DEUS, UM DELÍRIO … COLETIVO

Eu tenho opinião diferente das opiniões do Richard Dawkins e do Gilvas.
https://mail.google.com/mail/u/0/h/1k1ikw0z3w40a/?&th=16787f1e759d0133&v=c
     Deus existe. Sempre um deus coletivo; nunca ouvi falar em deuses individuais; um deus para si mesmo.

     Existem muitos ‘de eus’; milhares ‘de eus’. Cada vez que algumas dezenas de pessoas se congregam e se concretam numa ‘verdade’, cada vez que algumas dezenas de eus se sentem irresistivelmente atraídos por uma ideia, esse pensamento se torna ‘ideia fixa’ sobre espiritualidade, etnia, identidade de gênero, medo da morte, martírio, futebol, política, penitência, finanças, economia, estrelas, animais, nacionalismo ou liberdade utópica.
     A comunidade adepta constrói um coletivo ‘de eus’ que passa a comandar as subjetividades; pessoas que acreditam em horóscopos, superstições, magias, bruxarias, simpatias, benzeduras, mau-olhado, sucesso, destino, riqueza e compensação celestial.
     Para que uma ideia fixa ou uma crença se torne religião, basta que sejam eleitos guardiões. “Muitos são os chamados; poucos, os escolhidos.” O guardião tem a missão de guardar a verdade que foi divinizada, de proteger os crentes (que, ao acreditarem cegamente, perdem o senso de realidade), de fiscalizar o cumprimento integral das obrigações dos fiéis seguidores e de administrar os tabernáculos que guardam almas e segredos. Daí a existência de confessionários…
     Tudo o que for sagrado deve estar protegido em sacrários. Surgem os templos para abrigar as ‘riquezas espirituais’ e um guardião dos guardiões para organizar a estrutura da igreja; uma hierarquia de guardiões.
     Assim, nascem as religiões: na contínua e cada vez mais intensa convicção da verdade tornada absoluta para pessoas que se prendem indissoluvelmente a um agregado ‘de eus’; pessoas que, guiadas por um salvador, se ligam, se religam e se sustentam em procissão rumo ao paraíso e/ou ao lucro prometidos.
     Pode ser que seja apenas um processo natural, como os processos físico-químicos fundamentais. Quando alguns (ou muitos) elétrons são atraídos irresistivelmente por um núcleo formado por prótons e nêutrons, passam a formar um átomo; quando um ou vários átomos se unem permanentemente uns aos outros, formam moléculas; o aglomerado de moléculas forma matérias, corpos, ligas, artefatos, … reconhecidos internacionalmente.
     Nas Ciências Sociais, as ideias se estruturam em conceitos, teses, sínteses, definições, teorias, doutrinas, … Os cientistas são guardiões das verdades científicas; nesse sentido, os cientistas são os sacerdotes da Ciência.
     “É mais fácil desintegrar um átomo que remover um hábito.” Albert Einstein
     E que diluir uma crença.
     Porém, as instituições (como o dinheiro, por exemplo) só existem enquanto acreditamos nelas.

Notas:

  1. A Bíblia foi a primeira enciclopédia europeia da Humanidade, contendo tudo o que havia sido manuscrito, os textos eruditos, e o que se conseguiu reunir da tradição oral e da sabedoria popular.
  2. De fato, temos imensa dificuldade de assumirmos nossos ceticismos.

Ceticismo, “doutrina segundo a qual o espírito humano não pode atingir nenhuma certeza a respeito da verdade, o que resulta em um procedimento intelectual de dúvida permanente e na abdicação, por inata incapacidade, de uma compreensão metafísica, religiosa ou absoluta do real” Dicionário Houaiss

DEUS SALVE O REI

dEUS salve o rEI

Minha postura é indigna? Seria uma questão política? Salvar a Nação?

Não. Não contem comigo para salvar a Pátria, o Rei, os ministros, os cortesões, os sábios, as concubinas, os sacerdotes, os conselheiros, os pajés, …

Estarei na plateia, rindo dos ridículos governantes.

Peço que me contestem nas divergências… mas… não vale a pena nos indispor por questões políticas.

Vivi sob a égide de uns quinze presidentes, outros tantos governadores e mais prefeitos (não, perfeitos). Pouco tempo perdi “salvando o mundo”. E foi tempo perdido.

Governos são como o clima, as estações, as eras, … Reclamo deles, ironizo seus feitos e efeitos, porém, me adapto às ETERNAS MUDANÇAS… que sempre se repetem.

