Eu sofria ataques verbais dos vizinhos, sem compreender a razão de tão intensas e contínuas agressões. Conversando com os filhos, um deles afirmou que eu estava provocando a situação. No primeiro momento, senti abalo emocional: considerei que até o filho estava contra mim. Depois, refleti: ele falou isso por um motivo. Procurei inverter o meu ponto de vista, experimentar outros olhares, tentar ver por outro ângulo. Imaginar o que meu filho via. Então, conclui: minha afabilidade, meus sorrisos silenciosos e minha vontade de ajudar criavam barreiras e, até, aversão. Afinal, eu era ‘de fora’; o que estaria querendo? “Ensinar a gente viver do jeito dele?” Minhas palavras eram recebidas como desaprovação do modo de vida dos ‘nativos’. Eu era ‘de fora’, não comungava dos valores deles, como criar bois atados em cordas à beirada de estradas, proliferar cães e gatos, jogar lixo no rio, ... Minhas opiniões, atitudes e crenças causavam desconfortos e desencadeavam reações agressivas. Queriam ‘me expulsar’. Assim, eles estariam livres de ‘críticas delicadas’ e de orientações ‘urbanas’ (“pensa que vive na cidade”), como ensinar pessoas a ler e a escrever, aparar a relva, cultivar jardim, plantar flores, construir canteiros na horta em retângulos sob medida, “fazer trabalho de mulher”, perder tempo plantando árvores, ... Como o Plínio Schmidt me alertou: “Andam dizendo por aí que o senhor é um louco. Enquanto todo mundo luta pra limpar os terrenos, o senhor planta mato.” Minhas tentativas de conversar, minha disponibilidade, meus desejados diálogos sem entrar no jogo verbal de revidar, sem responder à altura, sem ter uma “atitude de homem”. Meu comportamento cortês agredia as pessoas, minha tolerância com homossexuais e com negros depunha contra valores ‘consagrados’; meu ateísmo assustava. Ou seja, eu era parte do meu problema. Ou pior: eu causava problemas. Eu escrevia frases filosóficas no quadro pendurado na varanda. E a maioria deles despreza a leitura ou nem sabe ou não quer ler... Eu escrevo livros; “Vai ver que tá escrevendo da gente...”. Meu comportamento, sem que eu tivesse consciência disso, atraia o ódio dos ‘normais’. Ao longo de dezesseis anos, esporadicamente, sofri tempestades de palavrões e de acusações infundadas do vizinho, que, talvez, esteja indignado com meu silêncio complacente, com minha ‘educação exagerada’. “Tem gente que estuda a vida intera e não aprende a ajudá quem percisa.” “Bicha covarde. Froxo. Se iscode atráis da janela e da muié, foge pra banda de lá do rio.” Pesquisei e encontrei alguns ensaios sobre a aversão aos benevolentes e aos afáveis. Afável? Uhhhmmmm! Afável... Seria falta de atitudes viris? Falta de capacidade de enfrentamento? Covardia? Enfim, um ‘homem frouxo’... Então, querer a paz, querer viver em harmonia, seria agressivo aos belicosos? Fugir das competições, das encrencas e dos riscos sociais seria uma provocação para os empreendedores, para os destemidos? Sou um franguinho manso que se encolhe a cada bicada? Meu desejo de ‘ficar quieto no meu canto’ agride os competidores? Meu silêncio incomoda os que gritam? Percebo que essa minha afabilidade ofende as pessoas... que me atacam... e eu me encolho... Ao fugir de polêmicas, de confusões e de brigas, eu provoco a ira deles. Escolhi me retrair, abdicar da convivência comunitária e permanecer calado, sem contextualizar situações e sem relatar meus sentimentos. Convicto de que sou parte dos problemas que causo, passei a usar essa dúvida em minhas análises de conjuntura e nas solicitações de aconselhamento. Por esse ponto de vista, vejo que a maioria dos problemas persiste porque as pessoas se sentem vítimas condescendentes; não se veem como parte do problema e continuam agindo de boa-fé, crentes que ‘fazem o bem’. Acredito que o reconhecimento de que somos parte dos problemas pode contribuir na solução das nossas dificuldades afetivas e nas melhorias de nossas relações sociais.
