COLONIALISMO DIDÁTICO

Aproveito o título da Deutsche Welle¹, a entrevista de Michael J. Sandel² para Pablo Guimón e minhas conversas com Cecília Kotzias e com Maria Elisa Ghisi para eu expor ideias sobre a função das escolas na reprodução das classes sociais. Agradeço as contribuições.

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As pessoas podem aprender sozinhas, por incentivo e orientação da família, na parceria com outros aprendizes ou recebendo as informações científicas ministradas por professores em instituições de ensino. Podem aprender, espontaneamente, por curiosidade e podem, intencionalmente, pesquisar, experimentar e/ou tentar aprender por necessidade, para resolver um problema. Podem ser obrigadas a aprender por pressão dos familiares ou por determinação legal. Podem aprender práticas e desenvolver habilidades; podem descobrir e inventar. Podem aprender teorias proveitosas ou … inúteis.

Aprender faz parte do estar-no-mundo, do estar vivo. Todos os seres vivos aprendem. O ser humano aprende durante toda a sua vida, mesmo que inexistam governos, ideologias e instituições escolares.  O aprender é inerente à natureza humana.

Sendo natural (ou, exatamente, por ser natural), o aprender pode ser usado para influenciar pessoas e/ou exercer dominação social. Seja nas famílias, nas comunidades ou nas nações, os indivíduos dominantes (ou os que pretendem dominar) utilizam o aprender para disciplinar os submissos, para submetê-los ao seu controle. A intensidade e o volume de controle exercidos determinam o grau de liderança e o grau de autoridade.

Podemos considerar que a aprendizagem conduzida receba o nome de ENSINO (transmissão de princípios que regulam a conduta humana e a vida em sociedade; educação [Houaiss]).

Ensino familiar (pelos pais e avós), ensino tribal, ensino empresarial e ensino religioso podem ser exemplos de ensino informal, tácito, ‘privado’, restrito, facultativo. Cada clã, comunidade ou sociedade exerce o direito de promover e de aperfeiçoar sua cultura (conjunto de padrões de comportamento, crenças, conhecimentos, costumes, … que distinguem um grupo social [Houaiss]).

Por outro lado, o ensino oficial obrigatório é ferramenta governamental para ‘uniformizar’ a população, com o objetivo de controlar as índoles e de orientar a formação técnica, moral e cívica das futuras gerações. Educar, disciplinar, treinar, submeter, premiar e/ou subjugar para transformar crianças livres e alegres em cidadãos obedientes, sérios e produtivos.

O ensino informal e o ensino oficial são fundamentais para a convivência harmônica das pessoas em busca de melhores condições de vida. Nenhuma delas ocorre isoladamente; uma não exclui a outra; sempre se espera que se complementem. E, se houver sincronia entre essas duas ações educativas e se todas as crianças forem educadas em igualdade de condições, cada geração gozará de avanços técnicos e sociais.

No entanto, sempre houve, há e haverá luta pelo poder. E, quanto maior o conjunto de indivíduos sob o mesmo comando, maior a manipulação dos sistemas de ensino, seja no direcionamento estratégico, na exploração do trabalho, na coação por ameaças, na coerção de movimentos sociais ou na extorsão de contribuições e de impostos.

Ainda dentro da liberdade de analisar, podemos comparar a educação informal a uma oficina de artesanato em que o mestre-artesão permite que os discípulos opinem, inventem e modifiquem os processos e os produtos. Em oposição ao ensino ‘industrial’ que esmerilha cada criança para produzir ‘cidadãos em série’, meras peças da engrenagem política ou da lógica capitalista.

Em uma ‘escola artesanal’, a imaginação e os sentimentos das crianças podem criar obras inéditas, imprevisíveis, raras, até. Porém, esses artesões podem fugir do controle militar e/ou policial dos governantes e podem ‘contaminar’ o mercado com produtos irregulares, incomuns ou extraordinários, até.

Por outro lado, a produção em série, padronizada e com o descarte de ‘peças anormais’, facilita a ‘comercialização’ de ideias e de mercadorias. A palavra ‘padrão’ vem de ‘pedrão’, medida rígida estabelecida como modelo de medida. Na Idade Média, os padrões de peso e de comprimento eram pedras ‘oficiais’ que serviam de referência para aferir balanças e instrumentos de medição. Como se as pedras fossem imutáveis e, por isso, garantissem a regularidade das medidas.