E eu… procuro não me repetir; vivo ao alcance da minha aura… uma única vida.

A IMAGEM E A ESTÁTUA

O cérebro, através de processos sensitivos, registra na memória imagens (construções mentais de objetos e de acontecimentos), analisadas pela razão ou aceitas “de maneira irrefletida pela consciência imediata” [Houaiss]. Em geral, essas imagens revelam o quanto e o como percebemos a realidade objetiva.

O vocábulo ‘imagem’ descende de ‘imago’, do Latim, imitar. No caso, imitar as características de algum objeto ou fenômeno. Objeto como ação do sujeito pensante; parte do predicado, um atributo, fruto da intuição e da imaginação, formatado de acordo com as categorias do intelecto.

Talvez, por se sentirem inseguros, alguns constroem ou mandam esculpir estátuas das imagens que temem possam fugir da memória deles. Assim, toda vez que esquecerem ou forem tentados a mudar a imagem que formaram de uma pessoa, de um sentimento ou de um fato, eles podem olhar as estátuas correspondentes e voltarem a sentir ‘que nada mudou’, que eles continuam os mesmos, como continua igual a estátua que erigiram.

Platão, em Alegoria da Caverna, analisa como que pessoas presas a imagens ilusórias acreditam conhecer a realidade. Conhecimento ingênuo, frágil diante de análises críticas. E nos força a concluir: “O sábio, depois de desenvolver o conhecimento verdadeiro, sabe apreender, sob a aparência das coisas, a ideia das coisas.”

O ídolo, eleito por seus admiradores, pode rejeitar as imagens que dele fazem, aceitar opiniões alheias ou cultivar a veneração para si mesmo. O cultivo do fascínio pode gerar encantamento e se consolidar em mito.

Muitas vezes, grupos humanos constroem ídolos e se entregam à idolatria. Veneram pessoas e coisas com a convicção de que são sublimes, quase divinas.

Às vezes, nem a morte rompe a quimera. Ao contrário até, pode ampliar e prolongar cultos, gerando mitos.

A PENÚLTIMA ORAÇÃO DO PAI-NOSSO

O pai-nosso é um texto composto de dez orações sintaticamente coordenadas e subordinadas; muito rezadas e reoradas.

Começa com “Pai-nosso, que estais no céu, santificado seja vosso Nome, …”. Exprime o desejo de que seu Nome seja santo; não ele próprio (deus), apenas o Nome. Muito menos o rezador…

“Pai-nosso, que seja santificado vosso Nome” é oração grávida, pois, traz, dentro de si, a oração subordinada adjetiva explicativa “que estás no céu”, esclarecendo que o orador (aquele que ora) está se dirigindo ao pai divino e não ao pai pecador que mora em casa. Importante ressalva, porque os ‘órfãos de pai’ podem ter dois pais no céu: um divino e um cristão. Isso, se o pai terreno, antes de morrer, se arrependeu dos pecados… Ou, talvez, esteja pedindo ao pai divino que corrija o pai humano nada santo, porque comete muitos pecados.

“Venha a nós o vosso reino e seja feita vossa vontade, assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia, nos daí hoje e perdoai nossas ofensas como nós perdoamos a quem nos tem ofendido e não nos deixeis cair em tentação… Mas, livrai-nos do mal.”

Sempre rezo “Livrai-nos do mal” (repito, para mim mesmo e para os outros), a penúltima oração do Pai-nosso (palavra composta; nem pai, nem nosso; apenas o nome próprio da oração) que finaliza com “Amém”, do Hebraico, “assim seja”, declarando a nossa fidelidade e o firme propósito de acreditarmos no que falamos.

Para nós, temorosos humanos (que praticamos o temor a Deus…), reservamos a penúltima oração: “… livrai-nos do mal.” Rogamos que nos livre do mal alheio, parece… Embora (síncope de ‘em boa hora’), possamos sucumbir aos males que causamos a nós mesmos.

O pai-nosso é uma invocação – isso mesmo, uma (in)vocação –, uma não-vocação cristã, que representa a alienação pela fé, a abdicação de assumir a vida real, delegando a um deus as responsabilidades pessoais.

A vocação, ação de chamar de viva voz, apelo, chamamento, pendor, parece insuficiente. Então, os fiéis, conscientes de que não têm vocação, invocam a proteção divina, de deuses que eles mesmos edificam. Se tornam invocados, cismados, desconfiados da própria fé, preocupados, irritados e coléricos, até.

