Anna Maria vai desbravando calendários.
Até parece que o Antônio Houaiss antevia as bravuras da heroína quando listou os significados do verbete desbravar: “fazer perder a braveza; amansar; tornar culto, civilizado; polir; livrar (lugar de passagem) de obstruções; abrir, desimpedir, limpar; explorar (lugares desconhecidos); vencer (desafios, obstáculos etc.); pôr (terreno) em condições de ser cultivado; arrotear, lavrar”.
Seguindo o filão indicado pelo dicionarista, encontramos acepções para arrotear: “desmoitar, desbravar (terreno) para plantação; cultivar pela primeira vez; lavrar para o primeiro cultivo; dar educação a; instruir, civilizar”.
Características de Anna Maria, em menor ou maior grau.
Foi gerada e gestada na primavera de 1925, sem protagonismo inicial. Porém, nos primeiros meses de 1926, assumiu o comando do apartamento uterino.
Fugiu do ventre no dia 11 agosto de 1926. Corpo e mente cresceram nas selvas oestinas do Sul do Brasil. Queria ser professora, porém, o pai a protegeu do ‘perigo de cair na vida’. Pela tradição, deveria casar, cuidar da casa e da família, como uma ‘rainha do lar’. Para ‘cumprir a sina’, foi oferecida em casamento contra o filho de outro madeireiro, mas rejeitou a chance de enriquecer.
Aos 23 anos, às vésperas de ser nomeada ‘solteirona’, casou com um vizinho analfabeto e pobre, sem olhos azuis e, muito menos, fortuna. No entanto, tinha vontade de trabalhar, derrubou uns pinheiros, falquejou tábuas, casa, mesa, bancos, armários e cama. Anna Maria emendou panos, preparou alimentos e gerou filhos a cada 2 anos.
Até o dia 8 de março de 1962, quando foi enviuvada aos 35 anos de idade. Estava ‘grávida de 15 dias’, pois a caçula foi parida em 19 de novembro de 1962.
Recebeu oferta de casamento, podendo acrescentar mais 8 enteados aos 6 filhos dela, com a certeza de mais algumas crias naquele segundo casamento. Porém, analisando, com as crianças, as perspectivas de ‘muito barulho’ nos ‘4 dias que restavam de vida’, deixou o viúvo casar com ‘a outra’. Se bem que, depois de repetir, por 2 décadas, essa cantilena (Só tenho 4 dias de vida e ainda tenho de passar por tudo isso!), está completando 90 anos de batismo e de registro civil.
Para diferenciar da mãe Anna, foi Maria; quando os filhos superaram a altura dela, passou a Marieta; mudando de região, conseguiu ser Anna Maria; ao gastar ainda mais o tamanho, se contentou com Anninha; ao nascerem os netos, se autodenominou Vó.
Anna Maria tem orgulho de ter dado estudo para os 6 filhos; todos ‘formados’ e ‘bem de vida’. Viveu muito… mas … considera pouco. Assim, insatisfeita, destemida e obstinada, caminha para a fronteira do centenário, em 2026.
Bela síntese de uma história difícil de ser contida em palavras e que extrapola em muito o que boa parte das pessoas chama de viver.