INGENUIDADES CONSAGRADAS

Em todas as épocas, cada povo teve sua concepção de mundo, seu senso comum, seu pensamento comunitário dominante. Na pré-história, esses conjuntos de ideias, de normas e de valores morais serviram de base para organizar os agrupamentos humanos que passavam a viver em estado gregário e de forma cooperativa.

As comunidades desenvolveram e, ao mesmo tempo, se submeteram a sistemas de princípios necessários e suficientes para manter a dinâmica social, nas dimensões religiosa, econômica e política. Interagiram e controlaram uns aos outros por tanto tempo que passaram a perceber como naturais todas as regras e instituições que eles mesmos criaram. A partir daí, as tradições culturais assumiram um caráter metafísico inquestionável, um espírito coletivo acima da razão, que guiou o destino de todos. As instituições receberam status de ‘entidades’; entes, seres existentes a priori; criações divinas. E o povo podia viver em paz na alienação.

As ideias, as normas e os valores morais vão sendo agregados à medida que o grupo social vai se formando. Surgem com a união estável de um casal, pois os cônjuges precisam estabelecer acordos de convivência que limitem as idiossincrasias, as manias e as excentricidades individuais; são ampliados com o surgimento de filhos, negociados quando os filhos passam a exercer poder para influenciar a pequena família, renegociados a partir do casamento desses filhos com parceiros defensores de outros conjuntos de regras de convivência na, dali por diante, grande família. Cada clã é governado por uma filosofia de vida reconhecida e aceita por todos os seus membros, mesmo que possa parecer estranha para pessoas de outros clãs. São os costumes de cada família: respeitados, evocados, sacramentados e transmitidos para as futuras gerações como dogmas sagrados.

E, para poder conviver com vizinhos fronteiriços, cada uma dessas grandes famílias se vê obrigada a adequar suas regras sociais ao crescente aumento populacional e de relações sociais, econômicas e/ou políticas. Cada aldeia tentando controlar a outra no jogo social e político; tentando impor seus modos de pensar à comunidade vizinha.

À medida que a população circunscrita por cada senso comum se expande, as regras de convivência e as relações de poder serão mais detalhadas e mais complexas. As instituições criadas passam a abrigar a ideologia dominante, numa espécie de transferência inconsciente das responsabilidades individuais para estâncias metafísicas, tidas como entes sobrenaturais, para os quais se atribui vida própria, como se fossem enviados pelos deuses para reger e salvar a humanidade. Essa complexidade organizada é que mantém a coesão e que permite o progresso socioeconômico de cada agrupamento humano, desobrigando os indivíduos da responsabilidade de pensar, de julgar e de tomar decisões: o povo se submete aos determinismos sagrados, sem contestações ou críticas; se submete passivamente.

No entanto, a chegada de forasteiros ou de textos estrangeiros pode despertar alguns membros da comunidade, livrando-os do torpor ideológico em que estão imersos de forma mais ou menos inconsciente. Em especial, as novas gerações são suscetíveis às novas ideias e podem provocar cismas por dissidência de opinião, gerando turbulências que podem gerar desequilíbrios temporários ou, em casos extremos, cisões definitivas. Por isso, um dos principais esforços dos adultos é conter as revoltas juvenis.

Essas sublimações sociais geram crenças que derivam para atitudes e comportamentos que tendem ao ridículo, mesmo que permaneçam encobertos pelo senso comum. Dentre eles, muitos lugares comuns na mídia e, em especial, nas peças publicitárias.

Lemos e/ou ouvimos diariamente muitas afirmações absurdas sem refletir ou questionar. As estradas matam os motoristas, os carros ficaram totalmente destruídos, os engarrafamentos prejudicam o trânsito, as pessoas são eliminadas por balas perdidas, os agradecidos se dizem obrigados, as emissoras são ouvidas em todos os lugares do mundo, os velhos devem ser respeitados incondicionalmente, …

Bastariam um pouco de raciocínio lógico para perceber que os motoristas é que matam a si mesmos e aos outros, a maioria dos carros acidentados e das casas incendiadas foram parcialmente destruídos, o excesso de veículos causa engarrafamentos, os maus motoristas prejudicam o trânsito, os tiros atingiram os alvos, os locutores são obrigados a agradecer porque são pagos para isso, as emissoras podem ser sintonizadas em qualquer parte da Terra, tem muito bandido velho e muito velho safado, …

As primeiras afirmações, aparentemente absurdas, oferecem esconderijo para o povo em geral que prefere estar sob a proteção de alguém ou de alguma instituição poderosa sem precisar se expor, sem precisar pensar muito, sem precisar tomar decisões. O povo prefere viver alienado, mesmo com prejuízos, do que lutar abertamente por suas ideias e ser responsável pelos próprios atos.

