Comemorar. Lembrar prestando homenagem. Festejar. Guardar na memória. É isso que pretendo falar, da nossa homenagem a um profissional que há muito tempo se preocupa com a Educação, com a emancipação intelectual – o professor Mario Tessari.
Professor que nos provocou com os primeiros estudos sobre a necessidade de definir critérios para o que é fundamental em educação: a intervenção no fazer pedagógico. Assim, ensinou-nos que a Educação, além, é claro, de fornecer instrumentos para o educando atuar no mundo ou em uma profissão, necessita torná-lo capaz de reconhecer aquilo que não tem valor apenas imediato: uma Educação que visa conhecimento e reflexão.
Professor comparado ao grande personagem, professor Jacotot, da obra O Mestre Ignorante, de Jacques Rancière. Um mestre que ignora as diferenças porque sabe que todos podem aprender, independente do caminho que escolherem, mas que também tem confiança naquele que “está sempre na porta” – o professor.
Podemos definir Mario Tessari como uma figura antagônica. Ao mesmo tempo em que o amamos o odiamos. Às vezes, como Jacotot, dá-nos as coordenadas e espera. E nós – a exemplo dos alunos do professor homenageado por Rancière – buscamos, sofremos, nos indignamos, mas, ao final, o surpreendemos! Jacotot também teve esta memorável experiência.
O Professor Mario a cada visita exorciza nossos corpos até fazê-lo vivo e percebido por nós mesmos. Ensinou-nos a tecer nossa história de educandos, mas muitas vezes nos deixa na solidão quando não se contenta apenas com nossos relatos e nos tira do lugar ao perguntar: “O que vês, o que pensas, o que fazes disto?”.
Arquivo mensal: dezembro 2024
O SABOR DO SABER
O prazer de aprender
nos leva a provar o gosto
de todas as dúvidas,
ao sabor da curiosidade.
Muitos consideram amargo
o gosto da dúvida,
porque sofrem
de medo do desconhecido.
Por preguiça de pensar,
preferem vegetar
na zona de conforto
da mediocridade.
Precisamos ir ao desconhecido
para provar o sabor
e saber o gosto dele,
para gostar ou não.
Precisamos provar,
para aprovar ou não aprovar
esse novo por conhecer
e o antigo que desconhecemos.
Precisamos selecionar alguns saberes
para construir caminhos
que nos levem ao desconhecido;
precisamos utilizar o velho
para gerar novidades;
precisamos repensar o já-pensado
e pensar o ainda-por-pensar.
Precisamos pensar
o velho de um jeito novo.
Pessoas acomodadas
se satisfazem
com ideias engessadas.
Pessoas insatisfeitas
conseguem satisfação
na procura de respostas
para as dúvidas.
Os satisfeitos vivem de mesmice;
são pessoas cansadas
que se alimentam
de pensamentos sintéticos.
Do livro POEMAS DE MARIO TESSARI QUE EU GOSTO – MARIA ELISA GHISI
Nova Trento
Carta aos alunos da Escola Francisco Mazzola, em 17 de agosto de 2002
“Cada ser em si carrega o dom de ser capaz, de ser feliz.” Almir Sater
O conhecimento nos leva à existência.
Antes de estar com vocês, eu não os conhecia e, provavelmente, vocês não me conheciam. Por isso, não existíamos um para o outro. Não podíamos pensar um no outro, porque não tínhamos uma idéia do outro ainda não conhecido. Há magia no ato de conhecer: o ato de conhecer dá existência a quem e ao que assumimos como conhecido. Só agora existimos um para o outro. Logo, a existência não é uma decisão individual; ela é uma construção coletiva.
Como quando conversamos, no início desta semana, vou analisar algumas palavras. Falamos em amizade e ela me transporta para a palavra comunhão: a união dos que têm objetivos comuns, crenças comuns; os mesmos ideais. E comunicação é o agir coletivo dos que comungam dos mesmos ideais. Já confusão quer dizer aquilo que se fundiu, se misturou, que perdeu a ordem; incapacidade de reconhecer diferenças, falta de clareza.
Precisamos estar em comunhão sem nos fundir com o outro, sem nos anular. O “nós” é constituído da união dos “eu”. Precisamos estar juntos, construir juntos, mas sem perder a nossa identidade. Jamais haverá um “nós” forte se não construirmos um “eu” sólido e solidário. A sociedade será tão ética e tão cooperativa quanto éticos e cooperativos forem seus sócios.
Falamos também na palavra competência: “qualidade de quem é capaz de apreciar e resolver certo assunto, fazer determinada coisa, …” Uma das metas que a maioria de vocês estabeleceu, para esse ano, foi “passar de ano”. Vocês têm competência para “passar de ano”, porque são capazes de analisar e dar solução para todas as tarefas escolares.