TUMOR DE COLÍRIO

Matusalém Vitalino estendia a vida com medicamentos guardados em duas caixas em vieram acondicionados o último par de sapatos e as botinas para os invernos. Complementava o tratamento com a ingestão de uma jarra de água-benta, acompanhada de rezas santas.

Dentre os medicamentos receitados ‘para o resto da vida’, estava um colírio que manteria a saúde dos olhos, ‘desde que não interrompesse o tratamento’. Inicialmente, o diagnóstico foi ‘glaucoma progressivo’. Com o passar dos muitos anos de ‘cuidados do médico para com o paciente (sic)’, o clínico acrescentou uma catarata reversível, pois o implante de lentes artificiais renderia bem mais que os dividendos distribuídos pela indústria farmacêutica.

A chance de o cirurgião ganhar a bolada de dinheiro dilui-se na visão nítida dos ponteiros do relógio marcando os segundos e das baratas e das formigas que o ‘quase cego’ via andarem pelo assoalho da mesma cor que os semoventes.

Ao médico, restava a fonte de renda auferida com a indicação de venda do colírio e a possibilidade de tratar os efeitos colaterais da medicação.

Demorou o colírio apodrecido durante anos nas covas oculares começar a aparecer por debaixo da pele das pálpebras. Inicialmente, formando pequenas bolotas, identificadas pelo médico como ‘verrugas’ a serem cauterizadas.

As cauterizações rendiam mais que os percentuais recebidos na participação das vendas de medicamentos e contribuíam substancialmente para a manutenção da clínica e dos clínicos. Bastava administrar as doses e as substituições dos quimioterápicos por similares de outras marcas ainda não beneficiadas com a doença cultivada.

Tudo ia muito bem, não fosse aparecer alguém com disposição para ler as bulas e identificar os efeitos colaterais que se manifestavam progressivamente ao redor dos olhos do candidato à eternidade.

Esse alguém agiu em silêncio, trocando o conteúdo do frasco do colírio por soro fisiológico, que continuou a ser administrado com a regularidade costumeira. Os edemas diminuíram em número e tamanho. Os tumores logo desapareceram. Em um mês, o ‘câncer’ sumiu, secando as fontes de renda médica.

Então, os louros (e os lucros) migraram para a Igreja, pois o paciente passou a acreditar que “curou as feridas com muita água-benta e orações” diante da televisão com som em alto volume. Bem-vindos os dízimos de quem sofre!

***

Muitos médicos e todos os sacerdotes cultivam a fé de seus pacientes fieis com ferramentas de mídia e adubos espirituais. Constroem suas lavouras e searas nas mentes ingênuas dos que alimentam esperanças de vida eterna. Para ‘fazer o bem’, cobram dízimos bem mais onerosos que a décima parte dos proventos de aposentadoria. A família complementa a dieta medicamentosa com contribuições financeiras e assistências enfermáticas.

Nota: Os acontecimentos são reais; troquei o nome do protagonista.

INSETO TRANSNACIONAL

Alguém questionou a capacidade técnica do professor Arnaldo, de Geografia, denunciando que ele não preparava as aulas, não tinha plano de aula e que os alunos nada aprendiam.

No dia seguinte, uma equipe da supervisão de ensino chegou à escola de supetão e pôs a diretora Avani em polvorosa. Reação imediata, ela mandou alguém levar, para a sala de aula em que deveria estar naquele horário o professor, um guarda-pó que estava pendurado na sala dos professores e um mapa da Europa, como se fossem pedidos de professor de outra sala de aula.

Ao receberem os ‘materiais didáticos, os alunos ficaram sabendo, por telepatia, que algo iria acontecer, além da chegada do professor que ainda batia chinelos ladeira acima para chegar pouco atrasado. O guarda-pó foi colocado sobre o espaldar da cadeira e despertou curiosidade, pois nunca tinham visto o geógrafo com tal paramento.

Mas, mapa eles conheciam e adoravam viajar mentalmente pelos hemisférios. Por isso, estenderam a Europa no chão da sala e começaram a bisbilhotar os nomes de cada pedaço colorido da carta gráfica.

Nisso, assomou à porta a diretora acompanhada da comissão julgadora, perguntando pelo mestre. “Foi buscar giz” – falou um aluno, pouco antes do Arnaldo entrar com o rosto suado.

