MINHA LISTA DE DESCONHECIDOS

Quando jovem, … (Quando mesmo que fui jovem? Quando deixei de ser jovem? Resta alguma jovialidade em mim?) Bem. Quando ainda imaginava ser jovem, eu enfrentava qualquer parada: serviço pesado, serviço difícil, festas, conflitos e campanhas eleitorais. Para muitos, fiz diferença, colaborei; para a maioria, fui paisagem, um rosto anônimo; para alguns, fui estorvo, um incomodador.

Como disse aquele monge ao completar 86 anos, comecei com a ilusão que poderia mudar o mundo e acabei mudando um pouco em mim mesmo.

Tive durante muito tempo a pretensão de elucidar dúvidas, desvendar mistérios, conquistar pessoas por convencimento e de manter relações amigáveis insistindo em explicações. Ah! Ajudar as pessoas no aprendizado do que eu considerava importante e que considerava seria muito importante para elas. Observava a forma como as pessoas dirigiam, criticava os desmatadores, orientava os esbanjadores, me preocupava com os telhados dos vizinhos, ria dos ridículos, … Enfim: cuidava da vida alheia.

Aí, durante um desgosto mais amargo, tive a ideia de iniciar minha lista de desconhecidos. Quando uma pessoa de minha rede de relações se mostrava resistente ou incomodada com minhas opiniões, quando os parceiros sabotavam meus esforços, quando uma pessoa me traia, quando alguém me ofendia, … A lista cresceu, mesmo usando doses de benevolência e permitindo, em alguns casos, uma segunda chance.

Nessa minha lista de desconhecidos, coloquei arrogantes, brigões, vingativos, espertos, estúpidos, caloteiros, hipócritas, dissimulados e/ou fingidos. Reduzi contatos, deletei mágoas, evitei aborrecimentos, parei de querer mudar quem não quer mudar, deixei caídos os que me empurraram e economizei desprezos. Deixei de gastar minhas energias e de empatar o meu tempo com ex-conhecidos.

Para os desconhecidos convencionais, ainda dedico parte da minha atenção. Porém, quando encontro um desses desconhecidos contabilizados, concentro esforços em neutralidade planejada. Como diz a gíria: “passo reto”.

“Menos amigos, mais amizade.” Um poema que escrevi e procuro sempre reler.

ANOTAÇÕES GRAMATICAIS

ANOTAÇÕES GRAMATICAIS PARA USO PESSOAL

 do Mario Tessari

Os especialistas em gramática assumem o papel de policiais e avocam para si o direito de disciplinarem as escritas dos usuários da Língua Portuguesa. Para sorte dos falantes, falta tempo para que eles policiem também a prosódia, a ortoépia e a ortofonia.

Os gramáticos, na sua maioria, categorizam todos os sinais impressos como ‘ortográficos’. Sabemos que a Ortografia disciplina a grafia correta das palavras, conforme um conjunto de regras estabelecidas pela gramática normativa; o hífen une elementos de palavras compostas e os sinais diacríticos (cedilha e acentos) e os pontos colocados sobre as letras ‘i’ e ‘j’ são sinais gráficos usados para indicar valores fonéticos específicos para determinadas letras.

No entanto, os sinais ‘de pontuação’ (vírgula, ponto, dois-pontos, ponto-e-vírgula, reticências, parênteses, travessão e aspas), criados para facilitar a leitura e o entendimento das ideias, são ferramentas da Análise Sintática, estudo das funções das palavras e das orações em uma frase.

A Ortografia estabelece regras ‘oficiais’ de como as palavras devem ser escritas, diferenciando ‘escritas populares’ de ‘escritas eruditas’. E não, regras de sintaxe ou o estilo literário correto.

Os professores de gramática são formados pelas academias científicas com a responsabilidade de professar a ‘pureza gramatical’ e as academias literárias escolhem seus membros dentre os que obedecem a padrões científicos, como a ortografia e o formato dos textos (prosa, poema, conto, novela, romance).

A ciência linguística analisa a funcionalidade da linguagem falada e/ou escrita, a evolução e a diversificação dos sistemas de representação do pensamento humano.