A expressão ‘bom atendimento’ é usada para cativar os fregueses dos estabelecimentos comerciais que afirmam o que deveriam estar fazendo; se atendessem bem não precisariam propagandear, pois os consumidores saberiam disso na prática. Além do que seria necessário especificar o que é bom atendimento, do ponto de vista do freguês. Possivelmente, as pessoas entram nas lojas com o intuito de suprir as próprias necessidades. As lojas deveriam atender as necessidades dos clientes e não distribuir sorrisos artificiais e servir cafezinhos. Por outro lado, muito raramente, um comerciante pergunta ou pesquisa se o cliente teve suas necessidades atendidas. Muito pelo contrário, frequentemente, o incauto acaba levando inutilidades, sem ter comprado o que precisava comprar. Além de, muitas vezes, concorrer compulsoriamente por prêmios que paga sem saber; compra alimentos e concorre ao sorteio de um automóvel que ajuda a pagar.

Também as indústrias proclamam a qualidade de seus produtos. O que não deixa de ser verdade. Meia-verdade, pois todos os produtos têm qualidade: a qualidade que eles têm. Pode ser ótima qualidade, qualidade mediana ou péssima qualidade. Portanto, afirmar que os produtos têm qualidade é uma meia-verdade, uma verdade relativa. No entanto, a intenção e, para os ingênuos, os entendimentos são os de que aqueles produtos são de qualidade superior. Mais um caso em que a esperteza dos exploradores utiliza meias-verdades para incluir opiniões perniciosas no senso comum do povo simplório.

Outra meia-verdade enganosa é ‘cliente tradicional’. As empresas e os cidadãos usam alguns critérios para selecionar os clientes mais confiáveis; aqueles que possivelmente pagarão as dívidas nos prazos estipulados e sem pechinchar. Porém, a informação que consta nas fichas cadastrais e/ou nas memórias pessoais é apenas ‘cliente tradicional’, sem questionar a que tradição se refere.

Há pessoas que sempre pagam o que devem, cuidam mais de uma ferramenta que tomaram emprestada do que cuidam normalmente das suas ferramentas e jamais roubam, mesmo quando as oportunidades favoreçam e as necessidades obriguem. São pessoas tradicionalmente confiáveis. Porém, no outro extremo, encontramos muitos ladrões tradicionais. Sobra ainda muita gente que se comporta conforme a situação ou conforme as conveniências, sendo pessoas apenas relativamente honestas. Logo, poderemos encontrar clientes tradicionalmente bons pagadores e clientes tradicionalmente trapaceiros, velhacos e caloteiros de comportamentos imutáveis. Entre esses dois extremos, está a maioria da população, cuja honestidade depende de uma vigilância atenta e de repetidas cobranças.

Logo, os clientes dos três tipos são tradicionais: tradicionalmente bons, tradicionalmente relapsos ou tradicionalmente velhacos. São, então, tradições bem diferentes entre si. Porém, todas merecem o rótulo ‘tradição’.

Paradoxalmente, a tradição deveria ser o rótulo apenas dos maus clientes, pois as palavras tradição e traição são irmãs gêmeas, filhas do vocábulo latino traditìo,ónis.

As tradições são heranças culturais transmitidas de geração a geração; muitas delas equivocadas e, até mesmo, criminosas, como touradas, torturas, circuncisão dos meninos, ablação do clitóris e dos pequenos lábios da vulva das meninas, machismo, … Em particular, as tradições religiosas podem ser justificadas pelas causas originais e/ou pelas interpretações errôneas, principalmente das leituras e/ou traduções de documentos escritos em linguagem iconográfica, pictogramas ou ideogramas. A fé, as proibições, os tabus, os bálsamos milagrosos, as poções mágicas, as magias, os bruxismos e os encantamentos tiveram razão de ser e efeitos práticos no controle dos comportamentos humanos e na cura de moléstias, em épocas ancestrais. Porém, podemos rever essas atitudes que foram lógicas no passado, mas que chegam a ser hilárias à luz da Ciência atual.