A indústria alimentícia deve respeitar padrões em todos os aspectos, para fornecer alimentos idênticos. Com mesmo peso, mesmo gosto, mesma cor, mesmas substâncias, …   Ou seja, comida sempre igual, repetida, sabor invariável, sem surpresas.

Por outro lado, os cozinheiros amadores, inconstantes ou indisciplinados, desrespeitam as medidas, manipulam e/ou substituem os ingredientes, alteram o ‘modo de fazer’ e adulteram as receitas. Cada bolo será inédito e surpreendente. Assim como os demais assados, cozidos e crus que mastigamos e engolimos.

Paradoxalmente, queremos que nenhuma ‘iguaria’ seja ‘igual’. Por que haveríamos de querer que todos os adultos sejam semelhantes, uniformes, insossos, padronizados?

Só existe Ciência nas clausuras do ensino oficial?

Com as abelhas-sem-ferrão e na culinária, nós praticamos e desenvolvemos “conhecimento científico”. O método científico pode ser usado por qualquer pessoa; o cientista não é o dono do método. E o ‘método científico’ não é de ‘uso privativo do cientista’.  O “conhecimento científico” não é privilégio para diplomados por ‘universidades’. “A realidade está grávida de seu contrário.” A “Universidade” não é universal. Ao contrário, é elitista, privilégio de poucos. Tampouco, contém o saber universal. “Didaticamente”, seleciona as informações que melhor escondem o enigma do poder. Polinômios, por exemplo. Ou a lista de presidentes de uma república. Informações sem serventia… que, entretanto, mantêm as mentes ocupadas e alienadas.

Ah! O objetivo é a socialização das crianças. Será que o grau e a qualidade da socialização dependem diretamente do tamanho do rebanho? Digo, do tamanho das turmas e/ou da escola?

A socialização da criança ocorre no contato com os educadores e educandos.  Estejam eles ligados pela Internet ou presos em salas de aula. As crianças (os jovens, os adultos e todos os seres vivos) aprendem envoltas em uma determinada realidade. Se as escolas forem depósitos de crianças, as crianças aprenderão a ser depósitos dos códigos de quem os deposita: autoridades, pedagogos ou pais. As crianças serão depositárias da cultura depositada.

Estudar numa ‘escola grande’ não garante um grande número de amigos. Viajar no ônibus escolar e participar da baderna coletiva parece não contribuir para a convivência cooperativa e harmônica dos futuros adultos. Ao contrário, a competição, o bando, o bullying, o individualismo, a solidão, a timidez, a vergonha, as críticas, a gozação, … a necessidade de acompanhar o rebanho arrasa (torna rasas, nivela) as individualidades. As multidões nos anulam. Quanto maior a multidão, mais oprimido me sinto.

Os limitados de contatos com poucos colegas e com os orientadores podem suprir nossas necessidades de afeto, de estímulo e de segurança bem mais que as intensas e ilimitadas gritarias das manadas escolares e dos discursos das complexas equipes pedagógicas dos grandes educandários. Quanto maior o exército, mais forte seu comandante, mais insignificante a importância do soldado.

Penso que a escola sonhada pela Cecília seja espaço propício ao desenvolvimento de relações limitadas, porém, reais, verdadeiras, respeitosas, interessadas, cooperativas e suficientes para construirmos “uma sociedade mais justa”.

Desde tempos imemoriais, as elites detêm os segredos intelectuais: feiticeiros, sacerdotes, … doutores, juízes, … A casta dominante recebe a ‘senha’ e a autorização (o diploma), mediante o ‘sacrifício’ de – muitas vezes – passar aulas ouvindo o ‘professor’ ler, durante um semestre escolar, sua tese de mestrado ou de doutorado.

Onde se concentram os títulos de doutorado? Nos hospitais (quarteis das doenças)? Não. No Fórum da Comarca (quartel das arbitrariedades)? Não. Se concentram nas ‘universidades’ (quarteis das diplomações acadêmicas). Cartórios da Ciência.

O título da terra, o título do conhecimento científico; a escritura pública, o diploma. Títulos oficiais, não testes de proficiência. Quem tem amplo conhecimento de mecânica… se prestar exames de proficiência, será aprovado… sem ganhar título de Engenheiro… que gera status e dinheiro. Muitos são eficientes nas funções que exercem. Entre dois coordenadores de equipe com equivalente desempenho, o que tiver título de capacidade será melhor remunerado.