A PONTUAÇÃO NA PRÁTICA LITERÁRIA

Posso usar dois-pontos (:), ponto-e-vírgula (;) ou ponto e vírgula (. e ,). Mais provavelmente, usarei vírgula e ponto (, e .), nessa sequência. Nas frases, uso vírgula para separar ideias que complementam a oração principal, ponto-e-vírgula para incluir ideias divergentes ou paralelas, ponto para indicar que completei o enunciado e ponto-final para encerrar o assunto.

Ao afirmar que o ponto-e-vírgula (;) é “sinal de pontuação que indica pausa mais forte que a da vírgula e menos que a do ponto”, o dicionarista obrigaria o gago a colocar ponto-e-vírgula a cada ‘pausa gaguejada’, além de uma procissão de vírgulas, para as pausas ‘menos fortes’. O especialista deixa outra complicação: mensurar as pausas “mais forte que a da vírgula e menos que a do ponto”. Imagino que as pausas possam ser breves ou longas. Como seriam as pausas fracas ou fortes?

Mais preocupantes ainda são as afirmações que a vírgula é uma “ligeira pausa para respirar”. Provavelmente, esse autor seja um biólogo preocupado com nossa fisiologia respiratória.

RETICÊNCIAS

As reticências, além das funções técnico-linguísticas, podem ser usadas como recurso estilístico. Vai depender se as reticências são dúvidas da palavra… ou indecisões das ideias …

No caso, estou indicando indeterminação, hesitação, dissimulação, dúvida da palavra… ou a omissão de algo que deixo de escrever para que o leitor continue … a frase por conta dele. Também uso reticências para indicar uma ‘pausa emocional’ (aposiopese) ou uma insinuação.

Em Suçurê, aparecem reticências em:

“— Vejo que a aliança ainda está no dedo… Logo … para o povo daqui,  a situação continua na mesma: só mistério.”

“— Mesmo assim, o Icobé vai ficar sozinho e não sabe lidar com o gado; a gente vai deixar tudo organizado, pra ele apenas atender alguma eventualidade. Por falar nisso, seria bom se você, Icobé, pudesse dar seu passeio de reconhecimento agora pela manhã porque cismo de saber que você saia por aí sozinho… Pode lhe acontecer algo e … – opinou Genuíno.

— Boa ideia! Vou encilhar o Zaino e dar uma volta pela invernada. Mas não demoro… – concordou Icobé.”

“— Tem que ver… – ponderou o capataz. Eu devo me afastar por uns dias… O João não pode ficar solito por muito tempo…

— Si desse … fais tempo qui num falo c´a mana Maria Rosa… – choramingou o Silvino.”

“— Não sou eu que procuro antes de ser chamado. São eles que me perturbam com vozes estranhas…

— Estranhas, porém bem audíveis, claras, pois indicam quem é e o local exato em que estão …”

O USO DA VÍRGULA ANTES DO PRONOME RELATIVO ‘QUE’

  1. Os senadores que foram eleitos no último dia 15 tomarão posse no dia …
  2. É difícil encontrar os gatos que fogem de casa durante a noite.
  3. O povo cobra dos senadores, que foram eleitos democraticamente, a responsabilidade…
  4. Os gatos, que são venerados desde o tempo dos faraós, preferem viver livres, sem coleiras.

Nas duas primeiras frases, o pronome ‘que’ indica a delimitação dos sujeitos, através de oração subordinada restritiva, com função de adjunto adnominal da palavra antecedente, indispensável para expressar o sentido pretendido. Sem vírgula.

1a. Apenas os senadores que foram eleitos no último dia 15 tomarão posse no dia …

2a. É difícil encontrar apenas os gatos que fogem de casa durante a noite.

Nas duas últimas, o pronome relativo ‘que’ é usado para iniciar uma explicação (oração subordinada adjetiva explicativa); oração opcional que acrescenta uma informação complementar, que pode ser retirada sem prejuízo de entendimento; escrita ‘entre vírgulas’.

3a O povo cobra dos senadores[, os quais foram eleitos democraticamente,] a responsabilidade…

3b O povo cobra dos senadores a responsabilidade…

4a Os gatos[, os quais são venerados desde o tempo dos faraós,] preferem viver livres, sem coleiras.

4b – Os gatos preferem viver livres, sem coleiras.

