava sob a carteira, de onde eram recolhidas ao final das aulas. Sempre, extrovertido, sorrindo e se comportando com a inocência dos seres naturais.
Quando o padre, professor de Língua Portuguesa, foi transferido de repente, o reitor pediu para uma freira que suprisse temporariamente a ausência do mestre. Naqueles santos tempos, somente padres (nem todos másculos…) lecionavam para seminaristas. As freiras, responsáveis pela cozinha e pela lavanderia, permaneciam invisíveis, atrás de janelas e portas giratórias opacas, já que as mulheres – símbolos do pecado – poderiam pôr a perder as vocações sacerdotais.
Logo, a aparição de uma freira, mesmo que fosse velha e encarquilhada, por si só, já era fato extraordinário. O véu impedia de ver a cor dos cabelos, entretanto, as peles e o andar arrastado poderiam comprovar a idade avançada. Enxergava bem; estava praticamente surda. Ela havia consumido a existência no ensino da Língua Pátria para meninas e moças noviças, candidatas à vida monástica; jamais lecionara para meninos, moços ou homens.
Na apresentação, o reitor não mencionou o nome dela; só reafirmava: “a nova professora”. Os alunos-seminaristas entenderam que ela seria a nova professora, mesmo não sendo uma professora nova. E mesmo que o reitor não tenha informado, eles concluíram que os ouvidos da ‘nova professora’ estavam falidos, pois ela se mantinha impassível diante da ladainha do ‘chefe’, reagindo apenas aos gestos e às mímicas. E, na primeira aula, recebeu um apelido.
Ela chegava à sala, lia cada nome da lista de alunos e, como surda convicta, aguardava que aqueles que estivessem presentes levantassem um braço para que ela pudesse conhecer ou reconhecer cada um dos ‘novos’ alunos. A seguir, escrevia na lousa as tarefas e os exercícios que cobrava com rigor. Na última linha, lembrava aos pupilos que as perguntas deveriam ser feitas por escrito.
Com autoridade, ela exigia disciplina. Isto é, que não saíssem de suas carteiras, que não andassem pela sala. Poderiam falar à vontade, poderiam até gritar. Todavia, sem sair do lugar. Se o olhar dela percebesse algum movimento individual ou se a turma se contorcesse em gargalhadas, ela soltava uns gritinhos e ordenava com energia:
— Meninas, silêncio!
Satisfeita com o controle exercido sobre a turma, abria o livro didático e convocava um aluno para iniciar a leitura, mantendo sempre o dedo magro e trêmulo sobre o nome até um momento imprevisto em que gritava:
— Cêga, menina.
Declamava um segundo nome e vendo alguém se levantar (nem sempre aquele que ela designava), emitia sua palavra de ordem:
— Gontinua.
Nem é preciso dizer que, para cumprir a ordem, bastava um dos alunos permanecer em pé, falando qualquer coisa, como, por exemplo, conversar com o colega ao lado, pois ela só observava se o pseudoleitor movia os lábios. Assim, a leitura de uma página durava uma aula inteira, … sem ser lida.
Naquele dia, o Sirineu estava com os intestinos lotados de gases… que, vez em quando, alcançavam a liberdade… com ruídos e com odores bastante desagradáveis. Numa explosão mais proeminente, até a freira, surda consagrada, conseguiu ouvir o estrondo. Assustada, ela indagou:
— Que foi isso?
— O Sirineu soltou um canhão.
— O qué?
Repetiram, mas a professora Gontinua continuava sem entender e ficava cada vez mais exaltada. Apontaram na direção do réu e, como a turma caísse na gargalhada, exigiu por escrito a razão de tamanha bagunça. Reafirmaram por escrito que o Sirineu soltara um canhão. Ao que ela sentenciou:
— Menina, traga aqui esse objeto.
Na carteira em frente a ele, o Adelar consertava uma bola de capotão, com as mãos trabalhando embaixo da carteira. Sugeriram que ele entregasse a bola para a freira. Ele não aceitou porque ‘a bola não era dele’. Além do que a freira notaria que o autor do trovão tinha sido outro. Queria mesmo era ver o canhão do Sirineu. Alguém disse para o ‘criminoso’:
— Leva uma chinela.
E ele, vermelho e chorando de tanto rir, foi andando com a chinela nas pontas dos dedos das duas mãos até à mesa sobre o estrado. Formavam uma imagem ridícula: o aluno risonho babando sobre a chinela imunda e rota, fedendo como nunca.
Enojada, a freira gritou:
— Isso é um canhão? Como você conseguiu soltar isso? Nunca mais solte canhão durante a aula.