O ano passa todo mês, toda semana, todo dia, toda hora, todo minuto, todo segundo… Por isso, a todo momento, precisamos fazer o que precisa ser feito, da melhor maneira que pudermos e com prazer. Só podemos ter interesse e sentir prazer por aquilo que conhecemos, a começar por nós mesmos. Conhecer a nós mesmos é tomar consciência de nossas capacidades, de nossas habilidades e principalmente do que queremos, do nosso projeto de vida. Conhecer a nós mesmos implica em tomar consciência de como e de quando sentimos alegria ou tristeza, de como e de quando aprendemos, de como nos vemos e de como somos vistos.
Somos estranhos de nós mesmos: não reconhecemos as nossas reais capacidades e acabamos nos subestimando, nos fazendo menores do que somos. Por isso, fazemos menos e vivemos menos.
Outra meta estabelecida “para a vida toda”, pela maioria, foi: ser feliz.
Felicidade não é um lugar no futuro. Em cada momento, em cada lugar e com cada pessoa, a felicidade é outra. As felicidades são muitas. E estão à nossa disposição. A felicidade é como a água de uma fonte: vai passando pelas nossas mãos. Só conseguimos aproveitar uma pequena porção da água; a maior parte vai embora. Quando estamos com muita sede, toda água é boa. Parece que nossa sede de felicidade é pequena, porque deixamos que a felicidade cotidiana escorra pelos nossos dedos, esperando por uma felicidade perfeita, que está à nossa espera, em algum lugar, no futuro. Precisamos aproveitar e viver a felicidade de agora, com as pessoas com quem estamos, senão essa chance se perde e não poderemos mais viver o momento que passou.
Amigo não é aquele que aceita o outro como o outro é. Amigo é aquele que, conhecendo o outro, valoriza as qualidades do amigo e que propõe, com ele, trabalhar para reduzir os defeitos e preencher as falhas. Amigos constroem, em conjunto, os conhecimentos, as habilidades e os valores necessários à felicidade.
Juntos, vamos construir as competências necessárias para uma vida feliz.
Mario Tessari
SER-VIL
Que faz um homem ser-vil?
O tempo, a ocasião ou a fome?
Ah! quantos escravos do homem,
da gula, do poder e ... do porvir!
O medo ronda, sem dormir.
Grana falta, inveja consome,
poucos matam ... somente fome.
Medíocres preferem servir...
Escravos servis da matéria,
instrumentos pagos com medo,
ameaças, gritos e socos...
A liberdade está em férias,
o belo ideal morre cedo...
Os mais decentes ficam loucos.
Poema escrito em 1971.
https://livrosdomariotessari.me/ipomeia-2/
O CANHÃO DO SIRINEU
O CANHÃO DO SIRINEU
Aos dez anos, o Sirineu ‘saiu de casa’, deixando para as seis irmãs dele a responsabilidade de cuidarem dos pais, dos parreirais e demais plantações, além de algumas vaquinhas magras e desanimadas. Foi para o seminário aperfeiçoar a alma através do estudo do Latim e de outras línguas mortas, da Matemática, da oratória, da música e do teatro, para se tornar digno do sacerdócio. E deve ter sido bem aplicado, pois, dos cento e sessenta e dois principiantes, foi o único a receber a ordenação. Porém, para adquirir o direito de rezar missas, enfrentou muitas dificuldades.
Nascido e criado nos pedrentos vales do oeste catarinense, sem conhecer alpargatas ou botinas, havia usado chinelas de couro cru apenas nas festas religiosas de maior importância. Por andar descalço sobre os seixos, as solas dos pés desenvolveram um cascão que amassava até espinhos e os dedos adquiriram a resistência necessária para enfrentar as normais topadas nas andanças e trabalhos diários.
Para ingressar no colégio religioso, recebeu o primeiro par de sapatos, confeccionados pelo rude sapateiro da vila, que, conhecendo o pé-duro, comentou:
— Só use os sapatos em ocasiões solenes ou na igreja, onde o enorme sacrifício será um louvor a deus.
E o seminarista seguiu o conselho. No mais, andava descalço ou com os pés metidos nas velhas chinelas de couro cru, o que pouca diferença fazia, pois eram tão sujas que ele continuava a pisar em terra.
Na segunda série ginasial, o Sirineu continuava a sorrir candura provinciana para todos e para tudo, mesmo que sofresse com apelidos e brincadeiras de mau gosto. Sorria superior à grosseria, ao conforto e ao calçado moderno. Entrava na sala de aula pisando as chinelas… que depositava sob a carteira, de onde eram recolhidas ao final das aulas. Sempre, extrovertido, sorrindo e se comportando com a inocência dos seres naturais.