Entrou e, percebendo a inquisição, vestiu o guarda-pó da colega bem mais miúda que ele. O mestre ficou literalmente ‘ensacado’. Assim mesmo, assumiu o comando pedagógico da turma que estava debruçada sobre o Mapa da Europa.

Colocados em cadeiras no fundo da sala, o inquiridores acompanhavam a aula, anotando tudo em suas pranchetas. Alunos entusiasmados, formulando muitas perguntas; professor, com conhecimento histórico-geográfico, interagindo com moderação, vez em quando, apontando com o dedo os deslocamentos das fronteiras nacionais motivados e forçados pelas guerras. A produção de interesse e de motivação foi tanta que até os ‘policiais pedagógicos’ se levantavam para ver, por cima das cabeças movediças dos alunos sobre o mapa, se as informações verbais estavam de acordo com as informações gráficas.

A aula por si só já fluía numa dinâmica cheia de energia. E, aí, a Natureza entrou com sua colaboração: um piolho escorregou dos cabelos de um aluno e caiu sobre a Alemanha.

Aproveitando o ‘recurso didático’, o professor Arnaldo desafiou os alunos a narrarem a viagem do inseto anopluro sobre a Europa deitada no assoalho da sala de aula. “Saiu da Alemanha, passou por Praga na Tchecoslováquia, subiu para a Polônia, resolveu voltar para a Ucrânia, talvez estivesse evitando ir pra Rússia por causa do frio, …”

A turma estava no auge de envolvimento didático quando soou o estridente sinal eletrônico determinando o fim da aula. Os alunos soltaram muitos protestos pela interrupção arbitrária da viagem do piolho e os auditores pedagógicos suspiraram antes de anotar os últimos elogios ao mestre espremido dentro em um guarda-pó rompido na parte posterior das axilas.

PROFESSOR DE HISTÓRIA

Na infância, encantou-se pela magia das histórias; via nelas mais que a realidade: eram essências cristalinas da vida. Sonhou ser arauto: aprendendo, sabendo, criando e divulgando ‘a verdadeira verdade’. E, como tudo o que acreditamos pode se tornar realidade, tornou-se Professor de História.

Embriagado com a própria convicção, lia, publicava, transmitia e professava os textos históricos; acreditava piamente que aquelas palavras eram expressões de verdade: a História era a realidade do passado vista no presente como se fosse um conjunto de documentários gravados diretamente nas fontes das informações.

Porém, de tanto recitar, começou a perceber que havia versões diferentes e até contraditórias do mesmo fato histórico. Com um pequeno esforço mental, constatou que a História não era uma coleção de fatos da realidade passada; mesmo que ainda acreditasse que os livros de História continham relatos de quem viu os fatos acontecerem.

Em dado momento e a contragosto, constatou que o historiador era um advogado de si mesmo, que defendia a qualidade e a originalidade de suas autorias, que lhe outorgavam méritos publicitários e direitos econômico-financeiros. No entanto, a originalidade estava apenas na edição dos livros e das revistas, porque o historiador contava o que tinha lido ou ouvido de outros.

Ou pior: poderia estar defendendo o que os outros inventavam. De muitos outros. De uma cadeia de ‘historiadores’; pois os textos eram transcrições da realidade ocorrida. A História acabava sendo uma sequência de ecos, tão longa quanto a distância entre as remotas origens e as edições recentes das velhas informações. A cadeia de ecos ganhava a amplitude da antiguidade histórica. Cadeia, nos dois sentidos.

Caía por terra o mito de que o historiador era a fonte primária dos fatos oficiais; o historiador seria apenas mais uma etapa do registro histórico, montado com base em fontes secundárias, terciárias, quaternárias, … até perder os elos dessas fontes artificiais.

Concluiu, a contragosto, que o historiador era um bom contista da ficção da realidade passada. Mais adiante, ficou chocado com a certeza de que a História poderia ser totalmente fictícia, inventada a partir de indícios: fragmentos, sonhos, quimeras, ilusões e más intenções. Era como montar um australopiteco a partir de um pedaço de dente.

Finalmente, caiu na realidade e constatou que professava, com fanatismo, histórias de fadas, histórias de terror, histórias eclesiásticas, histórias militares, histórias sociais, histórias políticas, … Verdades literárias, verdades políticas, verdades bíblicas.

Concluiu que todas as histórias da História poderiam ser contadas em muitas versões, conforme as necessidades dos poderosos e que ele – Professor de História – era apenas um instrumento de enganação no processo de dominação das massas.