USO DE LETRAS MAIÚSCULAS

Escrevo siglas em letras maiúsculas. Uso letra maiúsculas para iniciar nomes próprios, tecnicamente, substantivos próprios. Uma palavra composta é uma palavra composta e não duas palavras ‘amarradas’. Se uma palavra composta exercer a função de substantivo próprio, deverá ser grafada com letra inicial maiúscula: Serra-abaixo, Serra-acima, Baia-norte, Baia-sul, …

EXEMPLOS DE USO DE HÍFEN

Abelha-sem-ferrão é palavra composta (substantivo) que nomeia abelhas com uma característica específica: uma espécie de abelha. E abelha sem ferrão é locução substantiva usada no caso do animal ter perdido a ‘arma’.

Se for nome da espécie, deve ser escrito ‘uruçu-amarela’. Se determinada espécie de uruçu tiver indivíduos uns pretos e outros amarelos, haverá abelhas uruçu pretas e abelhas uruçu amarelas. Mirim-guaçu preta e mirim-guaçu amarela; manduri preta e manduri amarela; porque as espécies são denominadas mirim-guaçu e manduri, respectivamente.

É questionável que os meliponíneos não possuam ferrões; mas, com certeza, não ferroam. Logo, a locução deveria ser: abelha que não ferroa. Abelha-sem-ferrão ou abelha-da-terra = espécie de abelhas dos gêneros melípona, trigona, … Uma abelha do gênero Apis que deixou o ferrão em alguém será uma abelha sem ferrão. Se os chifres de um boi forem decepados, teremos um boi sem chifres. Os que já nascem mochos serão bois-sem-chifres.

Batata-doce é uma espécie vegetal; batata doce pode ser uma batata adoçada. Boca-de-leão: uma flor; boca de leão: a abertura inicial do tubo digestivo do ‘rei dos animais’. Copo-de-leite nomeia uma flor e ‘copo de leite’ é uma porção de leite que pode estar num copo ou em outra vasilha; a expressão se refere à quantidade do alimento. Ponto-e-vírgula nomeia um sinal de pontuação; ponto e vírgula são dois sinais de pontuação.

Mesmo depois da última Reforma Ortográfica, as palavras compostas que designam espécies animais ou vegetais continuarão sendo grafadas com hífen: bem-te-vi, copo-de-leite, boca-de-renda, porco-bravo, porco-do-mato, aroeira-folha-de-salso, uruçu-boi, formiga-açucareira, formiga-cabeça-de-vidro, …

SEO OU SEU

A palavra ‘seu’ é pronome possessivo.

Eu uso ‘seo’ para traduzir a pronúncia caipira de ‘senhor’. A fala coloquial abrevia as palavras, ‘comendo letras’, economizando tempo e voz, através de síncopes, pronunciando apenas as ‘essências’ da palavra. Maior / mor, senhor / seo, está / tá, estive / tive, … Logo, ‘seo’ é pronome de tratamento. Da mesma forma, uso Sinhá ou Siá, para designar senhora.

ETCÉTERA

Et cetera, do Latim = e outras coisas, e assim por diante, …

A abreviatura (etc.) já vem precedida do conetivo ‘e’ (et). Logo, não uso vírgula antes de ‘etc.’ Aliás, uso reticências ao invés de usar etcétera. Deixo o ‘et cetera’ para os romanos. Sou de época mais recente.

QUASE DO ALTO DA MONTANHA

Minha meta era chegar ao topo da montanha. Estava confiante. Sai bem cedo. Muitas pessoas queriam me ajudar nessa empreitada e sobravam ofertas. Bem agasalhado, com os pés protegidos e com o olhar curioso, dei os primeiros passos com vontade de ir longe e por minha conta.

A caminhada inicial foi faceira. Eu andava solto, sem memórias a carregar. Os moradores das duas beiras de estrada me ofereciam frutas e orientações. Por pressa ou por ilusão de desnecessidade, pouca coisa aceitei e segui com determinação.

Nas planícies pontilhadas de casas que abrigavam muitas pessoas sorridentes, os campos cultivados emendavam uns nos outros, preenchendo as distâncias que meus olhos conseguiam abarcar. Ali, não via espaço pra mim; teria de seguir procurando meu lugar.

Como trazia o estômago cheio e encontrava ar fértil para efetivar as trocas gasosas, caminhava resoluto, devorando distâncias, sem analisar meus passos e as infinitas possibilidades de caminhos a tomar. Apenas, pisava firme, seguindo adiante, levantando os olhos, vez em quando, para mirar as escarpas que pretendia alcançar. Ainda, com bem pouco planejamento.