Só podem filosofar os que frequentaram o Curso de Filosofia e receberam o diploma? Um biólogo, como Mia Couto, ou quem aprendeu escrever por conta própria podem escrever livros? Se eu tivesse o Curso de Letras com diploma conseguiria escrever esse texto? Os alunos aprendem melhor com quem tem Curso de Doutorado?

Terreno de posse vale menos. Terreno com escritura pública registrada vale muito mais. A utilidade do espaço permanece a mesma… Conhecimento científico COM DIPLOMA, título de sabedoria, rende mais… Todo conhecimento é muito útil.

As hortas comunitárias podem ser exemplos de campos experimentais com sucesso… por usarem conhecimento científico… não titulado… Quem certifica a Ciência do horticultor? Do caminhoneiro, do cozinheiro, do mecânico, do cabeleireiro, … A trupe do Circo Torricceli é genial e … não certificada… Não receberam diplomas.

Somos colônia norte-americana e podemos ser agentes, instrumentos de colonização.  Temos que decidir entre seguir Donald Trump ou ouvir José Pacheco. Perigoso estar com um pé em cada continente. Mais que isso: com um pé em cada conteúdo ou com um neurônio em cada ideologia. E sobre o abismo social. Trump recolonizando e Pacheco tentando descolonizar.

As leituras de Marguerite Duras e de Mia Couto, além de surpresas literárias, revelam as tragédias do colonialismo francês na Cochinchina (Vietnã) e do colonialismo português em Moçambique. Leio as verdades históricas e não os estilos contundentes. Os dois “escrevem poesia”; eu leio o sofrimento humano causado pelo poder humano: as elites cultas explorando os escravos da ‘ignorância’… do ponto de vista dos colonizadores. Os vencedores que pouparam a vida dos derrotados se tornaram – moralmente – donos da vida deles.

Enfim, sonho que a pandemia do Covid-19 condene a escola tradicional ao passado e que consigamos evitar a reprodução comportamental da sociedade de consumo através da “linha de produção” dita “científica”, da formatação em série de pessoas ‘produtivas’, competitivas e vencedoras. A escola aceita e defendida pelos políticos são verdadeiras ‘fábricas de papel’, que fabricam e acumulam livros didáticos, monografias, teorias e diplomas (documento oficial que concede um direito, um cargo, um privilégio [Houaiss]), verdadeiras cargas mortas que carregamos para obter sucesso. Espero que a pandemia do Covid-19 acabe com esse modelo industrial. QUE AS CRIANÇAS SE EDUQUEM SEM SEREM EDUCADAS.

Enfim, sou um louco com uma lanterna e com uma lupa… Um antropólogo de mim mesmo… procurando uma sociedade igualitária, sem sacerdotes e sem analfabetos.

1 – Deutsche Welle, em 11 out 2020

https://www.terra.com.br/noticias/colonialismo-nos-livros-didaticos-a-historia-dos-vencedores,22050d5b0002c3b6995db2401949cff4vv7r8jvl.html

2 – Jornalista Pablo Guimón, do jornal El País, entrevista Michael J. Sandel

Brasil.elpais.com, em 12 de setembro de 2020

<p style="line-height:0.4" value="<amp-fit-text layout="fixed-height" min-font-size="6" max-font-size="14" height="80">Brasil.elpais.com, em 12 de setembro de 2020Brasil.elpais.com, em 12 de setembro de 2020

O GOSTO DO MAR

Antônio nasceu na serra, numa casa construída pela família, com a ajuda de outras pessoas dali. Logo que cresceu um pouco, ele também passou a ajudar as pessoas construírem suas casas. Fazia isso com prazer, porque seu corpo e seu espírito gostavam de atividade e de coisas novas, de coisas por aprender.

Da primeira vez, viu a casa como um todo e a construção como um trabalho só. Depois, percebeu que a casa está dividida em partes, que são construídas numa determinada sequência, durante determinado tempo. Assim, começou a pensar nas dimensões, na qualidade e no custo.

Antônio aprendia tudo sem esforço, porque entendia a razão de se construírem casas, porque sabia da necessidade de portas e de janelas e porque estava consciente da importância do alicerce. Mas, não aprendia apenas o que via.

Maria, moradora do lugar, teve oportunidade de viajar para o litoral e conheceu o mar. De volta, contou: O MAR É SALGADO. E todos, crianças e adultos, puseram-se a pensar: Porque o mar é salgado? Quem teria jogado sal no mar? Quanto sal foi necessário? Há quanto tempo isso ocorreu?