Soube ainda que as pessoas usavam a História para formar, conquistar, manter os poderes. Cada vez mais poderes ainda, atormentando os outros com mentiras históricas. E, antes de morrer, envergonhou de saber que era apenas um discurso em si mesmo.

Observações:

  1. As massas humanas são as mais fáceis de cozinhar.
  2. Enquanto os leões não aprenderem a escrever, as caçadas serão descritas pelos caçadores.” Provérbio Africano, que traduzo para: Enquanto os cães não aprenderem a falar, as histórias serão contadas pelos cachorros.

Sítio Itaguá, 2014.

CAÇULICE

   Caçula, do vocábulo quimbundo kasule, filho/a ou irmã/o mais novo de uma família. A palavra caçula também é usada, pelos bantos de Angola, “para descrever um jogo entre duas pessoas que usam o pilão para socar o milho, o arroz ou outro grão, batendo alternadamente. Este movimento alternado também é conhecido como sula, que nesse contexto, corresponde a um sinônimo de caçula.” Podemos comparar com a mãe e o pai socando alternadamente os desejos de influenciar a criança.
A formação, as características e os comportamentos de quem é caçula resultam de circunstâncias sociais, principalmente, da influência de familiares através de 'depósitos' psicológicos. Um dos pais ou os dois deposita(m), no último (ou único) filho(a), os desejos reprimidos (segunda ou outra chance de realizar projetos ou planos pessoais frustrados por falta de oportunidade ou de capacidade de realizar algo).
A genética acaba 'levando a culpa' de heranças impostas como missão depositada no bebê, criança ou jovem, como se fosse o planejamento de uma obra material executada com falhas ou não executada. Há influências genéticas, sabemos. Porém, o senso comum (linguagem de rebanho) encobre traços culturais inconvenientes (manias e comportamentos anormais, modo de viver que destoa dos costumes e propicia má conduta; concessão de situação incomum, equivocada ou inadequada) com a pretensa justificativa de que os desvios comportamentais decorrem de determinismos genéticos.
Nesses casos, o excesso de amor e a projeção de expectativas justificariam a bajulação que permite a licenciosidade das ‘pessoas amadas’ (licenciosidade: “abuso de liberdade, desrespeito às normas e às convenções sociais; desregrado, indisciplinado”). Esse distúrbio compensatório de frustrações gera mais frustrações e confusões na família. Receber a missão de realizar o que os depositantes não conseguiram (por dificuldades naturais ou por ser busca utópica) se configura como a pior das heranças; herança cultural e não predisposição genética.
E não precisa ser o último ou a última; basta que seja construída a anomalia social. A ‘síndrome do caçula’ pode ocorrer com o primogênito tardio, com a filha numa irmandade de muitos ‘masculinos’ (ou único filho-homem com muitas irmãs), filhos de qualquer gênero com limitações congênitas ou os cônjuges entre si. Essa relação doentia exacerba em caso de filho ou de filha que se torna órfã ainda criança ou mesmo antes do parto.
Podemos encontrar o exemplo de caçulice plena quando os avós 'precisam' criar os netos porque as crianças ficaram órfãs ou os pais se divorciaram em busca de aventuras sexuais mais prazerosas que as conjugais. (netice, no caso)
As vítimas da Síndrome de Caçula podem aceitar, rejeitar ou reforçar o depósito afetivo. Quanto mais aceitam e reforçam a anomalia dessa relação interpessoal, mais dengosas e dependentes se tornam: quando assumem a caçulice, chantageiam atenções, se frustram por ninharias, permanecem infantis e não desenvolvem autonomia.

