IRMÃOS NÃO-IRMÃOS

Sile soltava gritos de alegria e agitava os braços em direção ao pequeno pássaro de papel colorido que balançava pendurado por um fio. Com a mão direita, segurava um coelhinho de vinil verde claro com tons de branco nas covas das orelhas. De quando em quando, aquietava e, segurando o brinquedo com as duas mãos, mordiscava as orelhas de plástico para coçar as gengivas em que os primeiros dentes forçavam saída.

O berço ainda era seu mundo. Passava as horas se entretendo com tudo que se movesse ao alcance de seu olhar. Depois, na escuridão do sono, revia as cores dos brinquedos, as paredes, as frestas de céu e as árvores próximas da janela.

Porém, mais que as imagens, os sons despertavam nela viva curiosidade: vozes conhecidas, como as da mãe e do pai, barulhos que se repetiam diariamente e o gorjeio dos pássaros no quintal. Sentia prazer ao ouvir as cantigas de ninar e até fechava os olhos para escutar melhor.

Pela manhã, quase todos os dias, algumas vozes diferentes entravam pela janela, vindos sempre da mesma direção; menos harmoniosas e muito mais vibrantes que os gorjeios dos pássaros, quase uma gritaria. Um cantar individual, que, às vezes, recebia a companhia de outros cantares, os quais poderiam chegar a uma cantoria com muitos timbres simultâneos e desorganizados. Ouvia essas cantorias pela manhã, algumas durante a tarde e nenhuma durante a noite. Tinha ouvido também vozes semelhantes, porém, muito mais agudas e aceleradas, como se fossem alertas ou pedidos de socorro.

Ao ouvir esses cantares, ficava em silêncio, só escutando, procurando entender.

Do berço, Sile contemplava as paredes, as janelas e as portas sem poder de ir até elas. No entanto, quando conseguiu se manter sentada sem apoiar as costas, foi posta sobre uma manta estendida no assoalho. Então, sem as grades do berço, Sile viu espaços abertos. Aos poucos, começou a explorar a área: se espichou para alcançar um brinquedo que caíra para além do alcance do braço, deitou de bruços, apoiou as mãos no chão, arrastou as pernas, … por enfim, engatinhou.

Sile ampliava o mundo dela. Porém, as paisagens continuavam menores que seus interesses e o canto dos pássaros continuavam vindo de um lugar que não via. Sile se sentia atraída pelas cantorias; principalmente, por aquelas mais fortes, vindas sempre da mesma direção.

No dia em que foi levada no colo a passear pelo quintal, ouviu de perto uma melodia e conseguiu ver quem cantava: era bem parecido com o passarinho dependurado sobre o berço, mas… movia as asas e o bico.

Foram adiante e ela conheceu as galinhas. Soube que eram galinhas porque disseram que eram galinhas. Eram passarinhos muito grandes, que pareciam assustados com a presença dela. Naquele momento, Sile se apaixonou pelas galinhas.

Passaram-se os meses e Sile começou a andar com as próprias pernas. Primeiro, só até a cerca colocada na porta para impedir que ela fugisse para o quintal; depois, quando já conseguia equilibrar o corpo e andar sobre as irregularidades do pátio, até correu na vã ilusão de que poderia pegar os passarinhos.

Sile cresceu e, com liberdade para explorar o quintal, ia até a tela que prendia as galinhas e ficava falando com elas. No início, elas ficavam assustadas e respondiam com gritos muito diferentes dos gritos das pessoas. (Sile nem percebia que ela também só falava repetições de dizeres incompletos…)  Esse passou a ser seu divertimento preferido: a casa das galinhas.

Num final de tarde, foi com a mãe recolher os ovos que estavam nos ninhos e lembrou que, na cozinha, havia muitos ovos semelhantes e quis saber se todos tinham sido levados dali. Daquele dia em diante, galinhas e ovos passaram a ter uma relação entre si.

Quando já corria com desenvoltura, pulava e até subia nas árvores, Sile cismou com uma galinha que passava o dia todo no ninho e, ao invés de cantar, parecia que chorava. Perguntou ao pai, que lhe disse que ela estava choca. O que seria estar choca? Por que ela chorava?

Parecia ser acontecimento muito importante, porque os pais prepararam com esmero um ninho dentro de uma gaiola, com palhas bem limpas e muitos ovos. Além de visitar várias vezes ao dia o cercado e a casa das galinhas, Sile passou a espiar por uma fresta a galinha choca, sempre muito silenciosa e compenetrada.

Passadas três semanas (Sile aprendera a contar os sábados que passavam…), ela encontrou a choca muito agitada, conversando uma conversa muito estranha e enfiando a cabeça pelo meio das penas, como quem mexe com algo dentro de uma gaveta.