No entanto, muitos mitos, lendas, liturgias, ritos, usos e costumes ainda são seguidos com convicção inabalável, mesmo que uma análise simples possa desvendar o fanatismo de crenças e de comportamentos sem razão lógica. Há quem acredite que sempre chove na ‘virada de lua’, que as crianças tendem a nascer em noites de lua-cheia e que a tromboflebite seja ocasionada pelo ‘leite de sapo’. Para evitar a doença venosa, exterminam os sapos.

O respeito pelos mais velhos é uma tradição milenar em diversas culturas.

Possivelmente, os povos da antiguidade acreditassem que a sabedoria fosse o acumulo de experiências. E, de um modo geral, uma pessoa precisa viver muitos anos para experimentar muitas coisas, para viajar e viver em muitos lugares, dialogar com muitas pessoas e meditar longamente sobre tudo o que viveu.

Porém, a maioria das pessoas vive as mesmas experiências diárias e em torno da Terra Natal, mesmo que seja por décadas inteiras. Por outro lado, muitos jovens aprendem várias profissões, viajam intensamente, buscam com disciplina e persistência um grande número de informações e aprendem rapidamente por tentativas que, na maioria das vezes, se concretizam em inventos, grandes empreendimentos, gerando, inclusive, teorias fidedignas. Serão sábios ainda jovens.

A Bíblia está recheada de recomendações de respeito aos ‘mais velhos’ e aos idosos. Com certeza, as religiões reforçaram a crença na sabedoria dos anciões.

Porém, ‘pessoa idosa’ é uma expressão muito abrangente. A maioria das pessoas idosas merece nossa admiração e nossos respeitos. No entanto, há pedófilos e depravados, que foram assim por toda a vida deles, e há pedófilos e depravados que iniciaram a pedofilia e a depravação como comportamento de ‘terceira idade’. Velhos pedófilos e/ou depravados são criminosos que não merecem nossos respeitos.

Essa crença de que ao longo da vida as pessoas vão ficando cada vez mais sábias e respeitáveis corresponde, mais ou menos, à lenta metamorfose de um gavião predador em uma pomba da paz. No entanto, dificilmente alguém vai acreditar que uma erva daninha vai, à medida que envelhece, se transformando em uma linda orquídea ou em um cereal nutritivo. Que uma piranha se transforme pela idade em um lambari. Um gavião velho será, no máximo, um predador menos perigoso; podemos comemorar se a erva daninha não der sementes e se as piranhas ficarem banguelas.

Podemos concluir que o senso comum, a moral e a legislação devem ser vistos, analisados e utilizados de forma consciente e crítica, para que possamos superar o pensamento ingênuo e evitar comportamentos tolos, como comprar inutilidades, seguir a moda, acreditar na propaganda e/ou venerar cretinos.

REVISÃO EM VIDA

Desde que eu lembre de ter escrito, mesmo que um bilhete, sempre me senti insatisfeito com o texto. Essa sempre foi a minha exigência. Por isso, antes de enviar ou de publicar, revisei e reescrevi tudo o que deu tempo para revisar e reescrever.

Há alguns anos, li um comentário sobre Graciliano Ramos e me senti identificado com ele na busca incessante de aperfeiçoar os textos. No entanto, com menor rigor que o Mestre Graça, pois, em dado momento, dei à luz textos e livros, consciente de que tinha alcançado o melhor para aquele momento. Ou seja, mesmo sabendo que os textos ainda precisam receber melhorias, eles já conterão minhas ideias de forma mais ou menos inteligível.

Recentemente, voltei à leitura da última entrevista de Jean-Paul Sartre, encontrando evidências ainda mais fortes de que nossas opiniões devem ser datadas e merecem constantes e infinitas revisões. Ou seja: o que eu disse, em cada época, era o que eu acreditava ser a ‘verdade’; verdades contraditórias, constantemente desmentidas. Sartre defendia as opiniões dele com convicção e com extremo vigor, porém, aceitava com resignação o fracasso de suas teorias, diante de provas alheias ou mesmo por ter chegado à conclusão de que suas ideias estavam erradas e/ou ultrapassadas.