A IMAGEM E A ESTÁTUA

QUASE DO ALTO DA MONTANHA

   Minha meta era chegar ao topo da montanha. Estava confiante. Sai bem cedo. Muitas pessoas queriam me ajudar nessa empreitada e sobravam ofertas. Bem agasalhado, com os pés protegidos e com o olhar curioso, dei os primeiros passos com vontade de ir longe e de ir por minha conta.
A caminhada inicial foi faceira. Eu andava solto, sem memórias a carregar. Os moradores das duas beiras da estrada me ofereciam frutas e orientações. Por pressa ou por ilusão de suficiência, pouca coisa aceitei e segui com determinação.
Nas planícies pontilhadas de casas que abrigavam muitas pessoas sorridentes, os campos cultivados emendavam uns nos outros, preenchendo as distâncias que meus olhos conseguiam abarcar. Ali, não via espaço pra mim; teria de seguir procurando meu lugar.
Como trazia o estômago cheio e encontrava ar fértil para efetivar as trocas gasosas, caminhava resoluto, devorando distâncias, sem analisar meus passos e as infinitas possibilidades de caminhos a tomar. Apenas, pisava firme, seguindo adiante, levantando os olhos, vez em quando, para mirar as escarpas que pretendia alcançar. Ainda, com pouco planejamento.
Empurrado pelo entusiasmo, galguei as primeiras elevações, donde poderia avistar os campos adjacentes, mas... nem lembrei de olhar para trás. Urgia andar depressa, sem paradas para beber água, pois o relógio de sol deslizava continuamente.
Subi nos primeiros contrafortes que sustentavam a base da cordilheira e me senti o máximo: um vencedor, para o qual, os obstáculos seriam apenas desafios. Naquele momento, vencer a dificuldade de continuar a escalada rumo ao ápice.
Enquanto a inclinação do terreno exigia pouca obliquidade das solas dos sapatos, mantive a inconsciência da existência de meus pés. Também, desconsiderava o derredor e a possibilidade de outros estarem percorrendo trilhas paralelas aos meus rastros ou convergentes ao meu alvo.
A elevação permitia, cada vez mais, vislumbrar paisagens e eu poderia apreciar as belezas primaveris. Mas... era tempo de caminhar... no qual, não cabiam devaneios poéticos: deveria baixar a cabeça e andar e andar e andar...
Andava já com algum peso nas pernas. O ar se fazia menos denso e o calor fustigava minhas costas. A mente perdia as convicções, as ideias começavam a esmaecer e o crescente silêncio afastava comentários e palpites. Pude, assim, continuar minha escalada sem contestações.
As argilas macias pisadas no início da jornada deram lugar a cascalhos, seixos e areião. Acima, avisto saibro, pedras soltas, algumas lajes que se mostram em parte. Terei de ter mais cuidado ao firmar os pés no solo instável; um escorregão pode provocar alguma queda e arranhões doloridos.
Ultrapassadas as primeiras montanhas, encontrei pedras firmes, em aclive crescente, que força meus tornozelos e estica as panturrilhas. As dificuldades passam a calibrar o ímpeto de avançar. Comecei a analisar atalhos, por critérios de segurança e para economizar energias.
Na planície e nas rampas suaves, eu deixava os braços balançarem as mãos ociosas, mantendo sem esforço o prumo do corpo. Ao transpor as colinas, precisei usar braços e mãos para fazer contrapeso ao desequilíbrio alternado pelos passos sobre o terreno irregular, como um equilibrista sobre o trilho estreito. A velocidade da marcha se reduzia com o aumento gradual de dificuldades. Ao mesmo tempo em que minha soberba definhava.
Restava pouca água no cantil e eu olhava menos para cima. Vez ou outra, parava para contemplar as encostas pedregosas mais abaixo, encobertas por vegetação luxuriante. Todavia, meu objetivo cobrava coragem para prosseguir. Mesmo sentindo cansaço, substituía os ímpetos iniciais por esforços para salvar o orgulho.
Quanto mais alto, mais só e mais fraco. As companhias das planuras, as frutas oferecidas ou disponíveis nas árvores nativas e a brisa agradável foram substituídas por vento inclemente, sol abrasador, espinhos traiçoeiros, pedras roliças e ameaças de quedas acidentais.
Parei e, pela primeira vez, contemplei as lonjuras. Procurei em vão pela trilha que segui. Nada. Nem sinal. Consegui apenas imaginar por onde havia passado. Nenhum sendeiro de brilho deixado pela minha inglória passagem. Sem enxergar pessoas perto das casas; via apenas bovinos esparsos pela pastagem. Os humanos e os ruminantes deveriam ter buscado abrigo nas sombras. Sombras que eu tanto desejo agora que estou coberto de luz.
Ah! Por que não circulei pela planície com humildade e modéstia? Do alto do meu isolamento, procuro em vão pelas companhias da minha juventude. Os amigos de infância desapareceram quase todos e os que restam estão tão esquisitos, irreconhecíveis. Fomos colegas? Fomos amigos?
Sem colegas, sem amigos, sem vizinhos, sem esperanças, sem futuro... no alto de mim mesmo.
Mario Tessari no livro VAMOS PENSAR? – página 158
https://livrosdomariotessari.me/vamos-pensar/