Empurrado pelo entusiasmo, galguei as primeiras elevações, donde poderia avistar os campos adjacentes, mas… nem lembrei de olhar para trás. Urgia andar depressa, pois o relógio de sol deslizava continuamente, sem paradas para beber água.

Subi nos primeiros contrafortes que sustentavam a base da cordilheira e me senti o máximo: um vencedor, para o qual, os obstáculos seriam apenas desafios. Naquele momento, desafio de continuar a escalada rumo ao ápice.

Enquanto a inclinação do terreno exigia pouca obliquidade das solas dos sapatos, mantive a inconsciência da existência de meus pés. Da mesma forma que desconsiderava o derredor e a possibilidade de outros estarem percorrendo trilhas paralelas aos meus rastros ou convergentes ao meu alvo.

A elevação permitia, cada vez mais, vislumbrar paisagens e eu poderia apreciar as belezas primaveris. Mas… era tempo de caminhar… no qual, não cabiam devaneios poéticos: deveria baixar a cabeça e andar e andar e andar…

Andava já com algum peso nas pernas. O ar se fazia menos denso e o calor fustigava minhas costas. A mente perdia as convicções, as ideias começavam a esmaecer e o crescente silêncio afastava comentários e palpites. Pude, assim, continuar minha escalada sem contestações.

As argilas macias pisadas no início da jornada deram lugar a cascalhos, seixos e areião. Acima, avisto saibro, pedras soltas, algumas lajes que se mostram em parte. Terei de ter mais cuidado ao firmar os pés no solo instável; um escorregão pode provocar alguma queda e arranhões doloridos.

Ultrapassadas as primeiras montanhas, encontro pedras firmes, em aclive crescente, que força meus tornozelos e estica as panturrilhas. As dificuldades passam a calibrar o ímpeto de avançar. Começo a analisar atalhos, por critérios de segurança e para economizar energias.

Na planície e nas rampas suaves, eu deixava os braços balançarem as mãos ociosas, mantendo sem esforço o prumo do corpo. Ao transpor as colinas, precisei usar braços e mãos para fazer contrapeso ao desequilíbrio alternado pelos passos sobre o terreno irregular, como um equilibrista sobre o trilho estreito. A velocidade da marcha se reduzia com o aumento gradual de dificuldades. Ao mesmo tempo em que minha soberba definhava.

Restava pouca água no cantil e eu olhava menos para cima. Vez ou outra, parava para contemplar as encostas pedregosas, encobertas mais abaixo por vegetação luxuriante. Todavia, meu objetivo cobrava coragem para prosseguir. Mesmo sentindo cansaço, substituía os ímpetos iniciais por esforços para salvar o orgulho.

Quanto mais alto, mais só e mais fraco. As companhias das planuras, as frutas oferecidas ou disponíveis nas árvores nativas e a brisa agradável foram substituídas por vento inclemente, sol abrasador, espinhos traiçoeiros, pedras roliças e ameaças de quedas acidentais.

Parei e, pela primeira vez, contemplei as lonjuras. Procurei em vão pela trilha que segui. Nada. Nem sinal. Consegui apenas imaginar por onde havia passado. Nenhum sendeiro de brilho deixado pela minha inglória passagem. Sem enxergar pessoas perto das casas; via apenas bovinos esparsos pela pastagem. Os humanos e os ruminantes deveriam ter buscado abrigo nas sombras.

Sombras que eu tanto desejo agora que estou coberto de luz.

Ah! Por que não circulei pela planície com humildade e modéstia? Do alto do meu isolamento, procuro em vão pelas companhias da minha juventude. Os amigos de infância desapareceram quase todos e os que restam estão tão esquisitos, irreconhecíveis. Fomos colegas? Fomos amigos?

Sem colegas, sem amigos, sem vizinhos, sem esperanças, sem futuro… no alto de mim mesmo.

TEXTOS DE VIDAS

Histórias gravadas em neurônios.

 

A equipe de neurônios – o cérebro –

armazena e administra informações.

 

Se estiver bem configurada,

a mente seleciona conhecimentos,

arquiva o que possa ser útil e

descarta dados provisórios, fracos,

efêmeros, inócuos ou imprestáveis.