Quando o padre, professor de Língua Portuguesa, foi transferido de repente, o reitor pediu para uma freira que suprisse temporariamente a ausência do mestre. Naqueles santos tempos, somente padres (nem todos másculos…) lecionavam para seminaristas. As freiras, responsáveis pela cozinha e pela lavanderia, permaneciam invisíveis, atrás de janelas e portas giratórias opacas, já que as mulheres – símbolos do pecado – poderiam pôr a perder as vocações sacerdotais.
Logo, a aparição de uma freira, mesmo que fosse velha e encarquilhada, por si só, já era fato extraordinário. O véu impedia de ver a cor dos cabelos, entretanto, as peles e o andar arrastado poderiam comprovar a idade avançada. Enxergava bem; estava praticamente surda. Ela havia consumido a existência no ensino da Língua Pátria para meninas e moças noviças, candidatas à vida monástica; jamais lecionara para meninos, moços ou homens.
Na apresentação, o reitor não mencionou o nome dela; só reafirmava: “a nova professora”. Os alunos-seminaristas entenderam que ela seria a nova professora, mesmo não sendo uma professora nova. E mesmo que o reitor não tenha informado, eles concluíram que os ouvidos da ‘nova professora’ estavam falidos, pois ela se mantinha impassível diante da ladainha do ‘chefe’, reagindo apenas aos gestos e às mímicas. E, na primeira aula, recebeu um apelido.
Ela chegava à sala, lia cada nome da lista de alunos e, como surda convicta, aguardava que aqueles que estivessem presentes levantassem um braço para que ela pudesse conhecer ou reconhecer cada um dos ‘novos’ alunos. A seguir, escrevia na lousa as tarefas e os exercícios que cobrava com rigor. Na última linha, lembrava aos pupilos que as perguntas deveriam ser feitas por escrito.
Com autoridade, ela exigia disciplina. Isto é, que não saíssem de suas carteiras, que não andassem pela sala. Poderiam falar à vontade, poderiam até gritar. Todavia, sem sair do lugar. Se o olhar dela percebesse algum movimento individual ou se a turma se contorcesse em gargalhadas, ela soltava uns gritinhos e ordenava com energia:
— Meninas, silêncio!
Satisfeita com o controle exercido sobre a turma, abria o livro didático e convocava um aluno para iniciar a leitura, mantendo sempre o dedo magro e trêmulo sobre o nome até um momento imprevisto em que gritava:
— Cêga, menina.
Declamava um segundo nome e vendo alguém se levantar (nem sempre aquele que ela designava), emitia sua palavra de ordem:
— Gontinua.
Nem é preciso dizer que, para cumprir a ordem, bastava um dos alunos permanecer em pé, falando qualquer coisa, como, por exemplo, conversar com o colega ao lado, pois ela só observava se o pseudoleitor movia os lábios. Assim, a leitura de uma página durava uma aula inteira, … sem ser lida.
Naquele dia, o Sirineu estava com os intestinos lotados de gases… que, vez em quando, alcançavam a liberdade… com ruídos e com odores bastante desagradáveis. Numa explosão mais proeminente, até a freira, surda consagrada, conseguiu ouvir o estrondo. Assustada, ela indagou:
— Que foi isso?
— O Sirineu soltou um canhão.
— O qué?
Repetiram, mas a professora Gontinua continuava sem entender e ficava cada vez mais exaltada. Apontaram na direção do réu e, como a turma caísse na gargalhada, exigiu por escrito a razão de tamanha bagunça. Reafirmaram por escrito que o Sirineu soltara um canhão. Ao que ela sentenciou:
— Menina, traga aqui esse objeto.
Na carteira em frente a ele, o Adelar consertava uma bola de capotão, com as mãos trabalhando embaixo da carteira. Sugeriram que ele entregasse a bola para a freira. Ele não aceitou porque ‘a bola não era dele’. Além do que a freira notaria que o autor do trovão tinha sido outro. Queria mesmo era ver o canhão do Sirineu. Alguém disse para o ‘criminoso’:
— Leva uma chinela.
E ele, vermelho e chorando de tanto rir, foi andando com a chinela nas pontas dos dedos das duas mãos até à mesa sobre o estrado. Formavam uma imagem ridícula: o aluno risonho babando sobre a chinela imunda e rota, fedendo como nunca.
Enojada, a freira gritou:
— Isso é um canhão? Como você conseguiu soltar isso? Nunca mais solte canhão durante a aula.