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A FORÇA SOCIAL
Há milhares de anos, o hominídeo lutava contra seu vizinho tão naturalmente quanto comia. Ou seja, na luta pela sobrevivência, era normal bater, usar a força para dominar ou, até mesmo, matar o rival. Violência natural. Lutava indivíduo contra indivíduo, família contra família, grupo contra grupo, …
Através dos séculos, a espécie humana usou as mãos e as armas para impor suas ideias e sua vontade, sem ter consciência de que empregava a força física como qualquer outro animal. Os mais fortes dominavam os mais fracos: os adultos dominavam os jovens e os velhos; os machos dominavam as fêmeas – apenas se fossem mais fortes que elas. Quem obedecia era protegido. Por isso, a obediência consagra-se como virtude, do ponto de vista do dominador.
Os fortes podem também dominar pela linguagem. O canto e os gritos conseguem ampliar os espaços vitais de aves e mamíferos. Tomando como exemplo, os galináceos (domésticos ou não) defendem seus espaços pelo cocoricó e os leoninos, pelo rugido.
Se articulassem a linguagem, leões e galos ampliariam seus espaços e a forma de domínio, sobre a própria espécie e sobre outras espécies. Enquanto o grito queria dizer simplesmente “fora daqui, esse pedaço é meu”, a articulação poderia explicar porque tinham direito ao espaço dominado e quais as condições e os limites do domínio.
O poder dos dominantes justificando os argumentos ditatoriais, nas religiões, nas políticas e nas ‘justiças’. Em síntese, as regras oficiais eram (e são) cumpridas porque o bom juízo recomendava obediência. “Manda quem pode; obedece que tem juízo.”
À medida que substituíram o uso da força pelo uso da linguagem articulada, os hominídeos se transformaram em homens. Evolução fundamental para a ampliação e consolidação do domínio humano sobre os demais animais que não desenvolveram a fala. O homem, que, pela força, já dominava outros homens e animais menores, se torna mais eficiente, dominando-os também pela palavra. Inicia, então, a Guerra do Letramento, com o uso da escrita pelas elites cultas para dominar os analfabetos.
Como nos mostra Vigotsky, linguagem e pensamento têm desenvolvimento interdependente e contínuo. Assim, o desenvolvimento linguístico veio acompanhado de desenvolvimento da inteligência. Talvez, se outra espécie animal tivesse articulado a voz, hoje, não seríamos tão soberanos.
A substituição da força pela palavra se dá aos poucos, ao longo de milhares de anos, e ainda não se consumou, coexistindo a democracia com a guerra. O dominador, seja ele indivíduo, grupo ou nação, demonstra civilidade, tentando convencer pela palavra, pelo discurso, pela diplomacia. Porém, se não atingir o objetivo, não vacila em usar a força.
Nesse processo de substituição, se confirma a regra do mais forte: os machos exigem que as fêmeas usem a linguagem em vez de usar a força física para se defenderem ou para atacarem, as obrigando a serem civilizadas. Porém, se as fêmeas não agirem conforme o esperado, os machos, então, se permitem usar a força, porque eles detêm o poder. Poder exercido prioritariamente pela linguagem. Todavia, se elas não tiverem juízo, eles se consideram no direito, segundo o juízo deles, de voltar ao uso da violência física. Essa segunda instância garante que, com o tempo, elas entendam as mensagens.
O mesmo acontece em outras relações sociais: adultos sobre jovens, grupos sobre indivíduos, grupos maiores sobre grupos menores, armados sobre desarmados, ricos sobre pobres, eruditos sobre analfabetos. Surgem alianças de mais fracos para superar o poder de um forte.