 

O conjunto de repertórios individuais

– compostos de dados escolhidos

por cada um dos pensantes –

forma a consciência coletiva,

a história da comunidade.

 

Os livros particulares e os públicos

podem ser lidos por quem se interessar;

mexeriqueiros, indiferentes e alienados

utilizam a biblioteca universal

segundo critérios convenientes.

 

Os dias – páginas das vidas – revelam

monotonias, inconstâncias e surpresas;

nem sempre as frases e os parágrafos

obedecem às especificações

dos títulos e dos sumários dos livros.

 

Cada notícia, mudança ou invenção

registrados nos livros vitais,

– parágrafos históricos pessoais,

páginas ou capítulos nacionais –

podem ser lidos como verdades,

engodos encobertos, mentiras;

ou podem ser só trechos a deletar.

 

A cada linha, a cada parágrafo,

as surpresas podem inverter

visões de mundo, expectativas,

crenças e filosofias de vida.

 

As leituras podem encontrar

continuidade coerente

com o que foi anunciado

ou rupturas, descontinuidades

e, até mesmo, contradições.

 

Ler os livros vitais pode ser exercício

enfadonho, revelador ou assustador;

o conteúdo das páginas seguintes

sempre será uma incógnita.

CICLO VITAL

A vida humana inicia em um minúsculo zigoto,

microscópico grão de vida que lutará pela sobrevivência.

 

O embrião desenvolve, cresce e

chega à idade adulta para competir.

Aos poucos, perde a vitalidade

e, finalmente, a vida.

 

Da proteção no útero,

o bebê sai para a luz e para o vento,

abrigado ainda pela família, talvez.

Na infância, expande a rede de relações;

na adolescência, participa dos jogos sociais

e se prepara para exercer uma profissão,

pela qual busca conquistar espaços na fase adulta;

se expõe a experiências, constrói autossuficiência

e pode alcançar a autonomia.

 

Ao considerar suficientes os espaços conquistados,

procura manter o domínio e seleciona ideias e amigos,

delimitando espaços ao alcance da mão.

Abre a mente para colher informações,

testa os limites e, na plenitude das conquistas,

começa a podar as ilusões que pesarem desconfortos.

Inicia o processo de enxugamento,

eliminando gradativamente os supérfluos.

 

A simplicidade, a humildade e o equilíbrio

podem contribuir para a saúde física e mental.

Alimentação inadequada, trabalho extenuante,

batalhas inglórias, exageros e intempéries

podem acelerar o desgaste natural.

 

Na velhice, evita aventuras, ressignifica experiências,

reduz o círculo de amizades e valoriza a privacidade.

Para morrer, necessitará apenas de si mesmo.

 

Cada um tem seu tempo de vida útil.

Alguns esperam enfermos pelo descanso eterno.

Construído em parceria com Gilvan Tessari.

aprender praticar saber

Você sabe ler?

 

Sei, sim senhor.

Sei.

Mais ou menos.

Não sei, não.

 

Pergunta banalizada na boca

de quem julga saber;

de quem julga o saber.

 

Pergunta impensada;

resposta protocolar

cumprindo formalidade.

 

A maioria que aprendeu a ler

pratica apenas leituras rasas

de placas, de preços e de moedas.

A maioria lê o de sobrevivência

e o de interesse, o de lucro.

 

Mas, poucos praticam

analisar ideias escritas.

 

Leituras ativam memórias,

geram sentimentos,

traduzem o que foi escrito,

aceitam, acrescentam ou restringem,

mudam a cor dos significados.

 

Inventar ideias a partir de

ideias gravadas no papel…

Quem é que pratica?

 

Desafios físicos e aventuras

são jogos nas idades de vigor.

Quais as dinâmicas na velhice?

Quando o corpo pouco age e reage?

 

Feliz quem sabe aprender na velhice

a praticar jogos mentais e se encanta

com segredos que as letras revelam.

 

Mais feliz ainda quem exerce o desafio

de esconder ideias nas dobras das palavras.

 

Quem sabe proclamar, na velhice,

a sabedoria construída aos poucos?

 

Quem consegue manter a mente jovem?

HARMONIA INTERNA

O bem maior, o que desejo e comemoro, é a paz.

Essencialmente, a paz de espírito, a paz comigo mesmo.

Se estiver em paz com as pessoas, se estiver em paz com o mundo,

mais em paz estarei comigo mesmo.