Ao ver Maria, todos se lembravam do mar e dessas questões todas. Ela se tornou um SÍMBOLO de O MAR É SALGADO. Não foi preciso decorar, aprenderam isso naturalmente. Mas, havia muita curiosidade e nasceram muitas dúvidas. Planejavam ir até a praia, procurar respostas para suas perguntas. Passaram ainda a provar as coisas para ver se havia mais coisas SALGADAS ou, até mesmo, com outros sabores.

Porém, passou-se muito tempo – gerações inteiras – e o conjunto de casas tornou-se uma cidade grande, onde as pessoas não se conheciam e as casas eram construídas por empresas e não mais por pessoas. As crianças não mais ajudavam construir casas e, delas, não mais sabiam distinguir as partes, o início e o tempo de construção. Também, não pensavam mais por que eram construídas, de onde veio o material e quem o produziu.

Na escola, ensinavam outra lição invariável: O MAR É SALGADO. E, nas provas, perguntavam sempre: “Que gosto tem o mar?” e “Quem é salgado?” E, como ninguém conheceu Maria, a escola também ensinava que foi ela quem descobriu, em determinada data, que O MAR É SALGADO. Por isso, essas informações também faziam parte do estudo; parte da História do Lugar, que era preciso decorar e saber de cor.

As demais perguntas estavam proibidas e seria um sacrilégio alguém tentar separar o sal da água. Os conhecimentos do Livro Didático eram considerados suficientes. Para se estudar mais, bastava repetir várias vezes a mesma lição.

Foi então que, cansadas de decorebas, as crianças perderam o gosto pela escola e, não tendo interesse no sabor de um mar que não conheciam, não conseguiam aprovação, repetindo, além das lições, o ano letivo. A maioria desistia da escola, porque ela não tinha vida, tratando apenas de coisas sem uso no dia-a-dia.

Nessa escola, as crianças só aprendiam a verdade dos outros; ficavam alienadas.

Esse texto nasceu após a leitura da “SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO”, de SONIA M. P. KRUPPA. FPOLIS25SET95

DESEDUCAÇÃO

Lendo essas notícias,

http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2017-10/mec-quer-colocar-auxiliares-em-sala-de-aula-para-melhorar-alfabetizacao

https://novaescola.org.br/conteudo/7067/nova-politica-do-mec-coloca-assistentes-de-alfabetizacao-nas-escolas

fico ainda mais preocupado.

Colocar (ainda) mais professores em sala de aula é como colocar um segundo locutor na rádio, um segundo volante nos automóveis ou mais vendedores em lojas falidas.

Pouco resolve dar um carro para quem não sabe para onde ir e dar escola multimídia para aluno que não vê função na leitura/escrita/matematização.

Os filhos de pessoas que usam intensamente essas tecnologias ‘educacionais’ aprendem ler, escrever e calcular bem antes da ‘idade escolar’. Quando os pais e a família não alcançam os benefícios do letramento, de nada adiantará estender os períodos letivos ou entulhar a escola de ‘profissionais’. Essa é uma estratégia capitalista que amplia o mercado, ‘valoriza a profissão’ e atravanca a aprendizagem.

Precisamos mudar a Sociedade, os governos e o povo. Principalmente, o povo. E não fazer mais do que a realidade mostra ser um equívoco.

Fica muito difícil convencer alguém a andar a cavalo numa época em que sobram motocicletas e automóveis. As possibilidades e as formas de aprender mudaram; a ‘escola’ continua a mesma do tempo do lampião a gás. Ninguém aprende por decreto. Sobram ameaças e projetos mirabolantes.

Ampliar a hospitalização e a educação gera mais problemas para a saúde e para a aprendizagem. É preciso analisar quem lucra com a doença e com a ignorância.

Vamos mudar o Brasil?

SABEDORIA ESCONDIDA

Até a década de 1960, a Educação no Brasil era privilégio dos filhos da elite social e de uns raros pobres determinados a estudar, que conseguiam superar as enormes dificuldades pessoais e romper as barreiras socialmente impostas.

Porém, a partir da Revolução Militar de 64, o governo brasileiro assinou um convênio com os Estados Unidos, que previa ações estruturantes, dentre elas, a expansão do acesso à escola para todas as crianças e algumas oportunidades de formação técnica-profissional.