A linguagem, a articulação e a força garantem também o domínio do grupo sobre os indivíduos.
O ser humano talvez seja o único animal a se agrupar para atacar a própria espécie, sejam indivíduos ou sejam outros grupos rivais. De forma arcaica, juntando forças físicas – mãos, braços, pernas, unhas, dentes, pedras, paus, fuzis, misseis, … – ou, democraticamente, substituindo a força muscular pela força oral, pelo poder da palavra.
Exemplo da força inquestionável da sociedade sobre o indivíduo é a pena de morte: muitos são condenados à morte por terem matado… Por isso, a lei manda matar o matador.
Aceitamos que a sociedade faça justiça com as próprias mãos, condenando a morrer os que mataram menos que ela. Matar na guerra merece condecoração, por ser considerado um gesto nobre, da nobreza instituída … que decreta pena de morte para quem matar sem ordem oficial de um governo.
Usamos a própria linguagem para dizer que mudamos a linguagem. Entretanto, em último caso, usamos a força das mãos e dos artefatos bélicos para garantir que a mudança seja aceita, que nossa verdade seja a única, que nossa regra seja cumprida. Mudamos tanta coisa, mudamos o mundo; só não abrimos mão da lei do mais forte.
As leis proíbem o indivíduo de acusar, de roubar ou de matar. Porém, a sociedade – um ente ideológico e mítico – tem o direito de fazer e de absolver a si mesma desses crimes com toda naturalidade, porque é muito mais forte que os indivíduos. As leis civis foram criadas pelo Homem. Logo, são produto cultural humano; não são leis naturais. No entanto, ao mais forte pode optar entre as leis do legislador e as leis da natureza, se houver vantagens para ele.
Em 10.12.1948, os homens se disseram animais especiais, através da Declaração dos Direitos Humanos. Seria o cultural substituindo o natural, mudando as regras sociais. Porém, ainda os opressores esquecem da linguagem, da diplomacia, do diálogo e usam a força bruta, toda vez que seus interesses não são atendidos.
Ainda não somos totalmente humanos; só o seremos no dia em que, abdicando da irracionalidade, respeitarmos os direitos dos outros. Principalmente quando os outros forem os mais fracos, os sem-poder. É a utopia do educador; o sonho possível.
Entretanto, as regras continuam as mesmas: os fortes dominando os fracos, preferencialmente pela palavra. Caso não haja obediência, aí, se volta ao método anterior, que ainda funciona: homens mandando em mulheres, adultos mandando em jovens, grupos mandando em indivíduos, grupos poderosos mandando em grupos menos poderosos. E quem manda tem o direito de escolher as armas; se a palavra for insuficiente, acrescenta-se o porrete, a faca, o revólver, o canhão, o míssil, … o Pentágono, a OTAN e a ONU.
Tudo muda e evolui, menos a regra fundamental do jogo. Inventamos várias contagens para o tempo, vários calendários. O ocidental, que tem mais poder, diz que estamos na virada do milênio, entrando em uma nova era. Ainda os fortes dominando os fracos; sendo mais ético fazê-lo pela linguagem, criando e impondo a lei, que garante o direito do legislador, com os argumentos de quem tem poder.
Desses argumentos, o mais convincente – e talvez o mais sutil e silencioso – é a nossa consciência de que, se o discurso verbal não for suficiente, o detentor do poder apelará para a violência física ou para a violência simbólica: poder do dinheiro, poder político, poder religioso, empregabilidade, …
Escrito em 1976; reescrito em 14.09.1999; atualizado em 27.03.2022.