 

Além da paz, amo a liberdade.

A liberdade, mesmo que relativa, é sempre uma condição desejada.

Quando ando pela floresta, às margens do rio,

me sinto livre como as árvores, os peixes e os pássaros;

apesar das fronteiras e das limitações existenciais de cada espécie.

Dos murmúrios e do perfume da natureza,

emana a paz absoluta e meu corpo caminha leve e solto.

Silêncio e isolamento nem sempre é solidão;

mesmo só, posso estar em equilíbrio vital.

 

As pessoas podem limitar minha liberdade.

Ou compartilharem comigo dos espaços,

convivendo livremente dentro dos limites da nossa amizade.

As liberdades e os silêncios podem ser convivenciados solidariamente,

em perfeita simbiose social; podemos viver em paz com os outros também.

 

Pessoas livres e pacíficas tendem a sonhar bons projetos de vida:

comuns, coerentes e possíveis.

ARTES E ARTIMANHAS

A semântica e a sintaxe permitiram e foram fundamentais para a evolução da linguagem e do pensamento que nos diferenciaram dos outros animais. Inclusive, continuam a nos diferenciar dos demais seres humanos. Escrevendo, falando e pensando ampliamos os espaços infinitos da mente. A elaboração de ideias e a aprendizagem através do diálogo criam dimensões sobrenaturais de existência. Além de vivermos a dimensão física, podemos construir amizades, comunidades e sociedades.

A maioria das pessoas usa essas artes e engenhosidade para organizar o entorno, produzir beleza, auxiliar a natureza, cooperar e criar confortos. Alguns, entretanto, se utilizam desses instrumentos para iludir, ludibriar, lograr, agredir, conquistar, enriquecer e dominar.

Fazendo o bem, a maioria das pessoas amplia o mundo individual; em geral, as pessoas fazem pouco barulho e procuram conviver em harmonia.

Os beligerantes competitivos, que são minoria (nos dois sentidos, de minoridade e de limitada parcela populacional), fazem sucesso nos palcos da vaidade, da cobiça e da intolerância.

Continuamos vivendo como os escravos do Reino do Brasil no Século XIX: somos maioria esmagadora, mas aceitamos o jugo do barbante que manipula a multidão que coopera e trabalha para que todos tenhamos uma vida prazerosa. Sem rebeldia, nos submetemos à maldade de discursos e de ciladas.

COM VOCÊ, SOMOS TODOS SENHORES.

O vocábulo ‘você’ nasceu em berço nobre como vocativo cerimonioso nos rituais diante de entes superiores. Entes, mesmo. Entidades, seres superiores criados e sustentados pela assimetria nas relações de poder; entidades que existem… enquanto acreditarmos.

Os senhores feudais, as autoridades eclesiásticas, os reis e os imperadores viviam em palácios, protegidos por guardas e cercados de cortesões embusteiros, irônicos e pretenciosos. O povo, vivendo na maior penúria e sob ameaças constantes, trabalhava para sustentar as cortes esbanjadoras.

Escravos, agregados, esposas e filhos não deveriam se dirigir diretamente aos seus ‘superiores’. Diante das ‘autoridades autoritárias’, os párias cumpriam rituais transcendentais: falavam com as divinas personalidades encarnadas por maridos, pais, sacerdotes e latifundiários. Os não-nobres simulavam respeitos por esses semideuses prepotentes. Por graça desses ‘senhores’, por suas mercês, poderiam, eventualmente, receber ‘os favores’ que teriam direitos em uma sociedade igualitária.

Porém, ao longo do milênio, os desníveis sociais entre senhorios e subalternos se desgastaram, reduzindo a oração ‘vossa senhoria me permite a graça de lhe falar?’ a uma palavra ou, até, a uma única sílaba. A súplica servil pronunciada de cabeça baixa no linguajar popular contraiu-se, gradativamente, para ‘vossa graça’, ‘vossa mercê’, vosmecê, você e, ultimamente, na intimidade com o interlocutor, reduziu-se a ‘cê’. “Cê vai comigo?”

A sintetização da oração ‘vossa senhoria me permite a graça de lhe falar?’ revela a conversão do sistema de castas do Tempo do Império em novas dissimulações brasileiras: “aqui, não há preconceitos”, “somos todos iguais” e “fomos [no passado] colônia política, econômica e linguística”.