Para normatizar a implantação dessas mudanças educacionais, foi promulgada a LDB/1971 que extinguiu os cursos primário, ginasial e científico. Até então, a maioria deles estava sob a tutela de instituições particulares; na quase totalidade, oferecidos em escolas mantidas por congregações religiosas.

O governo revolucionário pretendia dominar a formação dos ‘novos brasileiros’, como pessoas e como cidadãos. Por isso, uma das primeiras medidas foi afastar as instituições e os métodos tradicionais; os novos cursos passavam a ser administrados pelos governos estaduais e, décadas depois, por parcerias entre os governos municipais, estaduais e federal.

De um modo geral, todas as orientações foram implantadas e persistiram, com alguns ajustes. No entanto, uma das opções pedagógicas teve duração efêmera, porque se mostrou equivocada e preconceituosa: formar turmas segundo o desempenho escolar e, para os iniciantes, segundo o desempenho escolar dos parentes mais velhos (irmãos, pais ou tios).

Na época, as proles eram abundantes e havia muitos jovens em idade escolar. Por isso, mesmo em pequenos povoados, foram formadas muitas turmas para cada série escolar. E, pelo critério elitista adotado, nas turmas ‘A’, estudavam os melhores alunos da região e/ou os ‘filhos das melhores famílias’, mesmo os que fossem pouco estudiosos. Na sequência decrescente de ‘capacidade intelectual’ e em ordem alfabética crescente, seguiam as demais turmas.

Em uma das escolas em que Maria Alfabetizadora trabalhou, as sextas séries do Ensino Fundamental alcançavam a letra ‘H’; a ‘6ª série H’ era a última e mais ‘fraquinha’, com apenas vinte alunos ‘repetentes’ ou candidatos à repetência. Dentre eles, o José Ignoto, que era considerado, pela equipe docente, ‘o mais fraco de todos’; por isso, recebeu o rótulo de incapaz de aprender e os professores estavam dispensados de tentar ensiná-lo, pois seria apenas desperdício de tempo e de dinheiro.

Porém, aconteceu de a avó do José Ignoto morrer de velhice.

Nas aldeias, os velórios eram eventos obrigatórios para toda a comunidade; o luto era coletivo. Por isso, naquele bairro operário, os colegas de turma do enlutado sempre visitavam o velório, como gesto de solidariedade e de espírito cristão.

Para cumprir a obrigação, a diretora da escola solicitou que Maria Alfabetizadora acompanhasse os alunos da ‘6ª série H’ e que representasse a escola na cerimônia, conduzindo, inclusive, as orações fúnebres. Afinal, a escola era autoridade cultural.

As crianças estavam acostumadas a caminhar até a cidade distante cinco quilômetros, para acompanhar os pais ou para, em excursão escolar, participar dos jogos estudantis, como atletas e/ou torcedores. Por isso, poderiam caminhar três quilômetros, sem maiores problemas. E, depois do compromisso, todos poderiam ir para suas casas, algumas delas até próximas do local.

Assim, a pequena procissão iniciou a caminhada em alegre algazarra: como se fossem fazer um piquenique. Isso até deixar a estrada principal e começar a subir a ladeira estreita. A partir daí, todos deveriam caminhar em silêncio respeitoso. Essa atitude favorecia a audição da cantilena fúnebre: uma voz juvenil conduzia as orações e parecia ser a voz do José Ignoto.

De fato: chegando cada vez mais perto, ia aumentando a certeza de que a autoridade eclesiástica, naquela cerimônia, era o ‘mais fraco dos alunos da turma’. E com que firmeza e com que convicção conduzia o culto!!! Maria Alfabetizadora tomou um choque de realidade. E as crianças também demonstraram surpresa, admiração e respeito.

Tendo participado de um bloco de orações e depois de passar ao lado do caixão persignando-se, a pequena procissão voltou para a estrada e para uma nova realidade: lá na casa dele, o José Ignoto era o mais letrado, lia com desenvoltura e conduzia o culto como um líder legitimado pela família.

Naquele final de tarde primaveril, os mitos e os preconceitos foram rompidos e a realidade mais cristalina inundou as mentes: o José Ignoto desempenhava na escola o papel de ‘pior aluno’, porém, em casa, livre das fôrmas e dos rótulos, era uma pessoa letrada, merecedora da admiração e da esperança da Família Ignoto.

Tessari, Mario. Maria Alfabetizadora. Jaguaruna, Edição do autor, 2014. (pg 42)