Nome de estradas, ruas, pontes, túneis, …
Em rodovias, os políticos colocam o nome de líderes paternalistas para que possamos transitar sobre eles; pisar, escarrar e jogar lixo neles. Menos mal que a maioria das pessoas logo esquece quem foi o laureado, ignora a fama concedida e passa a ver os letreiros das placas como símbolo grafado, pouco importando se com letras, algarismos ou desenhos. O vocábulo ‘homenagem’ deriva de homem, autoridade masculina, que concede às mulheres raras exceções, em espaços desprezados, temidos por eles. Assim, por obscura ironia vaginal, os homens nomeiam túneis e pontes em homenagem a mulheres idôneas, dignas e castas, para que sejam penetradas ou para que possam passar por cima delas. Para evitar e estar a salvo de reações dos violentados, estabeleceram em lei que só podem ser usados, nas placas informativas, nomes de pessoas mortas. São vinganças póstumas.
MINHA LISTA DE DESCONHECIDOS
Quando jovem, … (Quando mesmo que fui jovem? Quando deixei de ser jovem? Resta alguma jovialidade em mim?) Bem… Quando ainda imaginava ser jovem, eu enfrentava qualquer parada: serviço pesado, serviço difícil, festas, conflitos e campanhas eleitorais. Para muitos, fiz diferença, colaborei; para a maioria, fui paisagem, um rosto anônimo; para alguns, fui estorvo, um incomodador.
Como disse aquele monge ao completar 86 anos, comecei com a ilusão que poderia mudar o mundo e acabei mudando um pouco em mim mesmo.
Tive durante muito tempo a pretensão de elucidar dúvidas, desvendar mistérios, conquistar pessoas por convencimento e de manter relações amigáveis insistindo em explicações. Ah! Ajudar as pessoas no aprendizado do que eu considerava importante e que considerava seria muito importante para elas. Observava a forma como as pessoas dirigiam, criticava os desmatadores e os depravados, orientava os esbanjadores, me preocupava com os telhados dos vizinhos, ria dos ridículos, … Enfim: cuidava da vida alheia.
Aí, durante um desgosto mais amargo, tive a ideia de iniciar minha lista de desconhecidos. Quando uma pessoa de minha rede de relações se mostrava resistente ou incomodada com minhas opiniões, quando os parceiros sabotavam meus esforços, quando uma pessoa me traia, quando alguém me ofendia, … A lista cresceu, mesmo usando doses de benevolência e permitindo, em alguns casos, uma segunda chance.
Nessa minha lista de desconhecidos, coloquei arrogantes, brigões, vingativos, espertos, estúpidos, caloteiros, hipócritas, dissimulados e/ou fingidos. Reduzi contatos, deletei mágoas, evitei aborrecimentos, parei de querer mudar quem não quer mudar, deixei caídos os que me empurraram e economizei desprezos. Deixei de gastar minhas energias e de empatar o meu tempo com ex-conhecidos.
Para os ainda-por-conhecer, dedico parte da minha atenção, com precaução. Porém, quando encontro um desses desconhecidos contabilizados, concentro esforços em neutralidade planejada. Como diz a gíria: “passo reto”.
Há tempo, escrevi o poema “Menos amigos, mais amizade”, que procuro sempre reler, para me manter crítico e prosseguir no meu processo de enxugamento.