Alguns trechos emblemáticos dessa capacidade de aceitar os próprios erros e de reformar os próprios pensamentos filosóficos.

  1. “… acho que a ideia de imortalidade a que me entregava intensamente quando escrevia (e até quando deixei de escrever [porque ficou cego]) era um sonho. Acho que a imortalidade existe, mas não é assim.”
  2. “Veja bem, minhas obras são um malogro. Não disse tudo o que queria dizer, nem da maneira como queria dizer. Algumas vezes em minha vida isso me magoou profundamente. Outras vezes, não percebi meus erros e pensei ter feito o que queria. Nessa altura, não penso mais nem numa coisa nem noutra. Acho que fiz mais ou menos o que pude. Que isso valia o que valia. O futuro desmentirá muitas das minhas afirmações; espero que algumas sejam conservadas, mas, em todo caso, há um movimento lento da História em direção a uma tomada de consciência do homem pelo homem.”
  3. “… em minhas primeiras pesquisas […] procurava a moral numa consciência sem recíproca ou sem outra […] Hoje, acho que tudo …”
  4. “Moral que está aliás em contradição com certas ideias que tive.”

Em 2014, a respeito da importância do livro dele AS VEIAS ABERTAS DA AMÉRICA LATINA, Eduardo Galeano afirmou que, quando escreveu, não tinha o treinamento e o preparo necessários para tratar de economia e de política. Como a dizer: Se eu fosse reescrever o texto, fariam muitas melhorias. Mesmo sendo uma obra que norteou a intelectualidade latino-americana por décadas.

A leitura do que escrevemos ao longo da vida é exercício fundamental para nossa autocrítica. A análise de nossas ideias pretéritas pode informar das revoluções, das involuções e, principalmente, das evoluções que precisamos realizar para que possamos descer dos trapiches da nossa vaidade, com cautela para evitar frustrações e traumas.

Conscientes de que somos outros em cada época e diante de circunstâncias, poderemos admitir também que somos apenas testemunhas das situações vividas e estaremos em condições de empreender novas e mais profícuas reflexões filosofais, muito adiante do histórico ontológico. Importante que essas revisões aconteçam antes que a morte bata o carimbo sobre nossas biografias.

SABEDORIA ESCONDIDA

Até a década de 1960, a Educação no Brasil era privilégio dos filhos da elite social e de uns raros pobres determinados a estudar, que conseguiam superar as enormes dificuldades pessoais e romper as barreiras socialmente impostas.

Porém, a partir da Revolução Militar de 64, o governo brasileiro assinou um convênio com os Estados Unidos, que previa ações estruturantes, dentre elas, a expansão do acesso à escola para todas as crianças e algumas oportunidades de formação técnica-profissional.

Para normatizar a implantação dessas mudanças educacionais, foi promulgada a LDB/1971 que extinguiu os cursos primário, ginasial e científico. Até então, a maioria deles estava sob a tutela de instituições particulares; na quase totalidade, oferecidos em escolas mantidas por congregações religiosas.

O governo revolucionário pretendia dominar a formação dos ‘novos brasileiros’, como pessoas e como cidadãos. Por isso, uma das primeiras medidas foi afastar as instituições e os métodos tradicionais; os novos cursos passavam a ser administrados pelos governos estaduais e, décadas depois, por parcerias entre os governos municipais, estaduais e federal.

De um modo geral, todas as orientações foram implantadas e persistiram, com alguns ajustes. No entanto, uma das opções pedagógicas teve duração efêmera, porque se mostrou equivocada e preconceituosa: formar turmas segundo o desempenho escolar e, para os iniciantes, segundo o desempenho escolar dos parentes mais velhos (irmãos, pais ou tios).

Na época, as proles eram abundantes e havia muitos jovens em idade escolar. Por isso, mesmo em pequenos povoados, foram formadas muitas turmas para cada série escolar. E, pelo critério elitista adotado, nas turmas ‘A’, estudavam os melhores alunos da região e/ou os ‘filhos das melhores famílias’, mesmo os que fossem pouco estudiosos. Na sequência decrescente de ‘capacidade intelectual’ e em ordem alfabética crescente, seguiam as demais turmas.