O ‘você’ passou a conviver com o ‘tu’ com tanta liberdade que chegou a suplantar o uso da segunda pessoa; atualmente, estamos todos com muita ‘graça’, todos somos ‘você’; senhorias que concedem graças (liberalidades) a quem tem ideias a comunicar, mesmo que sejam inferiores. Nos discursos, ‘você’, pronome de tratamento denotativo de submissão, substituiu o ‘tu’, pronome pessoal reto dito diretamente a quem falo. Todavia, as falsas justiças persistem nos fingimentos de que tudo mudou nesses ‘tempos modernos’.

Se o ‘tu’ tivesse abarcado o uso do ‘você’, poderíamos dizer que teria havido um gesto de humildade da nobreza descendo ao porão social e seríamos todos um ‘tu’ coletivo. Com a generalização do uso do pronome de tratamento ‘você’ para nos dirigirmos aos presentes, pode parecer que houve elevação dos ‘plebeus’ a iguais condições dos senhorios. Porém, o povo continua tão submisso que nem merece a ‘nobreza de ser humano’.

A Língua revela a acomodação das estruturas da sociedade em moldes democráticos. Poderia ser indício de evolução da matriz social… a ascensão do povo a um espaço igualitário.

Entretanto, o que o povo está fazendo com a Democracia… Essa é outra história.

TUMOR DE COLÍRIO

Matusalém Vitalino prolongava a vida com os medicamentos guardados nas duas caixas em vieram acondicionados o último par de sapatos e as botinas para os invernos. Complementava o tratamento com a ingestão de uma jarra de água-benta, acompanhada de rezas rotineiras.

Dentre os medicamentos receitados ‘para o resto da vida’, estava um colírio que manteria a saúde dos olhos, ‘desde que não interrompesse o tratamento’. Inicialmente, o diagnóstico foi ‘glaucoma progressivo’. Com o passar dos anos, o oftalmologista acrescentou uma catarata reversível, pois o implante de lentes artificiais renderia bem mais que os dividendos distribuídos pela indústria farmacêutica.

Porém, a chance de o cirurgião ganhar a bolada de dinheiro dilui-se na visão nítida dos ponteiros do relógio marcando os segundos e das baratas e das formigas que o ‘quase cego’ via andarem pelo assoalho da mesma cor que os semoventes. O que gerou ‘a cura natural’ da catarata. Restava a fonte de renda auferida com a indicação de uso do colírio e a possibilidade de tratar os efeitos colaterais da medicação.

Demorou um pouco, mas o colírio, apodrecido durante anos nas covas oculares, começou a aparecer por debaixo da pele das pálpebras. Inicialmente, formou pequenas bolotas, identificadas pelo médico como ‘verrugas’ a serem cauterizadas.

As cauterizações rendiam mais que os percentuais recebidos na participação das vendas de medicamentos e contribuíam substancialmente para a manutenção da clínica e dos clínicos. Bastava administrar as doses e as substituições dos quimioterápicos por similares de outras marcas ainda não beneficiadas com a doença cultivada.

Tudo ia muito bem, não fosse aparecer alguém com disposição para ler as bulas e identificar os efeitos colaterais e as reações adversas que se manifestavam progressivamente ao redor dos olhos do candidato à eternidade.

Esse alguém agiu em silêncio, trocando o conteúdo do frasco do colírio por soro fisiológico, que continuou a ser administrado com a regularidade costumeira. Os resultados logo apareceram. Os edemas diminuíram em número e em tamanho. Em um mês, o ‘câncer’ sumiu, secando as fontes de renda médica.

Então, os louros (e os lucros) migraram para a Igreja, pois “o paciente curou as feridas com muita água-benta e orações” diante da televisão com som em alto volume. Bem-vindos os dízimos de quem sofre!


Muitos médicos e todos os sacerdotes cultivam a fé de seus pacientes fieis com ferramentas de mídia e com adubos espirituais. Formam suas lavouras e searas nas mentes ingênuas dos que alimentam esperanças de vida eterna. Para ‘fazer o bem’, cobram dízimos e honorários (sem honra alguma…) bem mais onerosos que a décima parte dos proventos de aposentadoria. A família complementa a dieta medicamentosa com contribuições financeiras e assistência enfermática.

Nota: Os acontecimentos são reais; troquei o nome do protagonista.