ESTRELAS DO DIA
Quantas vezes, esperamos o sol se pôr para contemplar as estrelas? Porém, elas existem também no céu diurno; elas estão lá, mesmo que ofuscadas pelo Sol, a estrela mais próxima da Terra e que, por isso, parece ser a maior. Há estrelas em todas as direções; nos céus da madrugada, da manhã, da tarde, do ocaso, da noite, ... Elas estão lá, só não as podemos ver, por estarem encobertas pelo Sol. E não são as mesmas. A cada hora da noite, vemos outras estrelas ou uma mesma estrela em várias posições. E as estrelas do dia, se pudéssemos vê-las, seriam outras que não as estrelas do ocidente, no hemisfério sul. Porque elas não giram conosco ... nem mesmo giram ao redor do Sol. São seres do espaço sideral. A humanidade sabe disso há tempo, mas, finge não saber. Ou nem finge. Uma pessoa que só vê estrelas na mesma hora da noite, de um mesmo lugar, vai pensar que aquele céu é o teto de seu mundo. Também as pessoas são estrelas, pois, possuem luz própria. E muita gente passa a vida olhando a mesma estrela (pessoa). Pensa que seu céu é aquele. No entanto, ao olhar diretamente para uma estrela muito próxima, ficamos ofuscados, cegos. As pessoas também podem brilhar intensamente ao nosso lado, ofuscando outras estrelas humanas, bem mais humildes e silenciosas. E, por problemas de percepção, podemos perder muitos amigos, dos quais dispensamos a luz e o calor. A vida tem muitas lições que deixamos de aprender ... Quantas vezes, esperamos que a morte nos mostre as pessoas?
Reflexão
Como não tenho permissão para abandonar o espetáculo, me esforço para aprender o jogo da vida.
FÉLIX APAIXONADO
Félix passava a maior parte do tempo sentado no velho sofá da sala hipnotizado pelas imagens e pelo som da televisão. Os assuntos e os fatos eram sempre novos, porque ele esquecia tudo em minutos. Emocionava-se instantaneamente; esquecia imediatamente. Por isso, tudo era novidade. Até a aparição de um dos netos, que ele olhava com curiosidade, pois, na sua mente, não havia registros daquele personagem. Aliás, poderia ter, porém, o avô não encontrava os registros mnemônicos.
Passava horas babando pelos cantos da boca, agitado, excitado; as emoções estremeciam a velha carcaça a cada nova aparição feminina. As borrachas do sofá sofriam com os corpomotos, sismos intermitentes da tensão corporal. Esquecia do mundo. Aliás, de nada lembrava.
A esposa passava o dia em vigília. Preparava as refeições com um olho nas panelas e o outro no marido desmiolado. A mulher ia ao banheiro na correria, aproveitando os momentos em que ele estava encantado com alguma ninfa virtual. Até para atender quem batesse à porta, caminhava de ré, pois o caminho era mais estável que o pai de seus filhos.
Conceição – por ter concebido os filhos dele – prestava os serviços de esposa, de acompanhante e de enfermeira, sem reclamar e, até, com certo humor. Inicialmente, sofreu ataques de ciúme, como os havia sofrido desde que casara e acompanhava as investidas do farmacêutico, especialmente, quando aplicava injeções nas nádegas de suas vizinhas.
Porém, logo tomou consciência de que Félix nem mesmo sabia o que fazia. Deixou de levar a sério as babações, os acenos e os beijinhos jogados para o aparelho de TV. Às vezes, Conceição entrava na brincadeira, sorria para ele, piscava malícias, jogava beijos e perguntava:
— Qué casá comigo?
E ele, com os olhos vertendo ternuras:
— Pode ser…
OS EXPLORADORES
Muito ativos desde pequenos,
choram por qualquer coisa,
exigem dedicação integral e
conseguem a atenção cobrada.
.
Só que começam engatinhar,
exploram o quarto, a casa, o quintal.
Remexem tudo e seguem adiante…
sempre sem limites.
.
Da mãe,
exigem alimento,
carinhos, o infinito e a eternidade;
do pai,
cobram trabalho extenuante,
segurança e presentes;
das demais pessoas,
ocupam o centro das atenções.
.
Mesmo assim, reclamam de tudo.
.
Para ampliar a exploração,
recebem madrinhas e padrinhos,
fontes inesgotáveis
de elogios e de mimos.
.
Depois de explorar o pai, a mãe,
a família, os padrinhos, os avós,
os irmãos e os vizinhos, frequentam
creches, escolas e academias, onde
continuam exigindo privilégios:
exploram colegas e professores.
.
Crescem explorando pessoas,
comunidades, clientes, governos
e todos os que deles se aproximam.
.