Correu contar aos pais o que vira. Eles disseram que os pintinhos estavam nascendo. Pintinhos? Nunca tinha ouvido essa palavra… O que seriam pintinhos? Naquele dia, Sile soube e foi difícil exigir que se afastasse de perto deles; teve dificuldades para almoçar, para tomar banho e, principalmente, para dormir. Viveu dias de agitação.

Quando conseguiu aquietar, viu que os pintinhos eram muito diferentes uns dos outros; de cores diferentes, alguns eram menores, outros maiores, alguns mais quietos, outros muito agitados, um deles, muito curioso.

Foram dias acompanhando a nova família, os pequenos correndo pela gaiola, aprendendo a comer e, depois, correndo para debaixo da choca, chorando de frio. A choca falava com os filhos e eles pareciam entender. Sile se esforçava para compreender…

Os pintinhos cresceram bem rápido, as penugens foram cobertas por penas mais firmes e as cores foram diferenciando ainda mais um do outro. Sile olhava sem entender: só um se parecia com a mãe, que era preta. Tinha pinto branco, pinto carijó, pinto vermelho, pinto amarelo, pinto de duas cores, pinto de três cores, … Tinha até um sem penas no pescoço e um sem rabo, que o pai chamava de Suro, porque ele não tinha penas grandes no lugar do rabo. Ah! Um deles tinha penas até os pés. “Deveriam ser todos da cor da mãe”, pensava Sile. Perguntou ao pai e perguntou à mãe e eles disseram que era assim mesmo. Não podia ser; deveria haver uma explicação…

Passados seis meses, nenhum deles se parecia com o pintinho do primeiro dia; foram mudando de penas, de tamanho e até de comportamento. Uns ficaram grandões e briguentos; o pai disse que esses eram galos.

Bem mais devagar que os pintinhos, Sile também foi crescendo e, de certa forma, trocando de cor, pois sempre ganhava roupas novas de outras cores e de outros tipos. Começou a frequentar a escola e, depois de se acostumar no meio daquelas crianças, percebeu que elas eram muito diferentes uma da outra, mesmo que o uniforme fosse o mesmo.

Depois do jantar, revelou aos pais a descoberta. Disseram que cada um era parecido com o pai ou com a mãe dele; como não eram irmãos, normal que fossem diferentes. Tudo bem! Os pais deveriam saber mais que ela… Mas… os pintinhos eram irmãos e também eram diferentes um do outro… Os pais sorriram entre si e explicaram: nós escolhemos um ovo de cada galinha que vive no galinheiro e os pintinhos, que hoje já estão bem grandes, ficaram parecidos com a mãe deles. Ué! Então, a choca preta não era a mãe de todos eles?

Sile ficou indecisa e aquietou por uns dias. Observava os galináceos e observava os colegas de escola. Concluiu que não eram irmãos. Todavia, galináceos e crianças se comportavam como se fossem irmãos. Desistiu de interrogar os pais sobre essas grandes dúvidas.

Foi quando ela descobriu que um colega de sala era ‘filho de criação’. Então, pensou muito sobre filhos criados pelos pais e ‘filhos de criação’. Como seria isso? Ficou com vergonha de perguntar para os professores e nem pensava perguntar isso para os pais. Precisava resolver essa questão sem a ajuda de gente grande: uma família poderia ser formada de irmãos e de não-irmãos?

Quanto mais analisava, mais diferenças apareciam. Percebeu que mesmo irmãos poderiam ser bem diferentes entre si.

Você quer ajudar Sile a resolver esses enigmas?

Escrito das 18 às 20 horas do dia 17.04.2023 e reescrito em julho/23.

4 comentários sobre “IRMÃOS NÃO-IRMÃOS

  1. Coisa boa demais crescer cercado de bichos e criado por pessoas dispostas a explicar os mistérios da nossa vida e da vida deles. Ou seria apenas da nossa vida, uma única vida que se espalha por todos os lados para onde se olha nesse mundo generoso?

      • Eu desconfiava, mas não tinha buscado os possíveis anagramas, até depois de dares a pista. Agora eu percebi, acho. Lembrei do Oscar Wilde, que usava os filhos como protagonistas em diálogos imaginários sobre estética e filosofia.

      • Ao ler teu comentário, sentimentos contraditórios se atropelam na minha cabeça. Hoje, vi uma foto da Elis com o Jorge e relembrei as dificuldades que eles passaram nos últimos meses. Como deve ser difícil pras crianças conviver com pais temperamentais, orgulhosos e instáveis. Quando a Elis está aqui, ela procura conversar conosco e percebemos que ela sente falta de diálogos, no sentido literal da palavra.

        Sei que o Jorge está vivendo a polarização outra vez e dou espaço para que ele viva completamente o momento. Depois, será depois.

        Felizes os avós que conseguem conversar com os netos!

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