Em uma das escolas em que Maria Alfabetizadora trabalhou, as sextas séries do Ensino Fundamental alcançavam a letra ‘H’; a ‘6ª série H’ era a última e mais ‘fraquinha’, com apenas vinte alunos ‘repetentes’ ou candidatos à repetência. Dentre eles, o José Ignoto, que era considerado, pela equipe docente, ‘o mais fraco de todos’; por isso, recebeu o rótulo de incapaz de aprender e os professores estavam dispensados de tentar ensiná-lo, pois seria apenas desperdício de tempo e de dinheiro.

Porém, aconteceu de a avó do José Ignoto morrer de velhice.

Nas aldeias, os velórios eram eventos obrigatórios para toda a comunidade; o luto era coletivo. Por isso, naquele bairro operário, os colegas de turma do enlutado sempre visitavam o velório, como gesto de solidariedade e de espírito cristão.

Para cumprir a obrigação, a diretora da escola solicitou que Maria Alfabetizadora acompanhasse os alunos da ‘6ª série H’ e que representasse a escola na cerimônia, conduzindo, inclusive, as orações fúnebres. Afinal, a escola era autoridade cultural.

As crianças estavam acostumadas a caminhar até a cidade distante cinco quilômetros, para acompanhar os pais ou para, em excursão escolar, participar dos jogos estudantis, como atletas e/ou torcedores. Por isso, poderiam caminhar três quilômetros, sem maiores problemas. E, depois do compromisso, todos poderiam ir para suas casas, algumas delas até próximas do local.

Assim, a pequena procissão iniciou a caminhada em alegre algazarra: como se fossem fazer um piquenique. Isso até deixar a estrada principal e começar a subir a ladeira estreita. A partir daí, todos deveriam caminhar em silêncio respeitoso. Essa atitude favorecia a audição da cantilena fúnebre: uma voz juvenil conduzia as orações e parecia ser a voz do José Ignoto.

De fato: chegando cada vez mais perto, ia aumentando a certeza de que a autoridade eclesiástica, naquela cerimônia, era o ‘mais fraco dos alunos da turma’. E com que firmeza e com que convicção conduzia o culto!!! Maria Alfabetizadora tomou um choque de realidade. E as crianças também demonstraram surpresa, admiração e respeito.

Tendo participado de um bloco de orações e depois de passar ao lado do caixão persignando-se, a pequena procissão voltou para a estrada e para uma nova realidade: lá na casa dele, o José Ignoto era o mais letrado, lia com desenvoltura e conduzia o culto como um líder legitimado pela família.

Naquele final de tarde primaveril, os mitos e os preconceitos foram rompidos e a realidade mais cristalina inundou as mentes: o José Ignoto desempenhava na escola o papel de ‘pior aluno’, porém, em casa, livre das fôrmas e dos rótulos, era uma pessoa letrada, merecedora da admiração e da esperança da Família Ignoto.

Tessari, Mario. Maria Alfabetizadora. Jaguaruna, Edição do autor, 2014. (pg 42)

ABRAÇOS

Tive a pretensão de saber todos os abraços;

de conhecê-los e de praticá-los.

De receber totalmente o espírito do corpo que eu abraçava;

de aceitar e de ser aceito, completamente…

 

Pretensão de ter provado de todos os abraços:

o mais doce, o mais rápido, o mais leve, o mais apaixonado,

o mais forte, o mais quente, o mais longo, o mais triste,

o mais solto e o mais sincero…

 

Mas, naquele final de noite, após três turnos de trabalho,

nossos corpos se encontraram, naturalmente suados

e com sonos em nossas pálpebras,

toda teoria

– de que devemos tomar um banho antes do abraço

e de que a qualidade da roupa determina o prazer dos corpos –

perdeu a validade…

 

No silêncio noturno, nossos corpos se fundiram

como se fossem partes de uma mesma peça;

sem faltas nem excessos, num todo homogêneo.

Abraço forte e suave, apenas não-permanente.

 

Foi esse abraço que nos fez esquecer todos os anteriores e

foi esse abraço que decretou haver mais haver abraços assim…

Tessari, Mario. Poemas de Mario Tessari que eu Gosto – Maria Elisa Ghisi. Jaguaruna, Edição do autor, 2014. (pg 33)