Se apossam da natureza
como predadores insaciáveis,
derrubando árvores, matando animais,
queimando os resíduos orgânicos
e, por último, vendem
as pedras que restam no solo.
.
Envenenam as lavouras,
as pastagens, os pátios de casa,
os rios, as lagoas, o mar e o ar.
.
Seguem explorando os vizinhos,
as terras dos vizinhos,
as matas dos vizinhos,
as criações dos vizinhos,
os transportes dos vizinhos,
a amizade dos vizinhos,
a boa-fé dos vizinhos e
acabam esgotando
a paciência dos vizinhos.
.
Depois de sugar a mãe, o pai,
a família, a comunidade,
a natureza e os mananciais de água,
passam a explorar as verbas públicas
e os espaços sociais…
.
Como gafanhotos humanos,
vão desfolhando a vida;
por onde passam,
só restarão esqueletos ao vento.
.
Exploradores
são pessoas bem atuantes,
que vivem sem limites,
se apossando de tudo
o que estiver disponível,
devorando o que encontram,
exigindo ‘colaboração’ dos outros,
sem nunca colaborar,
e ‘ficam muito brabos’ quando
os desejos e a voracidade deles
não forem atendidos.
.
Exploradores desdenham e combatem
a ordem, os limites, as regras,
os valores morais,
as ações comunitárias,
o trabalho coletivo,
a preservação da natureza,
o ajardinamento de ruas e praças,
os cuidados com a casa,
a lealdade com as pessoas e
o respeito com as diferenças.
.
Exploradores não perguntam
‘Eu posso entrar?’,
‘Eu posso pegar uma fruta?’,
‘Eu posso ajudar nesse trabalho?’,
‘Como você se sente?’,
‘O que você espera de mim?’, …
.
Quando casam,
os exploradores já são
especialistas em exploração
e dominam completamente
as esposas, os sogros, os cunhados,
os filhos, os parentes, as instituições.
.
Querem ser servidos,
‘ter tudo à mão’,
sem questionamentos
ou reclamações.
A DIALÉTICA DA VIDA
A manhã, ao fornecer a luz,
rompe o repouso da noite;
desperta o aconchego do sono.
.
A alegria da primavera
está impregnada de dor,
porque a flor que abre
e o ramo que cresce
precisam romper a si mesmos
para superar o corpo que foram
durante o tempo de recolhimento,
tempo de hibernação.
.
O despertar da vida,
de aparente alegria,
traz em si
o rompimento do próprio ser
para que ele possa ser mais…
.
A magia da vida está
em entender os ciclos vitais,
a alternância das estações,
a importância própria de cada momento,
que é único e necessário para o seguinte,
que não consegue ser mágico por si só,
por ser apenas um passo a mais
no caminho do todo indivisível
prazer de viver como pessoa feliz.
.
A própria morte
traz dentro de si a vida,
pois, a saudade que nos invade
vem grávida da sabedoria de quem se foi,
da consciência de que tudo é efêmero
e de que precisamos viver intensamente
o momento presente,
valorizando as coisas simples e as pessoas,
porque, da vida, só lembraremos
da magia dos encontros humanos.
.
A alegria e a dor são
partes de um todo perfeito,
que alterna sofrimento e prazer,
na construção da vida.
.
A consciência dessa lógica
nos faz artífices do dia que nasce
e da primavera que floresce.
CÂNCER EM MAMA
Comandantes de instituições religiosas criam interdições (muitas vezes, incompreensíveis), que colocam névoas intelectuais entre as pessoas, dificultando a comunicação e criando o obscurantismo. Somos vítimas, “… seres humanos sacrificados a uma divindade ou em algum rito sagrado.”¹ Vivemos sob os constrangimentos morais dos “bons costumes” decorrentes de estratégias de dominação dos humildes por líderes ‘bondosos’, espertos e prepotentes.
Os dogmas e os mitos descrevem eventos metafísicos, criados por discursos da classe dominante e perpetuados pela oralidade plebeia ágrafa e subservil. As elites governantes inventam categorias sobrenaturais para justificar as transgressões às regras morais usadas para subjugar os súditos. Ou seja, controlam o povo com normas que se permitem burlar para dar plena vazão à corrupção, à devassidão, à libertinagem, à perversão e à exploração de seus semelhantes, como escravos ou fregueses de “determinada paróquia ou freguesia”¹.
Os semideuses da mitologia grega (satiros) e romana (faunos), como os demais semideuses em todos os impérios, leigos ou religiosos, permitiam a si o que proibiam aos comandados. Homens com cabeça de bode (que pensavam como um bode de alta potência sexual) que se permitiam a si mesmos (apenas a si mesmos…) dispensar o bom senso e, sem escrúpulos, liberar os instintos animalescos para praticar vícios e abusos.
A dominação masculina começa ao anexar as mulheres pela linguagem: a palavra ‘homens’ designando mulheres e homens, as fêmeas e os machos da espécie Homo Sapiens. Mitos e regras impostas por homens (masculinos, não-femininos) que, em casos extremos, transformam meninas, moças e mulheres em animais domésticos. O machismo permeia a cultura colonial europeia. (Desconheço os comportamentos de gênero nas demais culturas. E, como não conheci e nem convivi com sociedades matriarcais, fico curioso sobre os comportamentos do femealismo.)
Os tabus influenciam os costumes e, consequentemente, a linguagem. O uso de eufemismos e de jargões camufla a realidade objetiva (camuflar = disfarçar, enganar), gerando escrúpulos infundados, inquietação mental, subserviência, constrangimento e interdição cultural ou religiosa. A hipocrisia imposta pela língua condena, por tabuísmo, palavras comuns, triviais e vulgares. Ou seja, demonializa objetos naturais e ações corriqueiras do nosso cotidiano.
Podemos tomar como exemplo o generalizado uso da expressão “câncer de mama”.
O tabu exige que, ao falarmos de mamas, usemos o ‘bom senso’, eufemismos, palavras não interditadas pela MORAL: ‘peito’ ou ‘seio’. “Deu o peito ao bebê.” “Tem o peito pequeno.” “Estava com o seio à mostra.” “Machucou o seio.”
Em anatomia, identificamos ‘peito’ como “porção anterior ou ventral do tórax”¹. Daí decorre o absurdo de afirmar que a mulher tem dois peitos. (E as porcas, então, teriam entre doze e dezesseis peitos???) Os rapazes também têm um único peito e duas mamas, em geral, pouco desenvolvidas.
No mesmo dicionário, podemos encontrar que ‘seio’ significa “parte do pescoço e do peito feminino que pode ficar descoberto”¹. (Os humanos machos e machos ‘humanos’ permitem essa sedução…) Ou “parte interna”¹, “cavidade”¹. Nas aulas de Anatomia, aprendi que o ‘seio’ de qualquer pessoa estava localizado sobre o osso esterno, entre as duas mamas. De homens e de mulheres.
Por outro lado, deslembro de ter ouvido expressões como ‘espinho de pé’, ‘câncer de cabeça’, ‘câimbra de perna’, ‘dor de coluna’, ‘cólica de rim’, ‘cólica de útero’, ‘afta de boca’, … Em geral, ouço falar ‘espinho no pé’, ‘câncer na cabeça’, ‘câimbra na perna’, ‘dor na coluna’, ‘cólica nos rins’, ‘cólica no útero’, ‘afta na boca’.
Então, talvez, o mais correto (e menos dissimulado) seria dizer ‘câncer em uma mama’, ‘câncer nas mamas’ ou ‘câncer nas duas mamas’.
Mesmo assim, lamentável que as mamas só possam vir a público quando a mulher já está doente.
¹ Dicionário Eletrônico Houaiss